O corredor da morte. A chegada do juízo final. O que escolheria um chef para a sua última refeição? Que ingredientes lhe dariam o derradeiro prazer? Entre as memórias e os restaurantes que ficaram por conhecer, as escolhas denunciam a gula, a luxúria ou a simplicidade. Mate-se a curiosidade!
Pedro Sequeira
Restaurante Astoria, Palácio das Cardosas, Intercontinental, Porto
“Procuramos sempre algo que nos reconforte e encontramos isso nas nossas memórias”. É essa viagem no tempo que leva o chef Pedro Sequeira à vila de Serpins, no concelho da Lousã, onde cresceu até aos 17 anos e onde ainda vivem os pais. É aí que tem as suas raízes. Vem-lhe à recordação os mergulhos no rio Ceira, os passeios por montes e vales, que quer dar a conhecer à filha Constança, as trotinetas e carrinhos de rolamentos que construía com o que estivesse à mão, o perfume dos alambiques, a broa a sair do forno de lenha. “Outros tempos!”
As paisagens pinceladas de cogumelos, nesta altura do ano, pintadas de castanhos e ocres, com as chaminés a fumegarem. Os javalis alimentavam-se dos milheirais para desespero da população e, não é segredo, apesar da clandestinidade do acto, que muitas vezes caiam em armadilhas, fazia-se a matança e comia-se no dia. Pedro Sequeira sempre apreciou a carne, que se habituou a comer, “suculenta, com um sabor intenso e persistente, mais gorda no Outono, mais seca no início da Primavera”.
Sirva-se então o último repasto: lombinho de javali confitado e alheira no bosque com cogumelos silvestres e molho de mirtilo. Está na carta do restaurante Astoria desde o início do Outono e vem sendo aperfeiçoado há três anos. “Os pratos evoluem, crescem, aperfeiçoam-se, experimentam-se novas combinações, novos sabores”. É a primeira vez que esta carne chega à carta, “tive algum receio, mas faz sentido ter pratos de caça”. Vai bem com a alheira, os boletus, cantarelos, trompetas da morte castanhos e pretos, shimeji, o perfume dos mirtilos. Deve ser degustado demoradamente, como uma lareira a arder. Até se apagar.
Miguel Castro e Silva
Less e deCastro, Lisboa
Este texto pede banda sonora. O trompete intimista de Milles Davis é chamado para a preparação do repasto de Miguel Castro e Silva, um menu de degustação. Mais importante do que os pratos que se seguem é a companhia: “Este não poderia ser um acto isolado, gosto de partilhar. Para além da mulher, da família, gostaria de estar rodeado por amigos com o mesmo gosto pela mesa”, diz.
Adora cozinhar, desde menino, continuou nos tempos em que era estudante de Biologia, em Kiel, na Alemanha, dividia o apartamento com amigos e assumia a tarefa para não ter de lavar a loiça. Quando há 24 anos abriu o seu primeiro restaurante, a paixão pela cozinha já tinha superado a dedicação há música — desde os seis que tocava piano e chegou a tocar em algumas bandas. Há coisas que ficam, Maria de Lourdes Modesto sempre disse que ele cozinha como se fizesse música, com a mesma delicadeza, com a mesma entrega. Aos olhos da sociedade da altura não foi fácil: nascido numa família entre a burguesia do Porto e o rigor alemão, por parte da mãe, ser cozinheiro não era uma profissão prestigiante, pelo contrário.
Voltemos ao derradeiro momento. Não seria ele a cozinhar, prescindiria desse prazer para usufruir plenamente da refeição. O menu: um carpaccio de carapau (como prepara há 15 anos, antes da moda ter chegado); um robalo com um sabor acentuado a maresia combinado com berbigão; uma garoupa, já mais substancial, grelhada com um molho de pimento amarelo; depois borrego, numa versão mais delicada, um carré. Em cada prato, o toque diferenciador das ervas aromáticas, que cedo trouxe para a sua cozinha e valorizou. “Gosto muito de tomilho que casa bem com a garoupa e o borrego”, diz. Por fim, uma tábua de queijos. Confessa: “Não sou muito doceiro”. Sem esquecer os vinhos – prefere os do Dão e do Douro, sobretudo, brancos com alguma idade. “Aprecio a intensidade e a elegância dos vinhos. Acho que a minha cozinha também é assim”. Sem sair do jazz, a música agora é outra, Ella Fitzgerald, porque é de elegância que se fala.
