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O adeus de um crítico de quem até os criticados gostavam (David Lopes Ramos, 1948-2011)

Por Manuel Carvalho (Com Ana Machado e Sérgio C. Andrade)

David Lopes Ramos morreu ontem, aos 63 anos. As suas críticas foram fundamentais para inscrever a gastronomia no inventário do património português. Mas, além desse seu contributo para a cultura, o seu exemplo de justiça, de isenção e de humanidade tornaram-no uma referência do jornalismo português dos últimos 40 anos.

Numa prova de vinho do Porto já lá vão dez anos, David Lopes Ramos inspirou os aromas de um vintage e sentenciou: "Isto só poderia vir do Vesúvio." Para muitos, para a maioria até, as sensações que se conseguem num grande vinho ou numa criação gastronómica são fugazes manifestações sem história, sem memória ou sem cultura, como a que a imponente quinta duriense produziu ao longo de quase dois séculos; mas, para David Lopes Ramos, resumir a excelência de um tinto clássico ou a majestade de um leitão bairradino à experiência sensorial imediata tinha o óbice de reduzir a gastronomia e a enologia a artes efémeras. E a moda, como tudo o que é volátil, ostentatório e artificial, irritava-o. Para ele, a vida, os amigos, a família, a arte, o país ou a política ou eram resultado de factos e emoções profundas, ou não eram.

David Lopes Ramos morreu ontem, em Lisboa, aos 63 anos, e as notícias citam o falecimento de um dos mais consagrados críticos gastronómicos do jornalismo português. Mas limitar o seu legado ao que o tornou mais conhecido do público é redutor. E errado.

Ele não escreveu sobre comida ou sobre vinhos; ele deu um contributo decisivo para que a gastronomia ganhasse lugar no inventário do património cultural português, bateu-se no jornalismo pelo rigor, pelo dever e pela apologia da causa pública, exigiu na vida pessoal o desejo e a vocação da partilha e criou uma aura de disponibilidade que cativou diferentes gerações e o tornou admirado tanto pelos seus pares, como pelos que eram alvo da sua crítica nem sempre meiga.

Nascido em Pardilhó, na área da ria de Aveiro, em Janeiro de 1948, David Lopes Ramos manterá ao longo da sua vida memórias da pesca, da faina do moliço e, principalmente, histórias acumuladas da emigração para a América. Essa corrente migratória fez com que muitas famílias rompessem o ancestral ciclo de pobreza e pudessem enviar os filhos para o Porto ou para Coimbra, onde nos anos 60 ainda se traçava a linha de separação das classes sociais em Portugal. Carlos Campolargo, jurista e produtor de vinho da Bairrada, conheceu-o em Coimbra nessa época, embora não tanto pelos seus méritos de estudante, mais pela militância no PCP que então ambos professavam. "Era um homem da ria cheio de ideais de juventude, mas nessa altura destacava-se já pelos traços de personalidade que o distinguiriam no futuro", recorda Campolargo. "Uma pessoa de uma humanidade incrível", acrescenta.

Mais do que o estudo das leis, a passagem por Coimbra foi marcada pelo crescente envolvimento político nas diferentes frentes da oposição ao Estado Novo que vivia então os anos de ilusão da Primavera marcelista.

David Lopes Ramos envolve-se nas organizações estudantis, chegando ao secretariado do Conselho de Repúblicas, participa nos célebres congressos oposicionistas de Aveiro.

Em 1971 inicia-se no jornalismo com Uma lição de verticalidade e honestidade, que devia ser aproveitada pelos jovens críticos que acham que escrever sobre gastronomia é uma coisa fácil.

Rui Paula, chef colaborações na histórica revista Vértice, onde entrou pela mão do poeta e ensaísta Joaquim Namorado (1914-1986). O seu afastamento crescente dos estudos obrigam-no a cumprir o serviço militar. Destacado para os Açores, onde foi ajudante de Vasco Lourenço, assiste aí à queda do Estado Novo. Vasco Lourenço recorda uma conversa com David Lopes Ramos na noite de 24 de Abril de 1974: "Perguntei-lhe se sabia rezar, e ele estranhou a pergunta.

E disse-lhe que, se ele soubesse rezar, pedia-lhe que o fizesse nessa noite. Ele percebeu logo e disse-me apenas: 'Vamos lá preparar-nos.'" Apanhado no turbilhão revolucionário, o "aspirante Ramos" entra no processo no papel de actor. Por intervenção de Melo Antunes e de Vasco Gonçalves, integra o Movimento das Forças Armadas e será adido de imprensa de Gonçalves nos quatro governos provisórios que o general liderou entre Julho de 1974 e Setembro de 1975. "Era o aspirante Ramos, a que todos os jornalistas recorriam em 1974/75, e por quem tinham uma grande consideração e respeito", recorda o jornalista António Borga.

A queda do V Governo leva-o aos quadros do Diário de Notícias, mas por pouco tempo. Na sequência do 25 de Novembro, David Lopes Ramos (e muitos outros jornalistas, entre os quais António Borga) são afastados do DN. A etapa seguinte da sua vida profissional levá-lo-á à fundação do Diário, um jornal próximo do PCP. "No Diário, ele tinha um hábito", recorda António Borga. "Sempre que entrava na redacção, de manhã, gritava: 'Viva a República.' Fazia-o naturalmente, por convicção política, mas também por espírito de camaradagem e por respeito pelas pessoas mais velhas, algumas das quais eram da sua terra." É também no Diário que David Lopes Ramos aprofunda a sua dedicação à crítica gastronómica.

