Fim da estação das chuvas. O verde luxuriante invade a paisagem e vastos cursos de água alagam toda a região, confluindo no lago Urema. É por aqui que perpassa o palpitar de toda a vida animal do Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, com várias espécies de aves a reunirem-se para um festim de pequenos peixes que parecem oferecer-se em sacrifício. Pelas margens, mamíferos, de grande e pequeno porte, refrescam-se. Mas nem sempre foi assim.
Depois de tempos gloriosos, em que a região chegou a ser descrita como "chave para a vida" - numa reportagem para a National Geographic, de 1972 -, os 16 anos de guerra civil moçambicana deixaram um rasto de morte e dor. "Quando cheguei o cenário era de facto muito triste", diz-nos Greg Carr, o filantropo multimilionário cuja fundação "adoptou" a Gorongosa para aí desenvolver, em 20 anos, um projecto de reabilitação - e até de recriação - de todo um ecossistema, injectando a fundo perdido 40 milhões de dólares (31 milhões de euros).
Mas como se decide um benemérito milionário norte-americano a dedicar o seu tempo e fortuna a este coração verde moçambicano? Tudo começou há quase uma década, em Nova Iorque. Um providencial encontro entre o então embaixador moçambicano nas Nações Unidas, Carlos dos Santos (hoje embaixador do país na Alemanha), e Greg Carr foi o mote para uma viagem do americano do Idaho ao Sudeste africano. "Senti de imediato que era possível restaurar o parque", conta. E daí ao arregaçar das mangas foi um instante: o acordo com Maputo surgiu em Dezembro de 2007, com Carr a garantir a co-gestão do parque por duas décadas.
O processo foi também apadrinhado pelo Governo português, essencialmente com projectos de educação de crianças e adultos da região, e conta ainda, entre outros, com apoios da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional.
No terreno, as perspectivas não eram animadoras: pela Gorongosa, Carr encontrou uma pesada herança de uma guerra civil que ceifou quase toda a vida do parque, com guerrilheiros esfomeados a servirem-se da reserva como se de um talho ao ar livre se tratasse.
Os números exaltam a devastação: de três mil zebras em 1972, sobraram 15 (2007); de 2200 elefantes, 300; de 500 leões, apenas 35. Já búfalos e gnus simplesmente desapareceram. E, com a extinção destes, a par da redução drástica de elefantes ou de hipopótamos (de três mil para 160), a vegetação tinha crescido sem controlo. O que, durante os tenebrosos períodos de seca, se traduzia em incêndios devastadores que transformavam num inferno a vibrante Gorongosa do fim da estação das chuvas que se vê no início de O Paraíso Perdido de África, o documentário da National Geographic Television.
Três anos depois do investimento no parque, e com uma equipa de 400 pessoas dedicadas a tempo inteiro - entre especialistas no tema de conservação, guardas, batedores, operários, etc., oriundos de várias partes do globo, mas principalmente da zona periférica do parque -, foram feitas várias reintroduções de espécies, de forma faseada. "Sinto-me extremamente feliz devido ao progresso que conseguimos" e "quando os turistas saem num safari conseguem avistar elefantes, hipopótamos, muitas aves, muitos antílopes; no fundo conseguem passar um tempo agradável", continua Greg Carr.
O trabalho em curso vai, porém, mais além: "Não pensamos apenas no parque", continua Carr, que enveredou por uma luta contra a pobreza que se vive na região através do desenvolvimento de um modelo de turismo verdadeiramente sustentável. "Pensamos no ecossistema como um todo" e, para isso, "é necessário beneficiar as gentes tanto quanto a natureza". Afinal de contas, não adianta reintroduzir animais quando estes são de imediato abatidos por caçadores. "Não se pode impedir de caçar quem tem fome."
A pobreza extrema que se vive nas aldeias à volta do parque continua a ser um problema e a caça de fauna bravia não foi totalmente erradicada. Mas a missão prossegue passo a passo: "Ajudámos a construir escolas e centros de saúde, introduzimos novas técnicas de cultivo agrícola", exemplifica. O facto de "muitas das pessoas terem agora um emprego no parque" também as sensibiliza para a sua preservação.
Passagem para o ecrã
A história, assim como a rapidez com que os trabalhos de restauração se desenvolviam, despertou o interesse da National Geographic. E, em Setembro de 2008, uma equipa do canal chegava ao terreno para iniciar as filmagens de O Paraíso Perdido de África, uma produção de James Byrne, que teve antestreia em Maputo e estreia mundial na Gulbenkian, em Lisboa, a 12 de Janeiro, por altura da Feira Internacional de Turismo. Precisamente num ano em que se celebra a biodiversidade.
Em 50 minutos, o documentário mostra a vida em estado selvagem do parque nacional - que se estende por uma área de 4000 km2 (para comparação: a região do Algarve ocupa 4995 km2). E revela como parece haver sempre mais mundo a explorar e mais espécies a desvendar, numa multiplicidade de cores e formas.
Pelo meio, recorda os tempos áureos, em que a região recebia gentes de todo o mundo, bem como a destruição durante a guerra. Mostra as potencialidades da reserva e a forma como se têm reintroduzido na Gorongosa espécies essenciais à recriação de "o sítio onde Noé deixou a sua arca", como chegou a ser conhecida. Dá conta de um caso de sucesso, como a reintrodução de uma família de três hipopótamos que chegou com um brinde - a fêmea estava grávida. E também de outro menos feliz: depois de um árduo processo de transporte de um elefante, cedido pelo Parque Kruger, da África do Sul, até ao centro de Moçambique, e da sua bem-sucedida colocação no novo habitat, que as câmaras acompanharam, as chamas deitaram tudo a perder. O animal fugiu, aproximou-se demasiado das populações e a tentativa de recuperá-lo para o parque, sedando-o, acabou por revelar-se fatal.