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María Ulecia: a espanhola mais portuguesa de Lisboa

Por Alexandra Prado Coelho

O projecto micasaenlisboa é mais do que um lugar de alojamento no bairro da Graça. É sobretudo “um espaço de encontros” – e foi aqui que María se encontrou e decidiu adoptar Lisboa como a sua cidade.

Quando teve que, literalmente, destruir a casa anterior para poder construir a nova, na Graça, em Lisboa, María Ulecia encomendou frangos na churrascaria do bairro, chamou os seus amigos e deu-lhes material para se divertirem a pintar paredes ou a derrubar as de pladur. 

Muitos perguntavam-lhe se não tinha pena de ver desaparecer a casa que a tinha prendido a Lisboa, em 2006, quando aqui chegou durante um ano sabático, sem saber ainda que acabaria por ficar. Ela respondia-lhes que não.
Tinha-se encerrado um capítulo e na sua cabeça estava já a nova casa que ia nascer — a Mi Casa en Lisboa, como baptizou o seu projecto, ia mudar. Mas, para despedida, levou-os a um quarto onde ficara o escritor espanhol, e seu amigo, Antonio Muñoz Molina, e leu-lhes uma página do livro Como la sombra que se va, que ele escreveu durante uma das estadias em Lisboa.

No livro, que cruza a história da passagem por Lisboa do assassino de Martin Luther King e a própria história de Molina, fala-se desta casa (Calçada do Monte, 48) que tem “algo de labirinto concentrado, com as suas escadas estreitas, os seus tectos baixos, os seus corredores esquinados, a sua fachada hermética que esconde um interior de perspectivas assombrosas, quartos e corredores de penumbra que se abrem sem aviso às amplitudes do mundo”.
A casa nova, que inaugurou no final de 2016 depois quase dois anos de obras profundas, é muito diferente, embora guarde a memória da anterior em cada um dos quartos (que são nove, um deles individual). Mas, com o projecto de arquitectura do atelier Ábaton, de Madrid, o “interior de perspectivas assombrosas” mantém-se, num jogo entre o interior, que nos convida a ficar, e o exterior que entra, exuberante, pelas janelas. 

Subimos as escadas atrás de María, com Oliva, a cadela brincalhona, a saltar à nossa volta. Em cada quarto paramos a ouvir as histórias, a prestar atenção aos detalhes. Encostada a uma parede, pronta para ser pendurada, está uma imagem oferecida pelo fotógrafo Juan Baraja; na sala, uma fotografia tirada pelo artista Alberto García-Alix de María com Lola, a cadela com a qual chegou a Lisboa e que já morreu; num dos quartos do sótão, a parede de betão é suavizada por delicadas flores feitas a giz (e levemente apagadas) por outra artista sua amiga, a suíça Frédérique Bangerter.

As mobílias e os objectos são diferentes e María conta como cada um chegou aqui — a pintura com um retrato de mulher veio da Feira da Ladra, tal como os lençóis bordados transformados em cortinas, as duas cadeiras com ripas de madeira pertenceram ao antigo Café Império, a fotografia de Camilla Watson, fotógrafa que vive na Mouraria, foi encontrada por María no lixo (e Camilla confirmou que não a queria de volta). Em cima das mesas, há cadernos da papelaria Emílio Braga, onde os hóspedes deixam histórias, desenhos e dicas para os que vierem depois. 

Nas banheiras, os azulejos são trabalhos em cerâmica feitos por María, tal como os lavatórios. E, se prestarmos atenção, num deles encontramos gravados em azul, no fundo, os versos de Sophia de Mello Breyner Andresen: “Quando eu morrer voltarei para buscar/ os instantes que não vivi junto do mar”. 

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