Firmino Alves, o concierge
(Sheraton Porto Hotel & Spa)
Não é a primeira cara que os hóspedes vêem quando chegam ao Sheraton Hotel & Spa do Porto, mas quase. Não é a primeira cara, mas até já foi. Na verdade, Firmino Alves, 52 anos, começou a trabalhar neste hotel pouco antes da abertura oficial (2004), como trintenário. “De cartola, sobretudo, luva branca”, descreve — iguais aos que ainda hoje recebem os clientes à porta do hotel —, e com regras rígidas — “Não abrir a porta enquanto pagam o táxi, as senhoras primeiro…”. Agora, e depois de ter sido director de noite, é o concierge, que é como quem diz, lidera a portaria. “A ideia do concierge pessoal já passou de moda nos hotéis de cinco estrelas porque as tecnologias também ajudam”, explica.
Como concierge, Firmino não tem um espaço físico de trabalho fixo (nem tão- pouco horário, “depende da operação”). “Faço cobertura total na portaria.” Isso pode passar por receber o cliente ou subir a bagagem, tirar dúvidas ou aconselhar serviços. Ou até arranjar um táxi para ir a Fátima comprar uma imagem da Nossa Senhora de 1,50 metros, benzida com água benta, porque uma hóspede brasileira partiu a sua no hotel.
A sua especialidade é, porém, ajudar os clientes a delinearem um plano de estadia na cidade — e a concretizarem-no: todas as marcações necessárias para que o hóspede consiga viver a sua experiência portuense ao máximo passam por ele. “Tenho de gerir um pouco o que os clientes pretendem fazer no Porto”, afirma, “e adequar os serviços ao perfil de cada um”. “Se querem subir o rio, e quase todos querem, posso sugerir que o façam de barco e regressem de comboio para terem as duas perspectivas”, exemplifica. “Muitos chegam com o trabalho de casa feito, através da Internet, mas compram aqui, esperam pela nossa opinião ou sugestão.”
Firmino dá sugestões, mas também valida algumas das opções: é sua a responsabilidade de selecção de parceiros (apenas certificados) do Sheraton, ou seja, as empresas com quem o hotel trabalha directamente. “É algo mais profundo do que uma sugestão, estamos a dar a nossa aprovação, os nossos critérios são mais apertados.” De tal forma que é política do hotel que os funcionários da recepção usufruam das experiências dos parceiros, “para poderem recomendar com conhecimento”.
Depois de ter feito um pouco de tudo na hotelaria, em Portugal e no Luxemburgo — “só não fiz housekeeping” — Firmino está sempre disponível para servir de guia turístico informal da cidade, não só apresentando produtos para melhor a usufruir como contando histórias (há muita curiosidade com as tripas — “explico o que é e fazem ‘nãaa’”; com a francesinha...) e História. Essa é uma vocação inata. “Às vezes dizem-me: ‘É uma cidade tão pequena, o que vou fazer em oito dias?’ Eu sou apaixonado pelo Porto, há tanto para mostrar, transmito-lhes isso.” Em algumas ocasiões até proporciona visitas especiais, como no caso da sinagoga — se agora está aberta ao público, antes só abria por pedido e muitas vezes Firmino fez esse pedido para clientes americanos judeus. Os mesmos a quem conta a história da transferência do colégio alemão para a vizinhança da sinagoga. Uma das muitas que conta. “Procuro sempre arranjar pontos de contacto com os países de origem dos hóspedes. É um bom desbloqueador de conversas.”
