Chamam-lhe “a viagem das viagens”. Pela grandeza da distância, pela desmesura do espaço e do tempo, ou por abrir as portas de uma região do planeta que ainda hoje é sinónimo do exílio e do esquecimento, o Transiberiano é muito mais que uma linha de caminho-de-ferro e um comboio que liga dois pontos algures entre a Europa e a Ásia. É um mito, uma experiência de vida que nos obriga ao confronto da nossa pequenez com a grandeza do planeta. É um teste que nos instiga as delícias e os incómodos da solidão, o medo de se estar longe de tudo ou de qualquer coisa e o enorme prazer de se olhar as planícies intermináveis da Sibéria para retirar dos seus horizontes ilimitados um incontido prazer de liberdade. Chamam-lhe “a viagem das viagens” e é verdade que dificilmente qualquer outro percurso nos permite viver de forma tão intensa, quase angustiada, o fluir dos quilómetros, a sucessão dos fusos horários, a evolução das fisionomias, das arquitecturas, das formas de vida ou das paisagens como a marcha dos comboios que há pouco mais de cem anos ligam Moscovo a Vladivostoque ou a Pequim.
Chamam-lhe “a viagem das viagens” pelo menos desde que na Exposição Universal de Paris, em 1900, uma luxuosa carruagem-restaurante decorada com mármores e requintada com um piano de cauda convidava as classes altas da Europa a aventurarem-se pela Sibéria até aos limites da China ou até aos portos de onde facilmente se alcançava o Japão.
Príncipes e aristocratas, memorialistas e aventureiros não resistiram à aventura e deixaram para a posteridade relatos que combinavam o tédio com o espanto, o cansaço com a emoção de resistir a mais uma etapa. Durante os anos de chumbo do regime soviético, os comboios não pararam, a linha foi até modernizada, a electrificação foi avançando etapa a etapa, novas e mais potentes locomotivas fabricadas na ex-Checoslováquia ou na própria União Soviética entraram em funcionamento, luxuosas carruagens de madeira e veludo foram encomendadas para levar o governo e a nomenklatura às cidades que cresciam rapidamente à custa do Transiberiano. Mas os viajantes estrangeiros tiveram de esperar por melhores dias: a viagem de um punhado de privilegiados fazia-se apenas após o cruzamento de intrincados labirintos burocráticos e através de um apertado esquema de vigilância. Cidades importantes como Krasnoyarsk estiveram fechadas aos olhares de fora até 1991.
Luta contra a distância
Hoje, tudo é diferente. Milhares de jovens europeus, americanos ou australianos cruzam todos os anos as diferentes rotas do Transiberiano, levando consigo as mochilas e a ansiedade de cumprir o mito, de enriquecer o currículo de viajante, de experimentar o insólito. Homens e mulheres de outras idades e outro poder de compra cruzam a Sibéria em comboios especiais, sem os cheiros a vodka nem o linguajar dos russos no interior dos compartimentos, mas com o conforto das malas recheadas de roupa limpa, mesas postas, camas feitas e visitas guiadas às cidades emblemáticas da linha. A uns e outros, porém, a viagem exige perseverança, a gestão da nostalgia e abertura dos sentidos para o que a geografia, a orografia e a história dos lugares tem para oferecer. Todos têm tempo e oportunidade para se perder em devaneios íntimos enquanto a interminável narrativa da paisagem se desenrola na janela, mas só alguns poderão perceber com o mínimo de coerência o que significa a Sibéria na história da Rússia ou na cartografia do planeta.
Como escreveu recentemente José Pacheco Pereira (um apaixonado da Rússia) no seu blog, há nestes lugares “uma vastidão muito especial, mais épica do que lírica”, que recomenda estudo e compreensão.
Por isso, quem esperar paisagens variadas ou horizontes cénicos empolgantes, desengane-se. Ao longo de quatro mil quilómetros, até ao troço que se inicia em Krasnoyarsk e acaba nas margens do lago Baical, a planície domina. Nem a cordilheira dos Urais que separa a Europa da Ásia é capaz de introduzir na paisagem aquela marca de dramatismo que é privilégio das zonas montanhosas. É certo que os rios, largos e caudalosos, exaltam os sentidos, mas a sua aparição nos fotogramas colhidos da janela é tão efémera que não dá sequer para um mínimo de contemplação atenta.
