Fugas - Viagens

Ich sou un zhurnalist europeo em voyage by train pela Europa

Por Luís J. Santos (texto), Joana Bourgard (vídeo)

Um jornalista alemão, outro italiano - Mark Spörrle e Beppe Severgnini. Duas semanas para cruzarem a Europa, de Moscovo a Lisboa, com paragem em onze cidades, numa odisseia pelos estereótipos e ideias dos europeus. Entre um carismático pintainho de peluche ou Nossas Senhoras de Fátima que dizem o tempo - também estrelas do nosso vídeo -, fomos esperá-los a Santa Apolónia e passear por Lisboa.

O sol já começa a arder quando o comboio entra lentamente pela lisboeta estação de Santa Apolónia. Chega ao fim da linha. De dentro, salta uma comitiva especial de "turistas": dois jornalistas, o italiano Beppe Severgnini e o alemão Mark Spörrle, uma tradutora e um repórter vídeo. Há um quinto elemento, um pintainho, também especial, mas de peluche, estrela desta viagem e com direito a papel carismático no projecto Moscovo - Lisboa. Todos juntos passaram duas semanas a tentar perceber a Europa, sempre de comboio, cruzando onze cidades em nove países.

É um europrojecto de análise e diálogo, mas também com muito humor, reportado em jornais e blogada e mostrada em vídeo, para perceber estereótipos e preconceitos, tirar as medidas ao "edifício europeu". "O que mais impressiona", há-de dizer-nos Severgnini, jornalista italiano de longa carreira e duas dezenas de livros, "não são as diferenças, mas as semelhanças". "Quando pensas que és português, que sou italiano, Mark alemão e que chegamos da Rússia, pensas que todos estes países são muito diferentes. Mas a realidade é que há muito em comum entre Moscovo e Lisboa, Viena e Marselha." Na Europa, "concentramo-nos nas diferenças, que existem, claro", mas "as semelhanças são mais óbvias e importantes". 

Na realidade, quando Severgnini e Spörrle saltam com as suas malas do comboio em Santa Apolónia e são recebidos por uma comitiva do instituto alemão Goethe, organismo que apoiou e organizou a iniciativa em colaboração com os jornais em que trabalham os autores (da Itália, Corriere della Sera; da Alemanha, Die Zeit; além de parcerias com outros periódicos, PÚBLICO, via Fugas, incluído), o que impressiona e faz abalar qualquer estereótipo é que não é fácil, à primeira vista, perceber qual é o alemão, qual é o italiano. E fica logo um cliché abalado. 

"Eu é que sou o alemão", dir-nos-á Beppe, sem sotaque italiano e num inglês sem mácula - não em vão, além de distinguido com o prémio Jornalista Europeu do Ano em 2004, é também Oficial do Império Britânico -, já entre o frescor do pátio-jardim do mui internacional hotel York House; "e sou sempre pontual". "Eu estou sempre atrasado. Diz ele", atira Spörrle, com um indisfarçável sotaque germânico. "Sou mais italiano do que pensava", remata. 

Spörrle e Severgnini, conversadores e curiosos, têm anos de experiência tanto de grandes viagens de comboio como de escrita, séria ou humorística, de futebol a sociedade, de política a viagens. Mesmo assim, o que os surpreendeu, diz Beppe, foi esta ter-se tornado "uma viagem muito política". "Não estava à espera" "Vivemos tempos muito políticos", conclui Mark.

Esta odisseia Moscovo - Lisboa, iniciada a 29 de Abril, que terá direito a documentário a estrear em Setembro, terminou na capital portuguesa a 13 de Maio, tendo sempre um registo de reportagem em progressão e sendo a sequela de uma primeira experiência, concretizada em 2010, também sobre carris, entre Berlim e Palermo. 

Na altura, dedicaram-se ao contraponto alemães x italianos. Agora, alargaram a análise a grande parte da Europa: por Kiev (Ucrânia), Cracóvia (Polónia), Praga (R. Checa), Viena (Áustria), Zurique (Suíça), Lyon e Marselha (França), Barcelona e Madrid (Espanha), por fim Lisboa. Foram investigando as gentes e ideias das Europas, as peculiaridades cómicas ou dramáticas. Foram contrapondo os seus pontos de vista, como italiano e alemão, como europeus. Mas também criaram um verdadeiro guia de viagem, em registo crónica, onde não faltam dicas, sugestões e mesmo críticas a hotéis, naturalmente a comboios, ou a restaurantes, monumentos e atracções. 