A sua referência foi sempre José Quitério, do Expresso, de quem se lembrava sempre que iniciava um texto sobre um restaurante ou uma criação gastronómica. Tido por personagem difícil e muitas vezes inacessível (há quem o compare ao severo crítico gastronómico do filme de animação Ratatouille, da Pixar), Quitério considera que "David Lopes Ramos desde há alguns anos fazia a melhor crítica gastronómica em Portugal", lembrando-o como "um modelo de competência e honestidade, quer na sua vida profissional, quer na sua vida pessoal". "Era ouro de lei", defendeu o crítico do Expresso numa declaração à agência Lusa. Convidado para integrar a equipa que fundou o PÚBLICO pelo jornalista Torcato Sepúlveda, em 1989, David Lopes Ramos foi seu subeditor na secção da Cultura e, mais tarde, liderou a equipa da Sociedade. Mas a sua paixão pela crítica gastronómica (e, num plano não tão evidente, pela crítica de vinhos) seria imediatamente transposta para textos semanalmente publicados no Magazine, a revista de domingo do jornal.

Até que se pudesse dedicar por completo à área da gastronomia, o que aconteceu com a criação do suplemento Fugas do PÚBLICO, em 2000, David Lopes Ramos acompanhou diferentes áreas da actualidade do país, com destaque para o mundo do trabalho e do sindicalismo. Nos diferentes géneros, a sua prosa era enxuta, directa, precisa, cedendo ao humor sem perder a sobriedade, abordando temas complexos sem se afastar da oralidade e do vocabulário comum. No Fugas, deu a conhecer novos restaurantes e chefs, assistiu ao rápido processo de modernização dos vinhos nacionais, criou leitores fiéis e ajudou a colocar a gastronomia portuguesa no mapa.

"Não será tarefa fácil convencer o mundo de que Portugal é um lugar de coisas boas, originais, saborosíssimas. Mas, embora muitas vezes não pareça, nós ainda não perdemos o jeito e a capacidade para respondermos aos desafios que se nos colocam", escreveu.

Mesmo dedicando uma crescente energia à função de "editor de vinhos e petiscos", como gostava de ironizar, David Lopes Ramos nunca deixou de reflectir o país. Fazia-o com cepticismo e amargura. Muitas vezes revelava a sua impaciência e irritação com a governação. Numa crónica escrita no PÚBLICO por altura da morte de Vasco Gonçalves, David Lopes Ramos recorda uma conversa recente com o general (o texto é de Junho de 2005) na qual lhe lembrou que "o socialismo não passava de uma miragem, que cada vez haveria mais portugueses com uma bandeja na mão ou tacos de golfe a tiracolo a servir turistas estrangeiros endinheirados". Mesmo sabendo que os ideais de juventude se tinham desvanecido, sempre manteve fidelidade aos princípios políticos dos primórdios. Era, aliás, com uma boa conversa política que David Lopes Ramos mais se entusiasmava e melhor mostrava a sua vasta cultura (literária, política, estética...). A reflexão do historiador marxista Eric Hobsbawm na sua obra autobiográfica Tempos Interessantes era para ele um bom espelho do seu próprio percurso e do ajustamento que teve de fazer entre ideais e a realidade concreta do país e do mundo. Adaptara-se, mas não perdera convicções, nem se despira de valores.

Mas, além da excelência da sua prosa, da qualidade do seu percurso como jornalista, ou da sua coerência, há entre todos os que o conheceram o reconhecimento de que David Lopes Ramos era "um homem bom". Maria de Lourdes Modesto diz que ele era "o elo mais forte da nossa gastronomia", porque era capaz de pôr toda a gente a funcionar em rede; o crítico de vinhos João Paulo Martins sublinha a sua "permanente disponibilidade para os outros"; o gestor Paulo Amorim invoca o seu "estilo discreto, despretensioso, nunca alardeando o seu muito saber, mas sempre disponível para o partilhar"; Luís Miguel Viana, director da Lusa, lembra-o como "a pessoa mais generosa" que conheceu; Duarte Calvão cita o tempo em que o conheceu e que, apesar de serem concorrentes Calvão era crítico do DN, tratou-o, "com a sua extraordinária gentileza e simplicidade", ajudando-o "a tentar ser melhor"; Luís Lopes, director da Revista de Vinhos, recorda-o como "uma explosão de vida e de bom gosto"; Rui Paula, chef do restaurante DOP, invoca-o como "uma lição de verticalidade e honestidade, que devia ser aproveitada pelos jovens críticos que acham que escrever sobre gastronomia é uma coisa fácil".

Afinal, "ele mantinha esse espírito dos tempos de estudante em Coimbra, nos seus aspectos mais saudáveis: a fraternidade, a camaradagem, o combate pelas suas ideias", considera António Borga. Para muitos dos jovens jornalistas que iniciaram as suas carreiras no PÚBLICO, ele era a voz da exigência e do conforto em tempos de excitação e muito desconcerto; para os seus pares da crítica, o exemplo ético e profissional; para os alvos dos seus textos, um modelo de isenção, de pedagogia e de justiça.

O funeral de David Lopes Ramos realiza-se hoje, às 12h45, da Igreja de S. Tomás de Aquino (Estrada da Luz, em Lisboa), para o cemitério do Alto de S. João, onde o corpo será cremado às 14h00. Todos os que o conheceram concordarão por certo com o título do texto genial que escreveu no adeus a Vasco Gonçalves: "Morrem cedo os que admiramos."

in Público, P2 (30-04-2011)

 

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