Quando se chega a Novosibirsk, ao quilómetro 3343 da rota, é já possível perceber que não é pela paisagem que a viagem é exaltante, que o cenário não passa de um dos seus condimentos. Como se de uma peregrinação medieval de tratasse, o caminho, a vitória sobre os marcos quilométricos que ainda conservam na sua base a estrela vermelha de cinto pontas, é muito mais importante.
Só três dias depois de se largar Moscovo é que o tempo, a rotina e a consciência ilimitada do espaço se começam a tornar tão normais como a respiração. Até ao fim da viagem ainda faltam cinco mil quilómetros, a distância entre Lisboa e Moscovo.
A viagem é uma luta contra a distância, um teste à nossa capacidade de compreender o planeta e de o situarmos nas categorias normais do espaço e do tempo. O rolar do comboio, a planície verde que se dilui no horizonte, o som seco das rodas nos carris, um pântano, um abrandamento de velocidade ou uma aceleração, mais uma mancha de bétulas e de pinheiros nórdicos, outro fuso horário, uma aldeia perdida ou uma datcha, uma fábrica abandonada, uma cidade na orla de um rio caudaloso surgem-nos como fragmentos desconexos de muitas histórias: as das cooperativas falidas, das indústrias falidas com o fim da planificação, as biografias de milhões de pessoas presas a um lugar que alguém em Moscovo decidiu ser o delas e que, por fim, conheceram a liberdade. O que podia ser monotonia e cansaço vaise transformando em desafio, o que talvez fosse um olhar vazio pelo verde da paisagem promete a reconstrução da memória tortuosa de uma região que associa a paz à quietude dos lugares onde o gelo permanente impede a vida social ou aos tempos em que tribos provenientes do Altai ou da Mongólia a habitavam.
A vastidão siberiana
Dos Urais a Vladivostoque, a Leste, do mar de Kara às montanhas do Altai, a Sul, a vastidão da Sibéria é absurda. As bacias dos seus maiores rios, o Obi, o Lena e o Yenisei, ocupam uma superfície maior que a da Europa. Se fosse um país independente, a Sibéria continuaria ainda assim a ser o maior do planeta, com uma área superior à dos Estados Unidos, incluindo o Alasca, e a Europa juntas. A República Sacha, no extremo nordeste da Sibéria ocupa uma área superior à da Índia, embora seja habitada por apenas um milhão de pessoas. O Baical é o maior lago de água doce do mundo, com 600 quilómetros de comprimento por 80 de largura. Se um dia se esvaziasse, demoraria um ano até que todos os rios do mundo o voltassem a encher.
Sem o Transiberiano que os czares mandaram construir entre 1892 e 1916, a Sibéria seria o deserto humano que sempre foi. Hoje, a linha ferroviária é a sua artéria aorta. É por ali que as pessoas se movimentam, é através de comboios pretos e intermináveis que se escoam as suas imensas riquezas naturais -a linha regista o recorde mundial de tráfego de mercadorias, que por si só representam 30 por cento do produto nacional da Rússia.
Sem os comboios que durante oito dias ininterruptos ligam os pontos extremos da linha, a Sibéria seria também muito menos compreensiva e acessível às categorias da inteligência. Depois de tantos dias de comboio, percebe-se porque é que durante dois séculos, desde os czares a Estaline, a Sibéria foi o lugar ideal para o degredo: o espaço ilimitado era em si próprio uma prisão, capaz de guardar todos os segredos, todos os crimes. Mistura de uma confluência mística entre a palavra mongol ‘siber’, (belo, puro) e a tártara ‘sibir’ (terra adormecida), a Sibéria é ainda hoje, apesar de toda a carga negativa de dois séculos de exílio e de degredo e de todas as agressões predatórias sobre os seus recursos, um lugar onde o verde domina. Para os russos, é a quintessência da alma pátria, o lugar que a distância poupou a contágios, o destino onde se cristalizou a pureza da sua cultura original, apesar de durante séculos a terem considerado o vazadouro onde se depositavam dissidentes e criminosos. É também o derradeiro lugar capaz de os salvar caso a terra entre em colapso: a sua área virgem, os seus recursos minerais, a sua água, as suas florestas são como que o paraíso a que um dia poderão ter de recorrer. Um pouco à semelhança do velho oeste para os norte- americanos, a Sibéria é desde há quatro séculos a fronteira que a nação tem de ultrapassar. Yermak, o cossaco que expulsou os mongóis e as tribos locais em meados do século XVII e iniciou o avanço dos russos até ao mar do Japão é a versão russa do Daniel Boone americano, do Vasco da Gama português.