Na Cozinha de Miguel Castro e Silva, editado pela Lua de Papel, é o mais recente livro do chef, com fotografias de Jorge Simão e as histórias sobre 48 produtos portugueses que partilhou com Augusto Freitas de Sousa. Ao mesmo tempo, prepara a abertura de dois espaços em Lisboa, entre um regresso às origens e a descontracção que a gastronomia pede. E ele que sempre experimentou técnicas e combinações que o tornaram incompreendido amiúde por estar à frente do seu tempo, que devolveu a Portugal a sua cozinha tradicional, continua a criar com o mesmo entusiasmo do início, como se estivesse tudo por fazer. “Não gosto de pensar no momento final, prefiro celebrar a vida”. E partilhar.
Pedro Lemos
Restaurante Pedro Lemos, Porto
“Se é para ir para o inferno que seja pela gula e por todos os pecados capitais”, dispara Pedro Lemos a sangue frio. Por isso, nada menos do que um banquete memorável, a várias mãos, por alguns dos chefs que admira. A escolha foi feita na hora, com algumas hesitações pelo meio. “Não é fácil, são tantos os que me inspiram”. Apenas uma certeza: “Uma refeição de clássicos, sem fogo-de-artifício ou espectáculo, um regresso às bases, algo que me fizesse esquecer o que se seguiria”.
A começar, um goulash um prato originalmente da Hungria que se popularizou na Áustria, donde é natural Dieter Koschina, o chef que soma 25 anos no restaurante algarvio Vila Joya, que integra também a lista dos 50 melhores restaurantes do mundo. Pedro Lemos lembra que “era ainda um menino” quando esteve na equipa de Koschina durante um festival gastronómico. Depois, do intenso labor, foi o próprio quem preparou um goulash para o pessoal. “Era um simples prato caseiro que serviu de pretexto para estarmos juntos a celebrarmos o esforço. Caía bem, neste momento”.
Seguir-se-ia, um prato de pato, como Aimé Barroyer decidisse. Foi com o chef francês, com quem se cruzou no Pestana Palace, no início de carreira, que aprendeu “o rigor e a paixão pela cozinha”, foi com ele que “sentiu as dificuldades e percebeu que ia ter que lutar muito para que um dia parecesse fácil”. Lembra-se da dedicação “com que temperava a carne”, uma das suas preferidas. E o chef “um xerife, homem duro, cozinhava como se fosse um bailado”.
“Não podia partir sem comer uns nigiris, preparados por Jiro Ono”, acrescenta. Um desejo ainda por concretizar: conhecer o chef japonês de 90 anos, com três estrelas Michelin, e aprender como é que alguém como ele ainda cozinha e acredita que não atingiu a excelência. “Faz-me pensar que não quero cozinhar para agradar, mas para me sentir realizado, senão a vida não vale a pena apenas pelo dinheiro e pela fama”.
Segue-se “qualquer prato” de Paul Bocuse, o homem que deu ao mundo a nouvelle cuisine e “responsável por todos os chefs hoje serem o que são”. Pedro Lemos visitou recentemente o restaurante L’Aubergue du Pont de Collonges, perto de Lyon. “Depois de dez pratos principais, queijos e um desfilar de iguarias que não queria que acabassem, estive 24 horas sem ingerir comida. Por si só, podia ser a última refeição”, conclui.
A fechar, “uma das sobremesas estrondosas de Pierre Hermés”. Podia ser um kouign-amann (doce da Bretanha) ou um macaron, que Pedro Lemos não duvida que seria o melhor dos finais. Sem esquecer o champanhe e “as colheitas mais raras de vinhos míticos”.