"O comboio é como um teatro, onde se mudam os actores e o cenário a todo o momento, é um teatro em movimento", resume Beppe. "Fizemos o que americanos, chineses ou japoneses fazem." E sorri enquanto caracteriza a viagem feita como "uma versão adulta do InterRail, quando "se salta para um comboio e simplesmente se vai". O que fizemos foi viajar como os jovens, mas... olha para o meu cabelo [grisalho], eu estou nos cinquentas". 

Para Spörrle, quarentão moreno e ar de galã, o acto de viajar de comboio é ainda mais significativo, até porque escreveu "Senk ju for träwelling - Como viajar de comboio e realmente chegar ao destino". A grande viagem de comboio "é a última grande aventura europeia", diz, "conhecem-se as mais interessantes pessoas, conversa-se com elas". E foi isso que fizeram durante as suas semanas europeias, saltando de país para país, de hotel para hotel, sempre na companhia da romana Soledad Ugolinelli, tradutora e organizadora, e do milanês Gianni Scimone, repórter vídeo. Um quarteto de rotinas rápidas e em contínua reportagem, escrita, tradução, filmagem, publicação em papel e na net. Ao fim de 15 dias, "uma família" e, não em vão, à chegada a Santa Apolónia, quem recebeu 15 rosas foi Soledad, uma por cada dia de viagem.


O rio do mundo

Eleita como meta, foi uma ardente Lisboa que acolheu os jornalistas. Pela cidade, a guia-por-um-dia escolhida para traçar a rota, a designer Catarina Pestana, portuguesa sem estereótipos tradicionais à vista, óculos de sol cinematográficos, tatuagem a florescer braço abaixo e habituada inclusive a desconstruir e abalar ideias feitas nos seus trabalhos, até os queria levar pela Almirante Reis, do "posh" das Avenidas Novas à "zona do Técnico, onde tem a prostituição nocturna", até aos Anjos e sua igreja, ao Intendente, à Mouraria, ao Rossio e pela Augusta até ao rio, percurso com vista para a trilogia lusa do "religioso, político e sexual"e para os 3+1 Fs de Portugal: Fátima, Fado e Futebol e (de novo) FMI. 

Mas o tempo não dá para tudo e ficámo-nos por Belém, com direito a muitos turistas, Torre e Padrão dos Descobrimentos, rio e mar, Cristo-Rei e ponte; ícones pré-planeados pela dupla para uma simbólica cena-vídeo final, seguindo-se depois o Tejo até ao Terreiro do Paço. Spörrle e Severgnini vão admirando as vistas, conversando com quem encontram, cruzam-se temas lusos, da política à literatura, do Alqueva a Obras de Santa Engrácia, filmam-se a si próprios de dedos em riste a apontar para o mar com Padrão de Descobrimentos ao lado. 

A capital portuguesa não revelou muito à dupla, até porque já a conheciam. Severgnini já estivera várias vezes em Portugal, portanto a sua ideia sobre o país já estava formada. "Penso em Portugal e penso em fado, futebol, Fátima e mulheres, que são das mais atraentes" da Europa, resume o jornalista. O seu camarada é que só estivera em Lisboa uma vez: "futebol, não, que não aprecio muito, mas fado, família, hospitalidade, comida, bebida, claro também mulheres, mas sem bigode", brinca, quando o jornalista português os espicaça em relação a essas imagens estereotipadas. Mas os estereótipos só lhes servem para a brincadeira e como base assumida de trabalho. O que lhes interessa são as melhores das diferenças, as melhores das semelhanças. 

Nesta "coisa chamada Europa", "há tantas coisas semelhantes, o café de manhã, hábitos, igrejas, os cheiros, o céu, a atitude das pessoas". "Claro que há diferenças, mas é um sentimento de viajar numa terra conhecida, que é a nossa terra." E Lisboa deve ter-lhes parecido território ainda mais familiar. Além da tradicional passeata por Belém ou Terreiro do Paço, a passagem por Lisboa incluiria mais uma volta à Baixa ou uma visita ao Instituto Italiano da Cultura, além de um almoço privado com o também jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares, conhecido de conhecidos do profissional italiano enquanto o alemão trazia o título do bestseller "Equador" debaixo da língua.