Cosmos social
O Trakt, o caminho postal que outrora demorava anos a percorrer, é apenas uma memória, a Vladimirka, o caminho que milhares de presos políticos ou de delito comum percorreram a pé, foi comido pelas ervas depois da construção da linha. O tempo das descobertas acabou, mas o desejo do inesperado que é a força motriz dos adoradores de viagens perdura.
Hoje, centenas de comboios cruzam a linha todos os dias, alguns ligando os extremos entre Moscovo e Vladivostoque, outros derivando para Sul em direcção à Mongólia e daí à China, outros até à Manchúria ou à Coreia. Nas estações principais ao longo da via vêm-se outras derivações do Transiberiano, sejam comboios adaptados ao turismo como o que nos transportou, carreiras que ligam estações intermédias que em alguns casos distam entre si dois mil ou mais quilómetros, derivações para o Cazaquistão ou para as margens do mar Cáspio. É impossível não olhar para as placas que indicam os seus percursos sem perguntar “onde” e “porquê”. No seu interior pode-se perscrutar o cosmos social da região, desde os pobres que viajam em carruagens dormitório abertas cujos vidros se tornaram opacos graças ao pó acumulado pelo tempo e pelos quilómetros, até às classes médias que descem das suas cabinas para se consolarem com gelados ou bananas dos 20 minutos de paragens técnicas nas principais estações. Pelos cais encontram-se também alemães ou espanhóis dos comboios charter ou jovens japoneses ou britânicos de mochila às costas.
Se a alma do viajante se faz pela paixão e pelo desejo do que fica longe, esta é a via ideal para a satisfazer. A distância entre os rostos de pele branca e olhos azuis de Moscovo, as faces caucasianas dos tártaros numa cidade nas margens do Volga e as feições mongóis de Irkutsk não se mede apenas em quilómetros.
Avalia-se também pela história que se desfila nas janelas dos comboios. No Transiberiano, os mapas pouco significam, por impossibilidade de comportarem a escala do que se estava prestes a iniciar na Estação de Kasan, em Moscovo, no final de uma tarde cinzenta. O Transiberiano é “a viagem das viagens”? Pode sê-lo, antes de mais porque nos estimula a olhar a Terra e os que a habitam com outra devoção e carinho.
2.ª parte: Nas estepes de cores amenas
Saber mais sobre a Sibéria
Na travessia dos quase seis mil quilómetros de viagem pela planície siberiana o que não falta é tempo livre. Mesmo os mais empenhados cultores das rotinas alimentares ou os mais insaciáveis curiosos com as mudanças de cenários no exterior do comboio têm oportunidade para longas horas de conversa nas salas dos restaurantes ou nos corredores, para se dedicarem aos mais prolongados jogos, para alimentar diários ou para ler. Se a sua preferência for esta, vale a pena pensar em obras que de forma directa ou indirecta nos ajudem a perceber a “alma russa”, como se construiu e se faz a Sibéria de hoje ou que contribuam para que possamos acompanhar mais de perto o que se vê e experimenta ao longo dos principais marcos da viagem.
Se a preferência for pela ficção, a escolha de um par de obras de Fiodor Dostoievsky é sensata. “Os Irmãos Karamazov” pode ser uma opção e “Recordação da Casa dos Mortos” uma obrigação. Porque esta obra leva-nos à essência do “sistema de exílio” e encarceramento em que se transformou a região além dos Urais no século XIX nesta obra, Dostoievsky fala-nos dos seus próprios dias de presídio para concluir isto: “A melhor definição que posso dar de um homem é a de um ser que se habitua a tudo”.