Miguel Rocha Vieira
Fortaleza do Guincho, Cascais
Recentemente, voltou da Húngria, onde esteve desde 2008 — em Budapeste, conquistou a primeira estrela Michelin para o restaurante Costes e outra, posteriormente, como consultor para o Costes Downtown. Estava frio, um frio invernal, enquanto por cá se assistia a um Verão tardio que não chegou ao São Martinho. “Nem nos damos conta do que temos até sairmos daqui”, comenta, enquanto descansa os olhos no mar do Guincho, um dos raros momentos de pausa no trabalho na cozinha da Fortaleza do Guincho, onde assumiu os comandos há cerca de um ano. Pensando bem, “este ano, contam-se pelos dedos de uma mão as vezes que pisei a areia da praia”. O mesmo areal onde cresceu e viveu até aos 19 anos, quando partiu para aprender a ser cozinheiro na prestigiada Le Cordon Bleu, em Londres.
Na despedida, voltaria sempre à comida de conforto, ao mar. “Uma mesa enorme cheia de marisco, ouriços-do-mar, carabineiros, percebes, peixe grelhado, o mais natural possível, para manter o sabor fresco e delicado”, traça o menu daquela que seria a sua última refeição. Tantos anos ausente e agora são mais as vezes que olha de soslaio ao início do dia e depois, já noite, quando sai do trabalho. Um café a meio da tarde serve de consolo para arregalar a vista e recuperar energia, confessa.
Da janela do restaurante da fortaleza amarela sobranceira ao mar vê as praias da sua infância: a extensão do Guincho, de um lado, ventosa, onde experimentou o body board sem chegar a entusiasmar-se, onde passava as tardes a jogar raquetes, onde se deliciava com as bolas de Berlim, ao final do dia, onde acabava as noites e via nascer os dias depois das saídas boémias — “a melhor praia do mundo”; do outro lado, a Cresmina, protegida do vento, sossegada, familiar. É ali onde vai buscar inspiração para o que serve e não fosse o único prato de carne da carta, seria somente dedicada a peixes e mariscos. “Nunca trabalhei em nenhum sítio que tivesse melhor peixe do que aquele que recebo aqui”, diz. Nem tudo o que vem à rede é peixe, mas são algas, conchas, pedras que têm o seu lugar na composição dos pratos.
Há um punhado de ouriços na cozinha. “A época de defeso terminou”, explica. Quando era miúdo via-os entre as rochas e ninguém os apanhava. “Ainda agora não são muito conhecidos, mas começam a comer-se mais”. Ele gosta, como quase tudo o que o mar dá. É o conforto do lugar onde foi e é feliz. Um dia — que foram muitos — também foi feliz em Budapeste com um Big Mac, comprado no McDrive antes de chegar a casa, era o seu ideal de refeição quando o mar estava longe...
Junte-se um punhado amigos, “escolhidos a dedo”, um local com vista de mar, claro, e ele a cozinhar — o derradeiro prazer. Sirva-se “uma cerveja super gelada ou um champanhe, mas também podia ser um espumante português e a última refeição seria perfeita.
Alexandre Silva
Loco, Lisboa
A avó Silvéria, que já soma 94 anos, costumava fazer uma açorda de alho com bife grelhado que era o regalo dos netos. Alexandre Silva gostaria de repetir esse prato que lhe devolve os dias na Abrigada, concelho de Alenquer, e que representa tudo o que é, “a simplicidade”, resume. “Tem uma grande simbologia para mim”.
Na verdade, nunca pensou que a avó pudesse ter a sua quota de responsabilidade por se ter tornado chef, mas sabe que foi a matriarca quem lhe deu a sensibilidade e ajudou a construir o palato que tem. A casa da avó Silvéria era onde se encontravam à hora de almoço, Alexandre, o irmão e os primos. “Todos os netos recordam a maneira de ser dela e como com qualquer coisa fazia boa cozinha”, lembra. Outras influências vêm dos tempos passados na terra, até aos 18 anos, no sopé da serra de Montejunto, na aldeia, com gente humilde, que repartia o trabalho entre a lavoura, o campo e as vinhas. “O meu avô era vitivinicultor e eu acompanhava-o, tínhamos horta, animais, pomares, aprendi a escolher os produtos, trabalhar no campo não era uma opção, fazia parte do dia-a-dia, todos ajudávamos. Hoje sinto falta disso.”