Renato Rocha, o guest relations
Renato Rocha, 31 anos, fez toda a carreira no Sheraton Porto. Tem aqui uma outra família e não haverá ninguém que ainda não tenha visto a fotografia dos seus gémeos, que nasceram há poucos meses — colegas e hóspedes, entre eles muitos “residentes”, aqueles que todas as semanas aqui estão e alguns dos quais que até deram “prendinhas” para os filhos. Voltou ao trabalho no dia em que falámos com ele e, claro, também vimos as fotografias. Não o encontramos no seu posto de trabalho, uma secretária colocada entre o balcão da recepção e o restaurante Porto Novo, porque a sua função o obriga a mobilidade — e flexibilidade horária: é normal estar entre as 8h e as 12h, “para apanhar o check-out”, e entre as 15h e as 19h, “para o check-in”. Estudou Gestão Hoteleira e veio estagiar para o Sheraton em 2004. “Passei pela contabilidade, recepção, portaria, departamento de compras… Fiz de tudo”, conta. No final, convidaram-no para ficar na recepção e ele aceitou; entretanto, passou a guest relations, há cinco anos.
Este é um serviço que também “faz parte da recepção” e, na verdade, Renato continua a dar apoio no balcão, quando necessário. “Quando chegamos, nunca sabemos o que nos espera.” No entanto, o seu trabalho com os clientes é mais íntimo e constante. Sobretudo os clientes “muito habituais — “posso intervir num walk in mas não é habitual”. “A minha função é saber o que [os clientes habituais] pretendem do hotel”, explica, “quais são as suas preferências, quais os motivos da viagem”.
Os clientes mais habituais do Sheraton, os tais “residentes”, são normalmente homens de negócios, que passam semana após semana aqui, ausentando-se apenas ao fim-de-semana. A relação que estabelecem com o guest relations é tal que muitas vezes estes ligam directamente para Renato, seja para fazer reservas seja por outros motivos quaisquer. Contudo, há clientes “habituais” da cadeia (a Starwood) onde o hotel está inserido e aí Renato recorre ao departamento de reservas para descobrir mais coisas sobre os visitantes. “Desde alergias ou opção de almofadas até a datas de aniversários ou outras ocasiões especiais”, refere, “tenho, temos, acesso a tudo” — assim, quando chega o cliente, tudo foi preparado para que ele se sinta em casa; ou tudo foi preparado para lhe fazer alguma surpresa.
Não importa a tecnologia ao dispor, um guest relations vive da personalização de relações. E essas são mais estreitas com os residentes: conhecem-nos tão bem que no fundo se tornam numa espécie de “amigo” nesta que é afinal “uma primeira casa, porque passam mais tempo aqui”. “Não só eu, também toda a recepção, mas eu posso dar mais atenção. Dou um bocadinho de colo, eles desabafam…”, sublinha.
Contudo, a atenção do guest relations não surpreende apenas os clientes habituais. Renato dá um exemplo pessoal. Na sua primeira semana como guest relations chegou um casal com filhos, um walk in, recorda. O filho, de sete anos, veio para um torneio de ténis e passou para as rondas seguintes. Eles acabaram por ficar um fim-de-semana. Dois ou três anos depois, o casal voltou, Renato reconheceu-o e mencionou o ténis do filho. “A expressão dele! Vi-o a fazer rewind… Ainda hoje é nosso cliente e duvido que quando venha ao Porto fique noutro hotel.”
Orquídea Paulo, a governanta-geral
É uma personagem omnipresente no Sheraton — está em todo o lado e não está em lado nenhum. “Ando sempre a correr o hotel, passo pelo bar, pelo jardim, pelos corredores”, diz Orquídea Paulo, 52 anos, governanta-geral do hotel. Se o guest relations dá a cara na socialização com os hóspedes, a governanta-geral manobra verdadeiramente nos bastidores para dar resposta às exigências e mimos dos hóspedes. O que não significa que os hóspedes residentes não a conheçam — “Vamo-nos encontrando pelos corredores, trocamos sempre algumas palavras”. Há mesmo quem pergunte por ela, nota Renato Rocha. O que de alguma forma dá imagem de complementaridade entre as suas funções — “Eu estou por detrás do Renato”, brinca Orquídea. A concretizar pedidos, não importa quais. Com estes hóspedes residentes quase já sabe de cor as suas preferências: “O que quer duas almofadas, o que toma três banhos diários, o que não quer edredão porque prefere dois cobertores, o que quer o lençol de baixo mas não o de cima, o que gosta de colocar a mala do lado esquerdo, não do direito…”. A lista poderia continuar. E está, como já referimos, devidamente informatizada para que qualquer um possa antecipar as preferências de qualquer hóspede. “Se chega um cliente e pede almofadas x, o alerta fica registado para referência futura. E a partilha de informação tem de funcionar muito bem, só assim se faz a diferença.”