Sobre a Sibéria propriamente dita, há dois livros que vale a pena ter em atenção. O primeiro é “Siberia, Siberia”, do escritor russo Valentin Rasputin (Northwestern University Press, 1997), uma espécie de biografia da região onde o escritor nasceu. É uma obra importante para se perceber o papel que a Sibéria ocupa na consciência nacional da Rússia, para se conhecerem alguns dos principais capítulos da sua história ou para se compreender a luta de uma série de intelectuais que, no final dos anos 80, conseguiu evitar a construção de um complexo de fábricas nas margens do lago Baical. O outro livro (este sim, absolutamente indispensável), é “In Siberia” (Penguin Books, 2000 - edição em português, datada de 2002, pelas Publicações Europa-América com o título “Na Sibéria"), um fantástico relato da viagem do escritor britânico Colin Thubron pela Sibéria nos finais dos anos 90. O retrato que nos traça está hoje razoavelmente ultrapassado a Rússia e a Sibéria começam definitivamente a afastar do seu quotidiano as sequelas do vazio e da depressão abertas com a queda da União Soviética-, mas pela qualidade literária ou pelo manancial de informações que o autor nos avança tornam a sua leitura obrigatória.
Finalmente, os guias práticos. A começar pelo sempre indispensável "Trans-Siberian Railway Lonely Planet", excelente não apenas pelas informações úteis mas pela resenha histórica que faz da Rússia e das etapas complementares dos programas que acabam na China está disponível uma edição da obra em francês. E o ainda mais especializado e extenso "Trans-Siberian Handbook" de Bryn Thomas, que já vai na sua sétima edição e oferece uma interminável lista de informações úteis para quem se aventurar na mais longa viagem ferroviária do planeta.
As cidades da rota
O percurso do Transiberiano até ao Lago Baical passa por uma série de cidades da Rússia europeia da região além-Urais que merecem ser visitadas.
Com excepção de Moscovo e de Kasan, não se esperem grandes revelações patrimoniais; as cidades da Sibéria são muito recentes e, na sua maioria, devem a sua opulência actual às riquezas naturais da região e à própria existência do caminho-de-ferro. Mas, depois de se entrar no comboio na estação de Kasan ou de Yaroslav, em Moscovo, uma paragem serve não apenas para descontrair e esticar as pernas, mas também para se ficar com a certeza de que a Rússia está a recuperar o seu fulgor e que caminha a passos largos para recuperar o seu papel central na arena política mundial.
Moscovo
Não há volta a dar, toda e qualquer viagem de comboio que passe pela Sibéria começa ou acaba na capital da Rússia. Opte-se por uma viagem organizada ou pelo improviso, é um erro não guardar um ou dois dias para se dar um passeio pela cidade. Nem que seja apenas para demorar umas horas à deriva pela Praça Vermelha ou pelo Kremlin, para atravessar a movimentada e cosmopolita Rua Arbat, visitar as fabulosas estações do metro construídas nos anos 30 ou descansar as pernas e os olhos no lago sobranceiro ao convento Novodevichy. As estações de onde partem as várias carreiras do Transiberiano ficam situadas na zona central da cidade, mas vale a pena notar que, dada a dimensão da cidade, é muito provável que seja necessário percorrer longas distâncias pelo seu miolo congestionado até se chegar às suas portas.
Kasan
Muitas das rotas do Transiberiano seguem por Vladimir, Nizhny-Novgorod e Perm antes de chegarem a Yekaterinburgo, já no coração dos Urais. Vale, no entanto, considerar a possibilidade de viajar via Kasan, que fica a 820 quilómetros da capital.
Kasan, a capital da Tartária, é uma cidade com mais de mil anos e o emblema da Rússia multicultural. O seu Kremlin (a palavra russa significa cidadela) é o espelho desse mosaico de culturas, com velhas igrejas ortodoxas lado a lado com uma moderna mesquita. Vale a pena considerar um breve cruzeiro pelo caudaloso rio Volga, um dos rios míticos da Europa, de onde se pode avistar o “skyline” da cidade. A parte reconstruída da cidade convida a passeios pedestres. É irrecusável uma caminhada pela Rua Baumana até à Praça Turkaya, onde ao final da tarde os cidadãos de Kasan gostam de passar umas horas de descontracção.
Iecaterimburgo
A cidade fundada por Pedro, o Grande, para explorar as enormes riquezas naturais dos Urais é actualmente um dos principais pólos industriais da Rússia. O centro urbano fica a uma hora a pé da estação ferroviária. Não sendo em si uma cidade tão interessante como Kasan, Iecaterimburgo, actualmente com 1,3 milhões de habitantes, tem algumas ruas no centro que vale a pena cruzar e um jardim fronteiro a um lago artificial aprazível, onde se encontram jovens a namorar e idosos em pacientes jogos de xadrez. Obrigatória é a visita ao Memorial aos Romanov, uma enorme e moderna igreja construída sobre as ruínas da casa onde o último czar, Nicolau II, e a sua família foram assassinados pelos comissários do Partido Comunista, em 1918.