Guarda uma foto de turma da terceira classe, do dia em que comeu manga pela primeira vez. “O sabor fazia-me lembrar eucalipto”, recorda. O episódio parece banal mas demorou oito anos a experimentar um fruto que a filha com dois meses já provou. Ao mesmo tempo que não tinha acesso a tudo onde vivia, havia um respeito pelos ciclos da natureza. Quando entrou numa cozinha profissional, na Escola de Hotelaria, espantou-se que em qualquer altura do ano houvesse tomate, alho francês, melão. Na sua cozinha no Loco voltou às origens e trabalha com micro-estações. “Há produtos que não duram mais de uma semana, porque a chuva não deixa”, justifica. Daí a dinâmica da carta sempre a aproveitar os recursos que a natureza dá.
No hipotético corredor da morte, Alexandre Silva, 35 anos, imagina que “a vida a passar à frente dos olhos”. Revisitaria as raízes. Não faltaria o episódio em que cozinhou um coelho estufado que deu a provar à avó Silvéria que, mais rigorosa que o júri do Top Chefe — concurso que ganhou na primeira edição portuguesa —, lhe criticou o excesso de alecrim. E ele, para quem comer sempre foi, é e será um prazer, seria um homem feliz com a simplicidade do pão de vários dias, alho e azeite, juntos numa açorda, e um belo bife grelhado, como a avó lhe preparava.
Ricardo Costa
Restaurante The Yeatman, Vila Nova de Gaia
É preciso navegar entre o Douro, aos pés de Gaia, e a ria de Aveiro para mergulhar no universo de Ricardo Costa. No derradeiro momento, ponderaria entre uma refeição no Vila Joya ou no Ocean, preparada por dois grandes chefs, ou voltaria às origens, à terra que o viu nascer, Aveiro, numa mesa povoada de memórias e sabores familiares, com pais, avós, tios, primos e amigos reunidos, como acontece em todas as datas festivas e os poucos momentos de convívio que sobram para além da azafama da cozinha.
O pedido: para começar, camarão da costa, ostras, percebes, berbigão, amêijoa; depois, se fosse Outono ou Inverno, uma caldeira de enguias, se fosse, na Primavera ou Verão, um leitão da Bairrada; por último, uns ovos moles de Aveiro ou um tiramisu, servido “bem gelado”.
É difícil traduzir por palavras as emoções de um homem, mas basta seguirmos o alinhamento de celebrações — aniversários, comunhões e outros rituais. “Nas datas festivas comemos leitão, nas mais importantes chanfana e nas muito importantes enguias, um prato menos acessível. Os ovos moles fazem sempre parte das mesas de Natal e passagem de ano”. O marisco chega pela via informal dos encontros de amigos, em que o chef, sem vontade de cozinhar quando sai da cozinha de todos os dias, se entrega a pratos menos elaborados e recebe sem pompa. Basta uma mesa variada e boa disposição, para ser do agrado de todos.
É hora de pensar naqueles que estão sempre longe da vista mas perto do coração. “Sou um marido, pai e filho ausente”, diz. Mesmo quando cozinha no The Yeatman, os pratos de peixe e marisco representam sempre esse regresso às raízes, as mesmas que a maturidade dos 37 anos lhe permite relativizar as estrelas. “Quando recebi a primeira tinha 29 anos, era a fase inicial em que queria mostrar e alcançar algo. Oito anos depois, as conquistas podem ser importantes para o negócio, mas não colmatam as ausências. Não tem preço o que se deixa de viver”, reconhece. É uma vida de sacrifício, de trabalho, de entrega. Quando, às segundas-feiras, sai, pela manhã, para Gaia, respira o cheiro da maresia trazida pelo vento e guarda essa sensação única. A última garfada, o último suspiro, bem podia saber a mar.
Nuno Bergonse
Freelance, Lisboa
Que seja a um domingo, com chuva. O cenário bucólico como pano de fundo para a última reunião da família. E, se pudesse ser, em casa. O momento teria uma forte dimensão emocional, daí a escolha do prato de Nuno Bergonse: “Uma sopa cozinhada pela minha mãe”. Assim como lhe deu a primeira refeição, seria a progenitora a confeccionar a última. Podia ser “uma sopa de entulho ou uma sopa da pedra sem carne e com muitos legumes, rica em couve, até ter de desapertar o cinto por estar tão cheio, como se fosse um dia de Natal”.
