Fugas - dicas dos leitores

Fernando Veludo/nFactos

Rio de Onor, a fronteira invisível

Por Luís Robalo

Todas as manhãs andam os dois numa trabalheira: o cão, enorme, todo branco com uma mascarilha farrusca no focinho, a dar-se ares de encapuzado, e o pastor ensimesmado e de falas nenhumas. Nunca se lhes viu trocarem uma palavra, apesar de andarem há anos juntos.

Uma aldeia no fim do mundo, ou no princípio. Uma linha imaginária a traçar um meio, uma divisão territorial abstracta nas gavetas dos burocratas. De um lado Portugal, do outro a Espanha, sem diferenças.

Só os transeuntes raros e vagos põem nos óculos esses filtros, porque leram algures, ou ouviram dizer algures que neste povoado comunitário — metade de uns, metade de outros — as pessoas coexistem sem fronteiras, o que de si dá o tom sensacionalista à notícia: uma aldeia excêntrica onde duas nacionalidades comuns coabitam.

Partilha do mesmo espaço, em casas de granito com telhados de xisto, que se espelham num rio cristalino nos dias em que o sol projecta imagens.

Para se chegar a este sítio o carro despede-se da cidade. Também esta um isolamento, ainda assim com gente circulando ou passeando (não se sabe) nas ruas. Derramando-se algumas em cavaqueira solta nos cafés com nomes de outras terras: Café Lisboa, Café Parisiano, o Central — todas as cidades têm um Café Central.

Esta geografia agreste mas muito bela convida ao recolhimento: “Nove meses de Inverno, três de inferno”. Os ditados são sempre infalíveis, revelam a nudez das coisas em palavas simples.

Atravessa-se um planalto despido de sinais humanos. Pelo caminho um aeroporto sem aviões. Está ali como símbolo, símbolo de quê? Do progresso das ligações rápidas entre dois pontos distantes. Aqui isso não funciona: ninguém quer aterrar no meio do nada; ninguém do nada quer voar para onde está tudo. São duas posições, ou melhor, declarações de princípio incompatíveis e irreconciliáveis: o nada e o tudo.

No aeroporto que até tem uma torre de controlo, a única manifestação de vida é um catavento de riscas vermelho e branco — medidor de direcções — que destoa dos tons verde e castanho, o arco-íris das cores da terra nesta altura do ano.

Depois do planalto, no recorte de uma muralha salpicada de neve nos cumes — terras da Sanabria — começa-se a descer ziguezagueando curvas apertadas e estreitas até se chegar ao portão da aldeia. Portão que não existe mas que cola bem que a ideia de um paraíso: só entram os eleitos.

Mal se sai do carro e se fecham portas ouve-se o ladrar dos cães, mesmo assim um ladrar educado, a espaços, de baixo volume, como manda a boa educação dos cães. Nos intervalos, o som do nada. Quase todo o tempo neste povoado é um intervalo.

Pelas manhãs em horas matinas de névoas frescas, o farrusco e o seu chefe atravessam as ruelas silenciosas engrossando a procissão das ovelhas e das cabras que nos seus automatismos de transumância saem ordenadas das lojas do casario. Estas são o celeiro e os currais, o rés ao chão das casas, o local onde se guarda a riqueza das gentes: os produtos paridos da terra, os animais da maior estimação.

O bafo quente dos habitantes animais compactados nas lojas faz o aquecimento do piso de cima, onde os habitantes homens recolhem à noite para remoer recordações com os olhos fixos nos braseiros.

Quando se fala, não se fala nem a língua de Castela nem a da Lusitânia, fala-se numa comunicação própria, costurada anos e anos nos convívios das gentes da aldeia. Se assim se entendem é porque entendem tudo, a sua língua é rica.

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