Como o guest relations, a governanta-geral começa o dia analisando a lista de chegadas. “Às 8h estou a tirar a lista, com as governantas, para ver o que nos espera”, conta, “e dou o briefing geral às 8h30”. A esta hora acontece o que se chama a “abertura geral do hotel”: a partir daqui está a funcionar em pleno. Com horários fluidos — “Também depende da operação diária” —, Orquídea gosta de estar no Sheraton logo de manhã, para acompanhar toda a operação.
A lista de chegada, portanto, no início de cada dia. Mas surpresas a cada dia. E a resposta pronta e eficaz. Se um cliente tem mobilidade condicionada, tem de haver assistência tout court — “até já demos banho”; se outro cai na rua, a preocupação em disponibilizar todos os meios para o ajudar; se fica doente, “canjinha”. Até acontecem situações quase caricatas, ao melhor estilo lost in translation, como a que envolveu um grupo japonês. Ligaram para a recepção, mas como só falavam inglês quem atendeu não conseguiu perceber o que pretendiam. Então, como Orquídea estudou um pouco de japonês, pediram-lhe para ir ao quarto. “Eu fui e cumprimentei em japonês a senhora que abriu a porta”, recorda. “Ela desatou a falar em japonês e eu não conseguia perceber nada. Só dizia ‘sim, sim’. Então, ela fechou a porta e voltou pouco depois com um saco de lavandaria. Percebi que só queria lavar roupa”, conclui com um sorriso largo.
“Os hóspedes mais difíceis são os que não falam inglês”, assenta, e o perfil dos visitantes do Porto tem vindo a mudar, com um aumento de turismo de França, Suíça, Rússia. Por isso, o Sheraton tem dado importância suplementar aos idiomas para além do inglês. “Há pouco tempo houve formação de francês, para quem quisesse”, recorda Orquídea, que domina várias línguas e tem um passado cosmopolita. Antes de trabalhar no Sheraton, foi governanta de uma família londrina. “Na altura, geria uma casa com 29 quartos, agora com 265”, compara. Porque é assim que vê o hotel, uma casa gigantesca onde se cruzam convidados de todo o mundo — e a sua função é a mesma: “Manter a privacidade e criar uma experiência de conforto”. Claro que agora tem uma equipa de 60 pessoas, que, dependendo da ocupação do hotel, pode ser aumentada com uma equipa de apoio externa. “Costuma ser a mesma”, sublinha, já que o hotel valoriza muito a estabilidade do grupo de trabalho. A própria Orquídea está no Sheraton desde antes do soft opening. Veio como governanta, passou a assistente da governanta-geral e assim se manteve até 2009, quando assumiu o cargo. “Isto é a minha casa, mas tem 12 andares para cima e mais quatro para baixo. Ando sempre com o olhar atento a tudo o que se passa.”
Teresa Gaspar, a directora de recursos humanos
(Farol Design Hotel, Cascais)
A meio da conversa, Teresa Gaspar chama-nos a atenção para a vista que temos à nossa frente. Sentadas num dos recantos do bar, traçado a negros e pratas, do Farol Design Hotel, junto à janela e usufruindo de um dia soalheiro, parecemos pairar sobre todo o Atlântico. “É um privilégio trabalhar num sítio como este.”