Comer sopa é um hábito que manteve diariamente desde criança. A educação alimentar veio acompanhada com uma filosofia de vida transmitida pelos pais, macrobióticos durante mais de uma década. “A minha mãe cozinhava tudo, desde o pão. Muitas vezes a sopa era a refeição e era bastante completa”, explica. Era preparada pela manhã e, ao pequeno-almoço, Nuno espreitava o que estava na panela e servia-se.
Nem sempre lhe pareceu bem a dieta dos pais, mas hoje reconhece que tira partido do que aprendeu. Por isso, a origem dos alimentos, a forma como são produzidos, o tipo de agricultura, como os animais são criados, são preocupações que tem em conta na hora de fazer escolhas. “A indústria alimentar assusta-me e revolta-me, sobretudo, as práticas e a pegada ambiental ligada ao consumo de carne”. Mas assevera: “Não sou vegetariano, adoro um naco de carne e um bom peixe”.
O cuidado com o que se comia veio acompanhado de um lado mais holístico, que também segue pela via da meditação. A ideia do corredor não o assusta, nem a morte. “O Cristianismo incute-nos a ideia de medo, de irmos para o Inferno. Eu identifico-me mais com os princípios Taoístas, em que toda a matéria é energia [filosofia-religião assente na busca do equilíbrio do corpo e deste com a natureza, assim como o desprendimento do mundo material]”. Contextualiza: “Entendo que estamos aqui com algum propósito, estamos para ser felizes e aproveitar esta vida ao máximo. A morte tem tanto peso como a vida”. Na despedida, seria a singeleza de uma sopa caseira, que o acompanhou sempre, a reconfortá-lo antes de seguir caminho. A família à mesa, a panela a fumegar, os copos cheios de vinho, lá fora, a chuva como lágrimas.
Rui Silvestre
Bon Bon, Sesmarias, Algarve
Sirva-se um lagostim ou um carabineiro à falta do primeiro, com laranja e um toque de Ponzu para deixar Rui Silvestre feliz ainda que empurrado para o corredor da morte. E uma “boa cerveja alemã”. “Sou um apaixonado por crustáceos, a laranja é o símbolo do Algarve e as influências asiáticas realçam a cozinha de produto que pratico”, justifica a combinação de ingredientes do prato. Natural de Valongo, mudou-se para Lagos aos nove anos, depois Portimão. Foi a Sul que, mais tarde, experimentou o fascínio pela cozinha, embora as raízes continuassem a Norte, onde a maioria da família se mantém. Ele ganhou mundo desde aí, um melting pot de experiências, de viagens, de lugares. “Sinto-me em casa em qualquer sítio, não é a geografia que me prende, sou ligado às pessoas e ao meu trabalho”, diz.
Deslumbrou-se com um prato de Bertílio Gomes (Chapitô à Mesa), aprendeu na Normandia, aventurou-se em Paris, sucedeu a Miguel Rocha Vieira (Fortaleza do Guincho) no Costes, em Budapeste. Tantas vezes foram as diferenças gastronómicas a testar o seu palato e a chocá-lo. Da Hungria, trouxe na memória “peixes de água doce, carne de porco mangalitsa, foie gras cru, sandes de pimentos”. Foi em Paris, em 2010, que teve o primeiro contacto com a cozinha asiática, no restaurante Le Petit Centre du Monde, onde se cruzou com o último chef do último imperador do Japão. “Foi ele quem me deu a conhecer a maior parte dos sabores e dos molhos”, recorda.
Segue uma cozinha de produto, onde os ingredientes nacionais são valorizados, à semelhança do que acontece nas cozinhas chinesa, japonesa ou vietnamita, que aprecia. Recria texturas, mistura sabores, sempre para tentar realçar os produtos. Nem sempre consegue os resultados que pretende, ainda hoje não consegue igualar o caril de frango preparado pelas mulheres da família e se tem um segredo ainda não o descobriu. Mas daí a matar por ele...
