Fugas - notícias

Continuação: página 2 de 4

O adeus de um crítico de quem até os criticados gostavam (David Lopes Ramos, 1948-2011)

E disse-lhe que, se ele soubesse rezar, pedia-lhe que o fizesse nessa noite. Ele percebeu logo e disse-me apenas: 'Vamos lá preparar-nos.'" Apanhado no turbilhão revolucionário, o "aspirante Ramos" entra no processo no papel de actor. Por intervenção de Melo Antunes e de Vasco Gonçalves, integra o Movimento das Forças Armadas e será adido de imprensa de Gonçalves nos quatro governos provisórios que o general liderou entre Julho de 1974 e Setembro de 1975. "Era o aspirante Ramos, a que todos os jornalistas recorriam em 1974/75, e por quem tinham uma grande consideração e respeito", recorda o jornalista António Borga.

A queda do V Governo leva-o aos quadros do Diário de Notícias, mas por pouco tempo. Na sequência do 25 de Novembro, David Lopes Ramos (e muitos outros jornalistas, entre os quais António Borga) são afastados do DN. A etapa seguinte da sua vida profissional levá-lo-á à fundação do Diário, um jornal próximo do PCP. "No Diário, ele tinha um hábito", recorda António Borga. "Sempre que entrava na redacção, de manhã, gritava: 'Viva a República.' Fazia-o naturalmente, por convicção política, mas também por espírito de camaradagem e por respeito pelas pessoas mais velhas, algumas das quais eram da sua terra." É também no Diário que David Lopes Ramos aprofunda a sua dedicação à crítica gastronómica.

A sua referência foi sempre José Quitério, do Expresso, de quem se lembrava sempre que iniciava um texto sobre um restaurante ou uma criação gastronómica. Tido por personagem difícil e muitas vezes inacessível (há quem o compare ao severo crítico gastronómico do filme de animação Ratatouille, da Pixar), Quitério considera que "David Lopes Ramos desde há alguns anos fazia a melhor crítica gastronómica em Portugal", lembrando-o como "um modelo de competência e honestidade, quer na sua vida profissional, quer na sua vida pessoal". "Era ouro de lei", defendeu o crítico do Expresso numa declaração à agência Lusa. Convidado para integrar a equipa que fundou o PÚBLICO pelo jornalista Torcato Sepúlveda, em 1989, David Lopes Ramos foi seu subeditor na secção da Cultura e, mais tarde, liderou a equipa da Sociedade. Mas a sua paixão pela crítica gastronómica (e, num plano não tão evidente, pela crítica de vinhos) seria imediatamente transposta para textos semanalmente publicados no Magazine, a revista de domingo do jornal.

Até que se pudesse dedicar por completo à área da gastronomia, o que aconteceu com a criação do suplemento Fugas do PÚBLICO, em 2000, David Lopes Ramos acompanhou diferentes áreas da actualidade do país, com destaque para o mundo do trabalho e do sindicalismo. Nos diferentes géneros, a sua prosa era enxuta, directa, precisa, cedendo ao humor sem perder a sobriedade, abordando temas complexos sem se afastar da oralidade e do vocabulário comum. No Fugas, deu a conhecer novos restaurantes e chefs, assistiu ao rápido processo de modernização dos vinhos nacionais, criou leitores fiéis e ajudou a colocar a gastronomia portuguesa no mapa.

"Não será tarefa fácil convencer o mundo de que Portugal é um lugar de coisas boas, originais, saborosíssimas. Mas, embora muitas vezes não pareça, nós ainda não perdemos o jeito e a capacidade para respondermos aos desafios que se nos colocam", escreveu.

--%>