Directora dos Recursos Humanos, Teresa chegou ao hotel em 2011 pelas mãos da directora-geral, Ana Maria Tavares que, com a experiência de 30 anos a correr o mundo da hotelaria (passou por Macau, pela Tailândia ou pelo Dubai), acabaria por se tornar uma referência para si. Recuando dois anos, e sempre com a ajuda de Ana Maria, conta-nos sobre o prazer de ter construído “uma equipa coesa e que se entreajuda” e que permite hoje ao Farol usufruir de estabilidade. “Somos 62 pessoas fixas, com mais de 40 nos quadros do hotel.” Isto ao longo do ano. Porque quando chega o Verão também chegam os estagiários. “Apostamos muito na formação. Se não tiver condições para dar essa formação prefiro não receber estagiários”, desabafa. Mas o empenho compensa: “Já tive estagiários aos quais acabei por oferecer um contrato. Alguns ainda cá estão, outros vão crescendo e encontrando outros caminhos”, diz, sem esconder uma ponta de orgulho.
Nascida em Moçambique, conta-nos que viveu como “uma nómada” nos primeiros anos de vida. Aos quatro anos mudou-se para África do Sul, saltitando de localidade em localidade, até ter vindo para Portugal já em 1994, quando a filha mais velha tinha cinco anos. “Foi uma mudança muito estranha. Só falava o inglês e o africâner. O meu português era muito rudimentar. Depois era o conduzir do lado contrário. Houve uma vez que só reparei que estava a circular no sentido contrário depois de um taxista me ter chamado todos os nomes. A partir daí, decidi andar de autocarro até me habituar”. Nos transportes públicos também havia estranheza. “Infelizmente, a coisa mais normal na África do Sul era em qualquer lado — num autocarro, numa casa de banho, num parque infantil — não ver negros”, recorda num dia em que também Teresa, mesmo vivendo em Portugal há quase duas décadas, se sente um pouco de luto. Na noite anterior tinha chegado a notícia: Madiba morreu.
1994 ficou para a história da África do Sul como o ano em que se viveram as primeiras eleições livres. Para Teresa, o ano ficava para a sua história como aquele em que o seu mundo mudou, ao vir com o então marido e com a filha para Portugal. “Primeiro arranjei um emprego em secretariado, mas o meu domínio do português era para rir: um dia mandaram-me levar uma carta ao marco [de correio] — imagine-se o meu pânico por não saber quem era o Marco”, lembra entre risos.
Foi mudando de emprego — “Não me lembro de estar um dia desempregada, felizmente” —, da LG ao BPN, em diversas funções, até passar pela Segurança Alimentar, embora na realidade “fizesse um pouco de tudo”. Até lhe chegar a proposta para assumir os Recursos Humanos do Farol numa altura em que tinha acabado de entrar em Psicologia na Universidade de Lisboa — “O curso ficou adiado, mas ainda espero fazê-lo. Talvez um dia mais tarde”, sorri, “quando chegar a idade da reforma”.
A psicologia, explica Teresa, servir-lhe-á para um dia poder envolver-se nalgum projecto de ajuda humanitária. No entanto, é a psicologia que aplica diariamente no seu trabalho. Logo no primeiro instante. “Consigo ver se a pessoa que tenho à frente tem um futuro na hotelaria pela frente.” É que, explica, “o tipo de pessoas que trabalha em hotelaria é diferente; é o tipo de pessoa que gosta de servir, de fazer o cliente feliz”.
Mas a contratação de um colaborador ou a aceitação de um estagiário obedece a outras regras que considera de ouro: “Perceber se a pessoa que tenho à minha frente se enquadra no que já existe”. É assim que mantém a equipa, no caso “bastante jovem”, coesa. O terceiro passo vai no sentido de fazer com que qualquer colaborador sinta a casa como sua. O que passa por “envolver toda a gente em tudo — como nos resultados que partilhamos numa reunião geral mensal ou criando figuras como o ‘funcionário do mês’ ou ‘chefe de departamento do ano’ — sem esquecer as regras que são tão importantes quanto tudo o resto”. Algo que, defende, deve ser imposto com tanta firmeza quanto delicadeza: “Qualquer colaborador deve sentir-se encaminhado, mas também aconchegado”. E isso acontece em todas as hierarquias. Um dia por semana, por exemplo, um dos directores de departamento substitui a directora-geral. É uma maneira, diz, de haver vários olhos a observarem a mesma coisa. O resultado acaba sempre por passar por algumas melhorias.