Já pelas outras cidades do circuito, os dois foram-se surpreendendo (e divertindo) nas mais diversas actividades. Em Moscovo, e logo no Dia do Trabalhador, descobrem a Praça Vermelha turística ou o tempo livre moscovita em parques e centro comercias. Em Kiev, espantam-se com a vontade de todos os ucranianos parecerem querer deixar o país e só se falar de dinheiro. 

Ouvem coisas como "os italianos são algo rudes, os alemães são educados" em Viena, na Polónia admiram João Paulo II superstar, maravilham-se com a gastronomia e cerveja em Praga e tanto nos conduzem pelos corredores de hotéis lendários como por comboios de luxos inesperados, surpreendem-se com a beleza monumental de Lyon, fazem estudos filosóficos sobre o "design hotel", pedalam e aproveitam a praia em Barcelona, entrevistam alunos de jornalismo em Madrid e pedem-lhes para dar nota à Europa enquanto aproveitam para um joguinho de bola (Severgnini é fã do Inter de Milão até ao excesso, com três livros publicados sobre o assunto - "Mourinho, para mim, é o maior"). Pelos vídeos desfilam as belezas e quotidiano de cada cidade, detalhes picarescos e sociais, políticos e humanos. 

"Há caucus nacionais, a Europa existe, e há um denominador comum europeu. E fico contente por os portugueses serem diferentes dos alemães, os alemães de nós, e nós dos britânicos, a boa coisa da nova Europa, é usarmos as diferenças para nos divertimos. Podemos gozar com os nossos amigos, não podemos gozar com os nossos inimigos", diz Severgnini. A sua celebridade como analista da sociedade italiana (o último livro é sobre o primeiro-ministro Berlusconi), aliado ao facto de moderar há 13 anos o fórum "Italians" do Corriere, fez também com que, em cada cidade, fosse recebido por italianos, incluindo em Lisboa, onde foi reconhecido na rua por um casal de turistas e, mais uma vez, acabou na conversa.


Go West

Entre indagações e diálogos, o momento alto lisboeta, quando chega, sob o sol quase a pico, na milagrosa manhã de 13 de Maio, é com os dois sérios jornalistas de calças arregaçadas até ao joelho e muito turista de boca aberta. Spörrle e Severgnini, de pés numa água escura e mal cheirosa à beira da Torre de Belém, procuram lançar ao mar um barquinho, feito ali em estaleiro improvisado com o jornal mais à mão (um PÚBLICO, onde por coincidência se lê na capa que Duas zonas da Grande Lisboa estão a afundar-se). 

É um barco que da popa à proa é feito de notícias de crise e resgate, FMI e UE, patriotismos e partidos mas também de viagens, sob o mote da Liga Europa a Dublin via Fugas, ou de unanimidade e alegria para com a escrita iluminada de Manuel António Pina, Prémio Camões. Neste barquinho de notícias, um marinheiro especial: um pequeno pintainho de peluche, quase um Calimero, mas amarelinho e sem casca de ovo como capacete. Faz-se à água o pintainho marinheiro nesta caravela de notícias sobre uma Europa em crise de nervos. 

Mas isto, já se vê, é apenas um alegórico ponto final nesta odisseia de Spörrle e Severgnini, Enquanto se esquadrinha a Europa, o pintainho marinheiro, na verdade propriedade da filha pequena de Spörrle e a quem o pai prometeu uma foto da ave em cada cidade que passasse, é salvo no último segundo de uma nevrótica e ameaçadora onda de meio palmo e regressa são e salvo ao passeio de Belém, no seu barco de notícias. Um milagre, talvez abençoado pelas estatuetas de Nossa Senhora de Fátima - umas que mudam de cor conforme o tempo, que os jornalistas receberam de souvenir minutos antes, prenda da "guia" Catarina, no dia em que se celebra a aparição da Virgem na Cova da Iria. 

O riso dos jornalistas é contagiante face a tanta idiossincrasia kitsch junta. Mas os olhos brilham-lhes um pouco mais perante a tradução de um poema de Caeiro/Pessoa escrito a letras brancas de estrada no alcatrão ribeirinho: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia." Simples complexidades pessoanas a fecharem a Europa com saída de emergência directa para o mar. Não em vão, Spörrle e Severgnini já têm novo destino marcado para 2012: vão seguir em odisseia pelas Américas. Eles bem tinham apontado o dedo nessa direcção.

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