Ana Moura
Cave 23, Torel Palace Hotel, Lisboa
Os dois edifícios do início do século XX onde está instalado o Torel Palace Hotel, na Colina de Santana, em Lisboa, têm tanto de mágicos como de misteriosos. Deixe-se cair a noite, oiça-se o sussurro das árvores e barulhos que não se sabe bem de onde vêm e a cave, atrás de muros e do enorme portão de ferro, bem podia ser o cenário de um crime. Às tantas, quando sai da cozinha, Ana Moura não esconde que fica um pouco “apreensiva”, mas mais incomodada fica com a ideia do corredor da morte e o tanto que ainda estaria por fazer, algumas viagens, seguramente, México e Japão, no topo da lista, pela gastronomia, claro, mas tantos outros lugares. Há outra ideia que a atormenta: “Perder o palato”. Haverá maior punição para um chef? “Seria um desespero, uma total falta de controlo, estar dependente de outros, é uma imagem aterradora. Uma gripe já mete medo”.
Ana Moura — que aprendeu na cozinha do Eleven com Joachim Koerper e do Arkaz, em San Sebastián, onde foi protegida por Elena Arzak, a filha de Juan Mari Arzak, apontada como uma das melhores do mundo —, 32 anos, a dirigir a cozinha da Cave 23, revela aquela que seria a sua última refeição e a deixaria saciada: “É impossível não ficar feliz depois de um pão com chouriço e um copo de tinto”. E vêm-lhe à memória tantos momentos felizes com o cheiro do pão quente e o aroma inconfundível do chouriço: “As férias passadas em Porto Covo (Sines), os santos populares, as noitadas com amigos e todos os fornos de lenha nas feiras, uns pães melhores outros piores, mas sempre reconfortante”. O momento seria só seu, pois imaginar ter de partilhar o seu último pão com chouriço é um desconsolo. “Podia estar com o meu namorado, mas eu daria uma dentada no pão e ele comeria o resto todo num abrir e fechar de olhos...”.
Durante o tempo que viveu longe dos seus, esteve privada de alguns pratos, quase todos tão frugais como substanciais. “Em Espanha, tinha saudades da açorda alentejana, da carne de porco à alentejana, do pão alentejano, dos enchidos [dá-se conta que o Alentejo marca muito dos seus gostos]. Em Ávila, numa Páscoa fiz um ensopado de borrego e toda a gente odiou”. Queria replicar o almoço pascal a que estava habituada, preparado pela mãe, mas o borrego não reuniu o consenso dos comensais. Houve iguarias que aprendeu a gostar, como a mão de porco, língua, tripas, orelha. “Agora adoro, comecei a provar e entrou no meu palato. O grão e as lentilhas também”. Mas mesmo com a morte à espreita, há coisas que nunca se atreveria: “Não comeria bacon, o fumado misturado com a gordura é algo arrepiante para mim”. Fiquemos pelo pão com chouriço, acabado de sair de um qualquer forno de lenha, a fumegar, “das coisas que mais prazer me dá.”
João Rodrigues
Feitoria, Altis Belém, Lisboa
Uma travessa cheia de carabineiros grelhados, muito simples, para comer entre amigos e de preferência sem ter de cozinhar, é a ideia de João Rodrigues de uma refeição especial. “Ir ao Ramiro [afamada cervejaria em Lisboa] podia ser uma alternativa”, sugere. Não esquece os melhores que provou até à data: “Foi em Peniche, estavam no ponto certo, isso é fundamental. Mas são as circunstâncias, a companhia, os momentos, que nos marcam, se estamos predispostos a estar bem tudo nos sabe melhor”.
Nascido em Lisboa, a sua relação com o mar vem de longe, dos tempos de menino, quando ia à pesca com o pai e se interessou por Biologia Marinha, que pensou seguir antes de sentir o apelo da cozinha. Continuou a pescar, ainda hoje, com o pessoal do hotel [Altis Belém], ou quando com o amigo Joel, que tem um restaurante concorrido em Peniche, se juntam aos pescadores da zona e vão até às Berlengas. Também se dedicou à prática de surf na Ericeira, mas isso foi em tempos idos, escusa-se na falta de tempo para justificar um ano sem dar uso à prancha. Mas o mar continua a entrar-lhe pela cozinha diariamente, com peixes e mariscos que leva à carta e tenta respeitar. “Procuro livrar-me do que é acessório e concentrar-me nos produtos. Não é uma visão simplista, porque pegar em algo simples e torná-lo extraordinário é o mais difícil de fazer”.
