Jardim Botânico do Porto
Refúgio literário
Está com rosto diferente. Não é de hoje, nem de ontem, é da exposição A Evolução de Darwin. Para quem sempre conheceu o palacete branco, ainda choca este vermelho sangue de boi que agora refulge entre os bosquetes que flanqueiam a entrada. "Uma questão de hábito", reflecte Manuel Martins, que mais à frente há-de recordar "vir aqui às canas quando era miúdo, para a pesca". E, afinal, a opção por esta cor não foi um capricho, foi um regresso às origens, supõe-se. Origens que são "caseiras", que é como quem diz, este jardim era o jardim de uma residência (que na sua génese terá sido um armazém ou uma fábrica) e desde 1951 é o Jardim Botânico do Porto, agora sob a alçada da universidade. Não era, portanto, um jardim qualquer - as suas plantas tinham evidente interesse botânico e, além disso, revestia-se, reveste-se, de importância histórica (herdeiro das quintas de recreio do século XIX) e literária (Sophia de Mello Breyner Andresen e o primo Ruben A. ancoraram aqui - na casa dos avós - memórias de infância que depois transbordaram para os seus livros).
Neste sábado à tarde, o palacete está fechado - aberto apenas o Bar Góshò, nas traseiras, com poucas mesas ocupadas - e na sua escadaria um grupo de adultos e crianças espera o início da "caça de anfíbios", iniciativa no âmbito do Ciência Viva no Verão, à sombra de araucárias centenárias e tílias. Nós vamos com um pequeno grupo das Rotas Verdes, promovidas pela Junta de Freguesia de Lordelo do Ouro, e cruzamo-nos com pouca gente: parece quase novamente o jardim de uma casa e não um jardim público de entrada gratuita.
Um jardim com um liquidâmbar centenário, enorme, e um Jardim das Suculentas, "erradamente conhecido por jardim dos cactos", de forte impacto visual - e de temperatura: aqui estamos irreparavelmente ao sol com cactos impressionantes e o mar a brilhar ao longe. A sombra está no arboreto, no que muitos consideram o mais "exótico" do jardim, as suas árvores: biscófias, sequóias, salgueiro-chorão e tília-chorona, magnólias, bétulas e faias, sobreiros e carvalhos, entre fetos e arbustos e quase parece A Floresta, de Sophia.
Os jardins históricos são três e delimitados com muros de camélias (aos quais Ruben A. já não faz "esquadrias tangentes" de bicicleta), que por estes dias estão discretos. O Jardim dos Jotas tem buxo a desenhar a letra (de João e Joana Andresen, os avós dos escritores) mas não se ouve a sua voz, "pequenina, húmida e verde", como escreveu Sophia; o Roseiral abre directamente para as traseiras da casa e foi desenhado à imagem de um tapete que estava no salão de baile - por estes dias estão secas as rosas; o Jardim do Peixe, ganhou o nome pelo desenho do canteiro central.
O Jardim do Xisto, modernista e aquático (nenúfares e papiros como esconderijo de rãs), é um dos da autoria de Franz Koepp, responsável pela reconversão da quinta em jardim botânico na década de 50. Também ele recuperou os que podem ser considerados os "jardins literários" (depois designados de Jardim dos Anões e do Rapaz de Bronze), que mantiveram a traça original e, portanto, as memórias que Sophia ficcionou curiosamente mais ou menos na mesma altura (irresistível tocar na meleleuca, a árvore do papel, cujas cascas eram utilizadas pelas crianças da casa para fazer as casas dos anões).