Já sobre as suas funções diárias, Teresa observa que um dia nunca é igual ao outro. Enquanto conversamos, a visita-surpresa de dois inspectores da Inspecção-Geral do Trabalho reforça a ideia. No entanto, há duas coisas que nunca falham: a reunião da manhã, em que se prepara o resto do dia, e o pequeno-almoço de colegas que lhes permite “desanuviar o ambiente e iniciar o dia mais descontraídos”.
Hugo Silva, o chef executivo
O Farol Design Hotel destaca-se pelo estilo, pela localização, mas também pelas cozinhas dos seus restaurantes: o The Mix, de influência mediterrânica, e, desde o início deste ano, o Sushi Design. À frente de ambas, Hugo Silva, o chef executivo que esteve quase para ser filósofo.
Um ano após acabar o secundário, conta, reencontrou a professora de Filosofia no meio da rua, que não queria acreditar que o seu mais promissor aluno tinha trocado um lugar no curso de Filosofia por um ano no Centro de Formação Alimentar, na Pontinha. Hugo sempre gostou de cozinhar: “Aos oito ou nove anos, lembro-me de a minha mãe telefonar a dizer que eu podia ir adiantando o jantar, como fazer a salada, o que me deixava todo contente.” Mas fazer disso profissão só lhe passou pela cabeça após vários amigos, conhecendo a sua vocação para os tachos, lhe terem indicado a escola da Pontinha. Assim, adiou a ida para Filosofia (até hoje).
No Farol Design, Hugo assume a responsabilidade de supervisionar as cozinhas: a do The Mix, mas também a do Sushi Design pelo sushiman Pekel. “Quando surgiu a oportunidade de tomarmos conta do sushi, propus a todos os meus chefs um curso de sushi; Pekel mostrou-se entusiasmado e acabámos por ir os dois”, recorda. Pelas cozinhas, nas quais a higiene é um dos principais ingredientes, “o ambiente é sério, formal, silencioso”. Primeiro pelo facto de as cozinhas estarem demasiado expostas aos clientes — no The Mix a separação com a cozinha é envidraçada; no Sushi, há apenas uma bancada a separar os sushimen dos comensais. Depois, porque é na confusão que se comentem erros. Algo impensável numa cozinha em que tem de haver preocupações a vários níveis: com os pequenos-almoços, com os pedidos que chegam dos quartos, com os almoços e jantares servidos a hóspedes, mas também a clientes externos. “Depois, no fim da cozinha arrumada, até podemos ir sair juntos e divertirmo-nos”, confidencia.
A cozinhar num hotel dedicado ao design, em que o sentido estético não é descurado em nenhum detalhe, nem sequer nas temporárias decorações de Natal que vão sendo montadas enquanto conversamos, Hugo Silva concorda com a importância de como o prato é apresentado, mas também do quanto os sabores não podem ser descurados. Por isso, é fácil imaginar o festival para os sentidos que será comer por aqui. A começar pela visão: o restaurante reparte-se por três salas, duas das quais envidraçadas sobre o mar. É numa destas, a dedicada ao sushi e enquanto pela cozinha já se prepara a hora de almoço, que Hugo faz uma revisão à sua carreira.
Passou pelo Lawrence’s, em Sintra, esteve no Fortaleza do Guincho — “há dez anos era ‘a’ escola; não é à toa que mantém a sua estrela Michelin há anos” —, foi para o Albatroz, onde aperfeiçoou os conhecimentos de pastelaria (“Era o único lugar que tinham e achei que era uma boa oportunidade para aprender esta área”). Não se limitou, porém, a aprender dentro de portas. Em Espanha, passou por vários espaços, até ter conseguido o ambicionado lugar na cozinha de Santi Santamaria. “O Santi era muito exigente — cinco minutos de atraso davam direito a perder uma manhã de folga —, mas também muito generoso, sempre disponível a explicar qualquer detalhe.” Ficou seis meses.