Recentemente, teve o privilégio de ter nas mãos uma trufa de branca de Alba com 618 gramas, que confeccionou a convite do chef Lubomir Stanisic. Algo pelo qual um chef mataria? “Não era caso para tanto”, diz, “mas é realmente o ingrediente fetiche de qualquer chef e é uma experiência única.”
Gosta de comer e de beber, confessa. Não consegue resistir a um cozido à portuguesa. Sofre de gula, não vê prazer maior do que estar em volta de uma mesa, mas não se deixa iludir: “Todos somos vítimas dos sete pecados capitais, mesmo os que não gostamos de assumir.” A morte dá-lhe que pensar agora que é pai de três. “Dá-se outra importância à vida, quer-se estar cá mais tempo por eles”.
Arnaldo Azevedo
Palco, Hotel Teatro, Porto
“É raro comer, mas ainda ontem foi o almoço e é o meu prato preferido, uns panadinhos de vitela com arroz de tomate”, diz sem hesitações Arnaldo Azevedo. Não há mise en place nem mise en scène para aqui chamado, apenas a comida de tacho preparada pelo pai, também ele cozinheiro, a responder pelo mesmo nome, responsável por ele ter seguido as suas pegadas. Desde miúdo que cresceu na cozinha da Toca da Formiga, em Ermesinde, local de peregrinações de gastrónomos. E se à Toca vai, há mais de três décadas, muita boa gente pelo arroz de entrecosto em vinha de alhos, que o pai escreve à mão na ementa replicada em papel químico, o filho rende-se ao arroz de ervilhas com chouriço de Trás-os-Montes, mas podia ser qualquer outro, desde que seja arroz. “Sempre preferi arroz a batatas, é um alimento muito usado nas cozinhas do Norte, quer como acompanhamento, quer como prato principal, e o meu pai é mestre a prepará-lo”, afiança.
“Farto de cozinha de autor estou eu”, queixa-se. Portuense de gema, o responsável pela cozinha do restaurante Palco do Hotel Teatro, na Baixa do Porto, dá valor às coisas da terra, às memórias dos cozinhados da avó, que também teve uma tasca e viveu entre tachos e panelas e junta essa herança gastronómica e o receituário tradicional às suas técnicas. “Na alta cozinha, cada vez mais, resgatam-se as origens, agora já se serve rabo de boi”, exemplifica.
A maior de todas as lições que aprendeu com o pai: “Não servir gato por lebre, tudo o que servimos tem de ser bom”. Não é de quantidades, é de qualidade. O pai liga-lhe para saber se conta com ele para a refeição, para o paparicar com o que mais aprecia, umas iscas de bacalhau, por exemplo. A mãe, que é o braço direito do marido na Toca da Formiga, é que lhe pede “umas coisinhas diferentes, uns petiscos para se entreterem à mesa, podem ser apenas ovos, que adora”. Aos domingos ao jantar, ele volta a aproximar-se do fogão em casa para lhe dar esse prazer: “Faço umas tortilhas, pode ser vegetariana, à camponesa ou simples, mas boa”.
Chegada a hora de sair de cena, que seja com o prato com que se delicia desde miúdo e um vinho do Douro, se for Inverno, ou um Alvarinho, se o dia estiver quente. “A morte há-de chegar. Um dia de cada vez.”
Bertílio Gomes
Chapitô à Mesa, Lisboa
É preciso papel e caneta para anotar a ementa. Bertílio Gomes tem uma história para cada prato que gostaria de saborear na despedida, mas ele que já plantou árvores, que já tem dois filhos e que já escreveu livros, requisitos que um dia alguém apontou como necessários para um homem ser completo, transtorna-se com a ideia do fim por todas as coisas que ainda não fez. E avisa: “Ainda não estou preparado”. Talvez, por isso, a ementa seja longa para se demorar na degustação.
Para abrir o apetite: “Pão algarvio, de cabeça, ou alentejano, porque o melhor é da fronteira entre as duas regiões, por Martim Longo, Alcoutim, Mértola. Presunto pata negra Cinco Jotas ou Joselito, produtos excepcionais, que adoro, porque é uma arte o tempo que é preciso para se chegar ao ponto certo, 36 meses no mínimo, entre a criação e a maturação. Vale por si, basta uma cerveja a acompanhar”. O filho Gabriel de cinco anos, que se apresenta como “o cozinheiro” partilha com o pai o prazer do pata negra, de resto, como quase tudo, mesmo que o pai nunca o tente influenciar.