A igreja em si não é nada de extraordinário, mas a sala onde estão depositados os restos mortais da família imperial é um lugar comovedor. Quem gosta de História deve também visitar o museu militar da cidade, onde se podem encontrar desde os famosos tanques T-34 da II Guerra Mundial a exemplares de mísseis dos anos 70 e 80. Iecaterimburgo (Sverdlovsk, nos tempos da URSS) é ainda um bom lugar para se comprarem pedras preciosas da região.
Novosibirsk
A cidade que, de forma não oficial, é considerada a capital da Sibéria, deve a sua existência ao Transiberiano e ao rio Yenisei, uma estrada fluvial que liga o coração do continente às paisagens geladas do mar de Kara, no Ártico. Novosibirsk (Nova Sibéria) é um caso de estudo do urbanismo, não por ser uma cidade acolhedora, mas por ter atingido o seu primeiro milhão de habitantes em menos tempo que Chicago (em menos de 50 anos). Os custos da façanha adivinham-se nas suas ruas largas e razoavelmente inóspitas ou no gigantismo dos seus edifícios públicos, que cumprem com todo o zelo as melhores regras da arquitectura estalinista.
É, portanto, uma cidade feia e razoavelmente desalmada. A poucos quilómetros de distância pode-se visitar Academgorodok, a cidade da ciência projectada na era Krustchev para acolher até 40 mil cientistas, potenciar as riquezas naturais da região e afirmar a União Soviética como uma potência científica. Com o colapso do regime, a cidade construída de raiz perdeu muito da sua aura, mas é ainda um centro de excelência para várias áreas da ciência. Visitá-la serve apenas para se perceber como é que as ideias do planeamento central eram concretizadas ao pormenor.
Irkutsk
Os russos chamam-lhe a “Paris da Sibéria” e não há dúvida que a cidade que fica a apenas 50 quilómetros do Lago Baical se distingue das restantes urbes siberianas pela elegância das suas ruas ou pelo cosmopolitismo de muitos dos seus espaços públicos.
A este facto não é estranho o exílio de muitos liberais “dezembristas”, em 1825, que lhe emprestaram uma atmosfera cultural radicalmente diferente e vagamente exótica. Em Irkutsk é bom passear pelas suas ruas largas, espreitar as montras, observar o majestoso rio Angara dos muros da sua avenida marginal, visitar as tradicionais casas de madeira com as suas janelas coloridas, tradicionais da região, ou, simplesmente, recuperar energias em algum dos seus muitos cafés confortáveis e requintados.
Talvez por todos estes atractivos, a cidade é um ponto de paragem obrigatório para os viajantes do Transiberiano. O outro é sem dúvida o Lago Baical, uma maravilha natural que tanto serve de praia no Verão como de interminável pista de gelo no Inverno. Listvyanka, uma pequena povoação junto ao lago, é o destino de todos os que procuram descobrir os segredos do lago que armazena uma quantidade de água potável capaz de suprir as necessidades do planeta durante mais de 40 anos.
Nove mil quilómetros de comboio
Se por acaso tiver a ideia de atravessar o continente euroasiático, basta-lhe reunir tempo e dinheiro para comprar bilhetes porque é possível ir de Vila Real de Santo António a Ho Chi Min, no Vietname, sem sair dos caminhos-de-ferro. Teria então percorrido aproximadamente 25 500 quilómetros, dos quais 9289 cruzariam as imensas planícies siberianas entre Moscovo e Vladivostoque. Mas teria muitas outras alternativas, seja a Norte pelas planícies tomadas pelo gelo permanente na maior parte do ano, ou pelo Sul, via deserto do Gobi ou pela Manchúria. Entre as quatro forma de cumprir o destino do Transiberiano, a rota mais emblemática é a que liga Moscovo a Vladivostoque. Por ser a primordial, mas também porque é a que atravessa por completo a Sibéria desde a Rússia europeia até às margens do mar do Japão. Mas há outras opções que, tendo por base a Sibéria, têm como destino Pequim, seja via Mongólia (Transmongoliano) ou através da Manchúria (Transmanchuriano). No primeiro caso, desde Moscovo será necessário percorrer 7865 quilómetros; no segundo, 9001 quilómetros. Nas rotas que cruzam a Sibéria, há ainda a possibilidade de uma outra viagem por caminhos ainda mais remotos, através da Linha Baikal-Amur, que liga Tayshet, no troço do Transiberiano entre Krasnoyarsk e Irkutsk, até ao mar do Japão, em Vanino.