Depois de todas estas experiências, o somatório pode ser encontrado nos menus que concebe. Explica que oferece uma cozinha moderna de autor, mas tendo em conta trabalhar tanto para turistas não despreza a cozinha tradicional. Pelo contrário. Na carta, há sempre pratos tradicionais e, estando o hotel tão ligado ao mar, o peixe fresco. A diferença, diz-nos, está na apresentação: “O peixe grelhado, por exemplo, chega à mesa já sem espinhas.”
Actualmente, relata, o seu trabalho passa cada vez mais pelo escritório. No entanto, a cozinha não deixa de ser o seu habitat natural. E, embora à hora dos almoços muitas vezes não consiga cozinhar, aos jantares não perdoa e deita mãos à obra.
Hugo Silva está no Farol Design Hotel desde 2007. Entrou ainda com a anterior gestão e só depois soube da mudança. Nos primeiros tempos saboreou a instabilidade, com a constante entrada e saída de pessoal. Hoje, pelo contrário, revela confiança na equipa que gere. Por isso, só agora equaciona a possível inscrição no afamado Guia Michelin. Ainda assim, prefere esperar um pouco mais antes de tomar essa decisão. “Uma vez obtida a estrela, não se pode perdê-la”.
Gabriela Meireles, a proprietária-anfitriã
(Casa do Campo)
Portões escancarados e uma enorme porta de madeira pesada aberta. Avançamos por um átrio pétreo até um pátio interior até vermos uma aberta, no topo de uma escadaria. Gritamos bons dias e pedimos para falar com Gabriela Meireles. “Está na horta.” Não passa muito tempo até chegar Gabriela, pouco depois de Mel, um labrador cor de chocolate, fazer a sua aparição. Estamos em Molares, Celorico de Basto, na Casa do Campo, um solar que começou quinhentista e acabou setecentista. É casa de família e é casa de quem queira desde que abriu as portas ao turismo de habitação — na rede de Solares de Portugal. “As pessoas fazem como vocês, vão entrando”, descreve Gabriela. Não se ficam, contudo, pela soleira — avançam porque todas as portas do solar estão abertas.
“Estou aqui em part-time”, conta-nos: vive em Guimarães com o marido e um dos filhos; porém, o Verão passa-o na casa que é da sua família desde sempre e onde cresceu. A mãe, Maria Armanda Meireles, a passar temporada no Porto, continua a habitar a Casa do Campo. Foi a matriarca da família Meireles, hoje com 80 anos, a responsável pela transformação do solar em turismo de habitação e durante muitos anos foi o seu rosto e força motriz. Até que há “oito, 10 anos”, chegou a vez de Gabriela carregar essa função, no negócio que é de família: da mãe e dos dois filhos. “Estávamos aqui num Natal e o meu irmão chega com uns canudos: ‘Aqui está a sua prenda’”, recorda. Eram projectos para (novas) obras. Era então ou nunca, disse-lhe ele. “Mas agora é a menina a dar a cara.”
Gabriela, 50 anos, dá a cara, mas a mãe também — tudo segue normal quando há hóspedes: Maria Armanda sossegada na sua rotina e eles na vida deles. Com a casa toda aberta, os encontros são normais — e há até quem até entre na cozinha quando sente o cheiro de um bolo a fazer. “Recebemos os hóspedes, damos informações… Temos que ter sensibilidade para perceber se querem estar muito ou pouco tempo connosco”, explica. Certo é que ao segundo dia de estadia, Gabriela faz questão de ir à piscina levar-lhes limonada e tentar perceber as expectativas. E falamos de piscina porque o Verão é a época da grande afluência — entre Novembro e Fevereiro estão mesmo fechados, excepto em condições especiais: “Não compensa acender os aquecimentos por uma noite”. Ao longo de todo o ano, há duas empregadas na casa — “Três se contarmos comigo”, nota Gabriela; no Verão, ajuda extra. Mas nunca se perde o que quem chega à Casa do Campo busca: “Um turismo diferente”, nota Gabriela, “um serviço personalizado, à moda antiga, quase como casa”.
