Por Alexandra Prado Coelho (texto), Maria João Gardão (vídeo)
No antigo armazém da Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego acaba de abrir a nova loja A Vida Portuguesa, de Catarina Portas. São dois andares, e há novidades: um horto, peças de têxtil-lar, vestuário, banheiras, fogões. E até, para quem quiser, candeeiros de rua e coretos. No tecto, as andorinhas de sempre.
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Catarina Portas está sentada junto a uma janela no café O das Joanas, numa das esquinas do Largo do Intendente, ao lado da nova loja de A Vida Portuguesa que acaba de inaugurar. Conversa com a Fugas, enquanto come uma sopa e uma salada, e está constantemente a cumprimentar pessoas que entram no café ou que passam na rua. O largo, que nos últimos tempos se tem vindo a transformar gradualmente – abriram espaços novos, como a Casa Independente ou a Largo Residências, e até o presidente da Câmara, António Costa, se mudou para ali – parece cada vez mais um bairro familiar.
A própria Catarina deixou a sua casa e esteve, temporariamente, a viver nas Largo Residências enquanto preparava a nova loja: dois andares, no antigo edifício da Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, coberto a azulejos com figuras de chineses que mostram, em faixas, a data de fundação da fábrica, 1849. À noite ficava a olhar o largo da janela, e de dia descia as escadas e vinha acompanhar as obras de adaptação da loja – que mantém, no essencial, o carácter da antiga fábrica e armazém, nomeadamente a grande variedade de azulejos (não deixem de espreitar o espaço onde estão expostas as peças de ourivesaria da Topásio), aos quais se juntaram móveis recuperados de antigas mercearias e lojas que foram fechando pelo país.
Mas tão ou mais importante do que a preparação do espaço foi o trabalho prévio, de escolha de marcas e peças para colocar na nova loja (a irmã mais nova, embora maior, da A Vida Portuguesa original, no Chiado, a que veio mais tarde juntar-se a loja do Porto), que tinha a ambição de entrar por novas áreas, como o têxtil-lar e o vestuário.
À descoberta da portugalidade
“Eu e a Patrícia Abrantes, a directora desta loja, que veio da Área e é uma pessoa com quem eu há muito tempo tinha vontade de trabalhar, fomos numa viagem às fábricas”, conta Catarina. “Concentrámo-nos em áreas em que a produção portuguesa é especialmente boa: no têxtil-lar somos dos melhores da Europa, na cerâmica também, na cutelaria somos muito bons. Depois há nichos de mercado, como as banheiras da Recor, em ferro fundido esmaltado, de uma fábrica da zona de Aveiro, que exporta quase toda a sua produção”.
Foi mais uma viagem de descoberta. Se, quando abriu a primeira loja, Catarina fez um aprofundado trabalho de identificação, e em vários casos de recuperação, de marcas antigas, agora descobriu realidades diferentes. Procurou marcas estabelecidas (e, que têm, todas elas, já forte projecção internacional), dialogou com os proprietários, e tentou encontrar as peças que mais se enquadrassem no espírito de A Vida Portuguesa. “A minha intenção era apresentar produtos que dissessem imediatamente ‘eu sou de uma fábrica que tem não sei quantos anos’, que fossem marcas antigas, com história”.
Encontrou, por exemplo, a CIF (Companhia Industrial de Fundição). “Fica em Gondomar, junto ao Douro. Numa altura em que ainda não havia estrada eles já existiam, e as coisas seguiam pela estrada fluvial para a Ribeira, onde tinham o armazém”, conta. Actualmente, o principal negócio da CIF são os recuperadores de calor, em grande parte para exportação. “Mas eles faziam tradicionalmente uma série de peças como os candeeiros de iluminação pública das cidades, aquelas lanternas lindas que estão nos Aliados [no Porto] são da CIF, os bancos de jardim, os coretos”.
Na loja do Intendente há espaço para expor os fogões a lenha de ferro, as panelas, os tachos, as frigideiras, as chaleiras, as salamandras (“o modelo mais pequeno que temos é o tradicional das salas de aula das escolas do Alentejo”), tudo em ferro, assim como o pequeno escaravelho, que serve para nos ajudar a descalçar as botas. Mas Catarina tem também o catálogo da marca, e, diz com uma gargalhada, vende até coretos.
Para o têxtil-lar, contactou a Lameirinho e a Coelima, que “trabalham para mercados muito exigentes, para grandes marcas, mas que normalmente não aparecem com marca própria”. “O melhor que se faz no mundo nós sabemos fazer”, diz. “A minha dificuldade é ter produto com etiqueta e marca portuguesa porque essa não é a prioridade destas marcas”. Por isso, continua, a próxima aventura de A Vida Portuguesa será “começar a trabalhar de forma mais próxima com algumas fábricas, para criar marcas em conjunto”.
Entre os clássicos tem ainda as peças de ourivesaria da Topásio, marca do Porto nascida no século XIX e especializada em prata. (“foram aos baús buscar tesourinhos antigos para nós”), a cutelaria da Cutipol e da Ivo, os vidros da Marinha Grande. E os serviços da Vista Alegre, dos quais fez uma escolha. Inclui clássicos e modernos, e ainda, por exemplo, peças como a Colecção Bestiário da artista Bela Silva com tampas-bichos para garrafas.
A importância da manufactura
A viagem pelo país permitiu também a Catarina descobrir outra realidade. “Há um fenómeno interessante a acontecer em Portugal. Há pessoas, entre os 30 e os 40 anos, umas ligadas ao comércio, outras ao design, que andam à procura do que temos de melhor na nossa manufactura e criam marcas a partir daí”. Exemplos são a marca Green Boots, botas artesanais, feitas com sapateiros da zona de Leiria, ou a La Paz, roupa de homem inspirada na vida dos marinheiros, que já exporta para vários países mas que, até agora, não tinha um ponto de venda em Portugal. Ou ainda a Ideal & Co, que faz mochilas em cabedal. “São pequenas marcas, mas são um fenómeno recente e que me parece muito interessante e prometedor”.
A aposta em produtos que tenham algum grau de manufactura corresponde a uma convicção de Catarina. “Há uma teoria que tenho vindo a defender que é a de que o nosso atraso pode ser o nosso avanço. Por nos termos modernizado e industrializado mais tarde que o resto da Europa, guardámos uma larga experiência de manufactura, que associávamos à pobreza e à miséria durante muito tempo, mas que hoje é uma coisa preciosa em termos europeus, e que não devíamos perder”. O facto de haver marcas novas a aproveitar este saber tradicional “é um sinal de enorme esperança”. Mas, alerta, “há muita gente a morrer sem passar o saber” e há artes, como a latoaria ou a cestaria, que estão a desaparecer.
Na A Vida Portuguesa, as peças distribuem-se pelos dois andares da loja, onde há também uma zona com brinquedos para crianças, e um espaço para livraria. À entrada, debaixo de um tecto coberto de andorinhas de louça que esvoaçam sobre as nossas cabeças, há um horto para quem quiser lançar-se na agricultura doméstica.
O desafio é trazer os estrangeiros até ao Intendente, imaginamos. “Os estrangeiros e os portugueses”, sublinha Catarina Portas, lembrando que, apesar de toda a reabilitação que ali tem acontecido, da visibilidade que o largo conquistou nos últimos tempos, e dos vários projectos que têm vindo a abrir, “o Intendente ainda não é um circuito comercial”. Mas Catarina gosta precisamente de apostar em novos sítios, vê-los a transformar-se e de participar nessa transformação.