Fugas - dicas dos leitores

Carta da Coreia do Norte

Por Miguel Gouvea (texto e fotos)

Miguel Gouvea está a fazer uma longa viagem pela Ásia. No final de 2015, entrou na Coreia do Norte e rumou a Pyongyang. Nesta carta familiar conta as suas impressões.

Olá família,

Chega agora a altura de falar da visita ao estranho país que é a Coreia do Norte — considerado um dos países mais isolados e um dos regimes menos democráticos, mais controladores e mais esquizofrénicos do mundo. Apenas alguns dias depois de lá ter estado, a Coreia do Norte testou com sucesso a bomba de hidrogénio…

Esta visita já começou atribulada mesmo antes de voarmos para Pyongyang. Marcámos o tour de Xangai para Pyongyang com uma das maiores empresas que faz este tipo de circuito — são poucas as empresas autorizadas a fazer circuitos na Coreia do Norte, e saem sempre da China, por avião ou comboio de Pequim e de Xangai. Já não era barato — um circuito de um dia e uma noite em Pyongyang anda à volta de 500 e muitos euros — e, surpresa, uma semana antes dizem-nos que a Air Koryo, companhia de aviação da Coreia do Norte, e única a fazer este tipo de voos, tinha cancelado o voo de Xangai e só havia três soluções, qual delas a melhor. Ou nos entregavam o dinheiro que tínhamos pago, ou podíamos ir uns dias mais tarde no circuito de uma semana — pagando a diferença, claro, e era mais de mil euros — ou, melhor proposta de todas, podíamos ir em Fevereiro de 2016 no mesmo circuito, e veja-se que até tínhamos 50 euros de desconto!

Após troca de emails, lá acabaram por nos apresentar uma nova solução, voar de Pequim para Pyongyang e de regresso de Pyongyang para Xangai. Moral da história, tivemos de pagar os voos de Pequim para Xangai, dormir uma noite no aeroporto de Pequim, mas em contrapartida ganhámos mais uma tarde em Pyongyang.

Lá apanhámos o voo da Air Koryo, companhia que está sempre na luta pelos lugares cimeiros do ranking de companhias mais perigosas do mundo — aviões velhos, manutenção duvidosa e nem informação de segurança fazem antes do voo. Mas tirando isso, e a comida que não era realmente muito boa, a viagem até se fez bem – e até ganhámos revistas de propaganda, em coreano e em inglês, para nos começarmos a ambientar ao regime.

À chegada ao aeroporto, muita demora, muito controlo e uma sala onde éramos obrigados a abrir o computador, o telemóvel e, pasme-se!, até o disco externo. A pergunta frequente era se tínhamos filmes guardados, o que penso ser resultado de uma sátira feita por Hollywood, A Entrevista — imagino que se alguém for suficientemente descuidado e tiver esse filme no computador, pura e simplesmente deve ser recambiado de volta.

Passada esta fase lá partimos, e felizmente ficámos num grupo pequeno de três pessoas — eu, o Maico e um americano de Nova Iorque —, tantos quantos os nossos guias, uma vez que não se pode viajar sem guia na Coreia do Norte. Eles pareciam ter a missão não só de nos apresentar Pyongyang da melhor maneira possível, como de não nos perder de vista.

Primeira paragem mesmo antes de irmos para o hotel, a necessária visita e homenagem ao memorial com as estátuas de bronze de 20 metros de altura do líder actual Kim Jong-un, e antigo líder e pai, Kim Jong-il. Parte engraçada da história: se um grupo de estrangeiros quiser chegar perto das estátuas tem não só de fazer uma vénia, como comprar e oferecer flores!

O hotel onde ficámos era simplesmente um dos melhores de Pyongyang — duas torres enormes (mais de 50 andares, dando a ideia de estar grande parte desocupada), quartos enormes (até hall de entrada tinham) com decoração dos anos 1980 e vários restaurantes, entre eles o restaurante giratório no topo, onde jantámos — sempre nos levaram a restaurantes para os padrões coreanos muito bons, mas foi o único lugar onde se pode dizer que a comida estava boa.

A pobreza e isolamento do país vêem-se também assim — mesmo tentando dar o melhor aos turistas, havia coisas, como a carne, que se via que não eram de grande qualidade. Depois de jantar ainda fomos a um dos bares da moda, meio vazio, e onde vivenciámos outra carência — não estávamos lá ainda há meia hora e faltou a luz. O dia não terminou sem que fizéssemos uma partidinha de pingue-pongue no hotel, desporto muito famoso.

No dia seguinte acordámos com um nevão tão grande e prolongado como não me lembro de ter visto.

Fomos novamente ao memorial, para agora o vermos com luz do dia. Havia filas enormes de pessoas que estavam à espera para prestar homenagem, algo que pelos vistos acontece com frequência e mais ainda nos dias especiais — fazia quatro anos que Kim Jong-un acedeu à cadeira da liderança. A primeira foto que vos envio é exactamente deste momento.

Seguiu-se um passeio a pé que nos levou do memorial à praça principal. Depois apanhámos o transporte para irmos visitar e subir à torre Juche, com os seus 170 metros de altura (a ideologia juche é marxismo-leninismo-kimilsunismo). Pode-se ver também a estátua com os três elementos importantes do partido Comunista da Coreia do Norte — o martelo, a foice e, agora a inovação, a pena para escrever.

A vista não estava particularmente agradável, por causa do forte nevão. Contudo, há outra história para partilhar. À entrada da torre foram colocadas várias placas, oferecidas por grupos, normalmente um de cada país — quem haveria de ter quatro placas? Portugal. E mais, fiquei a saber que existe pelo menos um Comité Português de Estudo do Kimilsunismo (e com quatro grupos — Queluz, Lisboa, Amadora e Estoril)!

À tarde começámos no novo museu militar, uma das principais obras mandadas construir pelo novo líder. Numa parte do museu estão exibidas as armas capturadas de 1950 a 1953 aos americanos (tanques, helicópteros, aviões abatidos…). Mas a jóia da coroa é posterior, de 1968, quando foi preso um barco supostamente espião, e toda a tripulação americana — o USS Pueblo —, até vídeo sobre isso fomos obrigados a assistir (a tripulação esteve quase um ano presa e só foi libertada após carta oficial do Governo americano, a pedir desculpa). Outra coisa caricata do museu é ver o rosto do actual líder em muitos quadros, como se ele na década de 1950 já fosse vivo.

Um dos últimos lugares que visitámos foi a suposta casa onde nasceu o “Grande Líder”, Kim Il-sung, avô do líder actual — fica num parque bonito, mas dá a ideia de ser uma grande invenção. Já no final do dia, a nosso pedido, fomos ao circo. O espectáculo foi bonito.

Mais quatro coisas a que achei piada e de que ainda não falei: os cartazes e publicidades muito típicos dos países ditos comunistas; as polícias sinaleiras que rodavam o pescoço de forma frenética; ter voltado para Xangai num velhinho Tupolev.

E os guias, que eram muito simpáticos e até abertos, mas que só estavam autorizados a mostrar as partes boas de Pyongyang (por exemplo, num momento vimos um autocarro avariado e não queriam que tirássemos fotos) e que, como toda a população, são alvo de lavagem cerebral.

Já no fim da viagem, o americano abriu a mochila para guardar qualquer coisa e estava lá um jornal dobrado — a guia ficou preocupadíssima porque viu que na capa estava uma foto do líder e que a dobra passava-lhe exactamente pela cara. Pediu-lhe simplesmente para o dobrar “correctamente”.

Abraços,
Miguel

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