Apesar de não se servirem refeições além do pequeno-almoço, muitos hóspedes gostam de fazer lanches ajantarados ou de se juntarem aos anfitriões quando estes se sentam no jardim-pátio interior a fumar e a beber vinho branco. Às vezes desenvolvem-se “amizades fantásticas”, como aquela com quatro famílias polacas que há alguns anos ocuparam seis ou sete quartos durante quase uma semana. “Foi engraçadíssimo. Nem sempre jantavam fora, ficavam no jardim, nós oferecíamos vinho e passávamos a noite na conversa. Até inventámos um jogo, sobre Portugal e a Polónia.” De outra vez, quase no início do solar-enquanto-Casa-do-Campo, Gabriela descobriu que tinha em casa o primeiro-ministro holandês — “Não fazia a mínima ideia de quem era”, afirma, recordando o homem que se levantava de manhã para correr, chegava todo desgrenhado e ficava com a mulher no jardim a ler ou a escrever — e acabaram todos a jantar.
Se por agora a Casa do Campo está encerrada, em Março renasce — literalmente no jardim. “Dá-me muitas alegrias”, confessa, mas também muito trabalho. “É um jardim único, uma jóia”: está num primeiro andar, é simétrico (lago central, arcos, casas de fresco em ambos os lados) e é feito de camélias enformadas que no final do Inverno se vestem, sumptuosas, de rosas, vermelhos, brancos. É nessa altura que se faz a Festa das Camélias em Celorico de Basto e brilha este jardim onde a mais antiga cameleira terá entre 200 e 250 anos. Gabriela não se compromete com idades, mas compromete-se com a poda, anual. “É muito intuitivo, fui aprendendo”, explica; e foi ensinando à equipa de jardinagem. “Adoro cortar flores”, dirá quando percorrermos o jardim, explicando-nos as suas transformações. Do mesmo modo, nos apresenta o solar, explicando a sua evolução desde a “torre” (século XVI), onde nos sentamos na cozinha, até à “casa antiga” e à “casa nova” (seis quartos), à capela “completamente barroca” (de onde continuam a sair as procissões de Molares) e à reconversão de dependências agrícolas para o turismo.
Tudo isto em vários momentos — a abertura ao turismo deu-se com apenas dois quartos; dois empréstimos, duas grandes obras e três décadas depois, são dez os quartos. Já antes se recebiam hóspedes no solar, sublinha Gabriela, professoras que vinham dar aulas para a região. “Eu ainda vivia aqui, foi um dois-em-um: tínhamos companhia e entrava dinheiro.” A mãe, viúva, que teve de trabalhar quando os negócios da família deixaram de ser lucrativos, pôde fazer algo de que gostava: receber pessoas em casa. A transição para o turismo não foi, portanto, difícil. E foi providencial. “Os fundos europeus ajudaram a fazer as obras de que a casa necessitava”, reconhece. É que uma casa destas é um orgulho e um fardo. “Tem muitos dias escuros, estamos muito isolados, não há procura”, reflecte Gabriela. Não esquece as palavras de uma espanhola em situação semelhante: “Estas casas são heranças hipotecadas.” Este ano, acabaram o pagamento do último empréstimo. É com alívio que Gabriela o diz. Sabe que ela e o irmão fizeram o possível para manter a herança para as gerações seguintes. Como testemunho do passado: este ano, o cineasta João Botelho esteve uns dias na casa, a filmar Os Maias. Quem quiser espreitar verá a sala de entrada, o salão, um quarto com dossel e um corredor luminoso.