E se é um verdadeiro amante dos comboios, ao longo da linha tem ao dispor uma série de conexões que o podem levar aos mais remotos e fascinantes sítios da Ásia central, seja Astracam, na foz do Volga, Samarcanda ou Alma-Ata. É só escolher...
Viagens para todos os gostos
A travessia da Sibéria (ou as derivações para a Mongólia ou a Manchúria) pode ser feita de muitas maneiras diferentes. A primeira questão que se debate entre os fanáticos do Transiberiano é a de saber se a viagem ideal se faz sem parar entre Moscovo e Vladivostoque (ou Pequim), ou se o ideal mesmo é fazer pequenas paragens de algumas horas ou dias nas principais cidades. No primeiro caso, são necessários entre oito a nove dias de viagem ininterrupta (excepto as paragens técnicas de 20 minutos nas principais cidades, fundamentais para esticar as pernas e repor os stocks de água e mantimentos); no segundo, o tempo investido varia de acordo com a vontade de cada um.
A maioria esmagadora dos viajantes do Transiberiano recorre aos comboios das linhas regulares dos caminhos-de-ferro russos, com ou sem extensões à Mongólia ou à China. Uma consulta às tabelas de horários mostra que as opções são quase infinitas, embora as ligações sem mudanças de comboio entre a capital russa e Pequim se façam privilegiadamente através das carreiras 1 e 2 Rossiya (para Vladivostoque), as 3 e 4 Mongólia para Pequim via Mongólia, e as 19 e 20 Vostok na linha que cruza a Manchúria. Os bilhetes podem ser comprados em agências de viagens especializadas ou nas próprias estações - cuidado com as reservas em tempo de férias. Os preços entre Moscovo e Vladivostoque variam entre os 260 e os 1020 euros para segunda classe (Kupé, em compartimentos de quatro pessoas) e os 450 e os 1500 para a primeira classe (SV, com compartimentos para duas pessoas e, em alguns casos, com lavatório). A ligação a Pequim via Mongólia, que é de longe a mais procurada pelos viajantes, custa entre 230 e 800 euros.
Uma outra opção, mais confortável mas menos aventurosa, é através de viagens organizadas por grandes operadores internacionais. A oferta (e os preços) varia imenso, assim como as rotas e os dias de viagem.
A Fugas viajou num comboio organizado pela agência alemã Lernide, que é representada em Portugal pela agência Trópico, e o programa proposto dura 15 dias, tem início em Moscovo ou em Pequim e os preços vão desde os 6780 euros e os 8000 euros por pessoa em ocupação dupla nas classes standard, 8040 euros na categoria Nostalgia, em carruagens construídas na era Krustchev para membros do Governo soviético, e 10240 euros na classe Bolshoi, de luxo. Este programa abrange seis noites de hotel (uma em Moscovo, uma em Irkutsk, duas em Datong e duas em Pequim), transporte e guias especializados nas sete paragens do percurso, e alimentação completa. Para este ano os programas estão já esgotados e o operador recomenda aos potenciais interessados que comecem a planificar as pensar nas viagens planeadas para o próximo ano a partir de Outubro.
Se no primeiro caso, o que conta é a incerteza da viagem e a surpresa da descoberta, neste caso só o segundo factor é relevante. A impecável organização alemã poupa os aderentes ao programa a todo e qualquer incómodo relacionado com malas, com vistos ou com questões essenciais como o que ver ou o que comer. A dimensão cultural da viagem é particularmente cuidada, com concertos e representações privadas em várias cidades.
Apesar de todo o conforto, porém, é muito provável que alguns dos clientes dos programas como o do “Czar Dourado” olhem para os comboios das linhas regulares com que se cruzam ao longo da viagem e suspirem por um pouco da aventura dos que o habitam. Mas é também certo que os jovens que os espreitam do lado de lá hão-de invejar o conforto e a privacidade dos adeptos das viagens organizadas. Entre uns e outros, permanece a equação essencial: o prazer de cruzar a vastidão siberiana, que é o que verdadeiramente conta.
2.ª parte: Nas estepes de cores amenas
A Fugas viajou a convite da agência Trópico