A entrada é uma ode marítima: percebes, lagostins e ouriços-do-mar. Os primeiros são os predilectos do filho Valentim, de 11 anos, os segundos são de “uma delicadeza ímpar”, apenas cozidos e servidos com maionese. “Entre Fevereiro e Março, acontecem as maiores marés do ano, e costumo ir com a minha mulher, os meus filhos e os meus padrinhos, apanhar ouriços numa praia no Algarve, tornou-se uma tradição”, conta. Nessa altura, consegue chegar a locais habitualmente inacessíveis e, junto às rochas, os bichos da classe dos equinodermos crescem em abundância. “Comê-los, acabados de apanhar, é algo inigualável por mais que se tente recriar o cenário nos restaurantes”. A localização concreta seguirá com ele no corredor com a promessa de não revelar o segredo.
O peixe nem numa travessa caberia. “Um pregado grelhado, inteiro, com pelo menos cinco quilos, com bastante flor de sal da Salmarim, grelos de couve e um fio de azeite”, precisa.
“Acabaria com a carne”, diz, como se o menu até aqui fosse leve e ainda tivesse barriga para continuar, “umas galinholas com foie gras feitas com a tripa, cozinhadas quatro a cinco horas, em vinho do Porto, com um toque de tomilho e folha de louro”, um clássico da cozinha francesa. Todos os anos, costuma prepará-las assim para uns clientes que as caçam na Irlanda e as trazem para um almoço-convívio. “E o molho? É qualquer coisa...”. O chef do Chapitô à Mesa saliva só de pensar.
“Também podia ser uns boletos. Já é muita coisa?” O chef denuncia a ansiedade ao pensar no momento. E se deixa de fora um ingrediente fundamental? Não dispensa a sobremesa, claro, “um sorbet de maracujá ou um gelado de eucalipto, frescos e não muito pesados”. Como se fosse uma bola de gelado a fazer diferença na pressão dos acontecimentos. Nenhuma árvore, nenhum filho, nem nenhum livro prepara um homem para enfrentar a morte. Mesmo de barriga cheia.
Hugo Brito
Boi-Cavalo, Lisboa
Uma casa que se enche de nevoeiro, cada vez mais invadida por essa nuvem de fumo branco... Hugo Brito fez um filme de terror nesse cenário antes de se dedicar à cozinha, não é preciso ter imaginação muito fértil para imaginar tudo o que podia acontecer num talho — o cheiro a carne fresca, sangue, vísceras, a faca a cortar os ossos, a arca frigorífica no meio da sala, onde hoje se servem refeições. Neste argumento, o ideal seria ter o cozinheiro a matar o artista, mas ele prefere pensar que “o cozinheiro consumiu o artista que já não tinha nada a dizer”. Para trás ficou a Sociologia, as Artes Plásticas, o ensino. Agora o que faz na cozinha “tem que ter significado”. É isso que o move, como um statement, com uma dimensão política até, ou não se tivesse instalado num espaço em Alfama, sem grandes apetrechos e menos mordomias, com preços para não espantar clientes.
Neste filme, em que o cozinheiro se arrasta pelo corredor da morte, um prato o faria salivar: “Acelgas salteadas com alho, malagueta e ovo escalfado. E ostras!”. Nunca esqueceu a primeira vez que provou “acelgas boas” preparadas pelo amigo António Rosa, um agricultor que cultiva tudo, perto da Arrifana, foi sem ovo, mas Hugo Brito gosta de o acrescentar para que o prato que é um acompanhamento ganhe o estatuto de principal. E o bem que lhe sabe... “Costumo fazer quando estou sozinho, sempre que vou às compras e há acelgas”. As ostras são outra história: “Desde que provei a primeira vez, todas as ostras são sempre uma surpresa. Gosto ao natural, mas não sou purista. Viajo para Cacela Velha, em Maio, com o sabor. Bons momentos”.
Primeiro, uma cerveja, depois um vinho branco. Estamos na Rua do Vigário, talvez confesse o crime... Os passos arrastam-se, pesados, pelo corredor. Uma cortina de fumo paira. É chegada a hora!
Texto publicado na revista Culto de Dezembro