Em números redondos, há 600 anos que os Açores entraram no mapa-múndi, mas o isolamento do arquipélago imposto pela geografia prolonga-se hoje por outras razões. Gasta-se menos a voar para as Canárias do que para São Miguel. Um contra-senso que tem os seus custos.
A ausência ou a dificuldade em estabelecer trocas coloca os Açores no lugar da tia-avó afastada de que todos nos falam, mas que raramente é vista como parte da família. Preencher esse vazio é a tarefa que agora está nas mãos do turismo dos Açores, da Secretaria Regional da Economia e da Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada, em São Miguel.
Estas três instituições convidaram o chefe Luís Baena - do restaurante Manifesto (Lisboa) e chefe executivo da cadeia Tivoli -, para dar aos Açores um lugar à mesa que se veja.
Pela primeira vez, 14 cozinheiros de todas as ilhas açorianas trabalharam em conjunto, sob a batuta de Luís Baena, com a missão de "interpretar de forma diferente" alguns dos ingredientes regionais dos Açores que estão subvalorizados ou esquecidos. Um trabalho de resgate que começou no restaurante Anfiteatro, em Ponta Delgada, há duas semanas, prosseguiu esta semana em Lisboa, no restaurante Manifesto, e continuará a partir de Abril no festival de gastronomia Peixe em Lisboa.
Tecnicamente, diz Luís Baena, a cozinha dos Açores não é muito evoluída, como de resto muita da gastronomia regional. Em termos de ingredientes, os produtos deste arquipélago exercem algum fascínio sobre o chefe, porque o seu uso permite recentrar a cozinha portuguesa nas suas influências atlânticas, afastando-a da concepção de cozinha mediterrânica. O resultado desta cooperação, que vai no terceiro ano, entre Luís Baena e os Açores, já foi posto à prova em eventos seleccionados e será testado agora pelo grande público no Peixe em Lisboa, onde o Manifesto se estreia com uma ementa centrada em produtos tradicionais dos Açores.
Antes desse teste, uma equipa de 15 pessoas preparou em São Miguel sete entradas, cinco pratos principais e duas sobremesas, repetindo depois, com ligeiras alterações, em Lisboa, a maioria desses ingredientes resgatados ao esquecimento. Foi uma espécie de cartão de visita ou convite para mostrar a um público especializado que manifesto é este que vai ser apresentado aos visitantes do Peixe em Lisboa.
Em São Miguel, foi servido um cocktail em que pontificaram as almôndegas de lula, o sushi de queijo de São Jorge com debulho e crumble de morcela, a trouxa de alheira de Santa Maria e o queijo velho de São Miguel com esparguete de goiaba. A par dos sonhos de banana com polvo, e dos chupas de queijo velho de São Miguel servido dias mais tarde em Lisboa, terão sido as experiências mais bem conseguidas neste esforço de dar uma anatomia diferente a produtos açorianos que merecem ser (re)descobertos.
O jantar começou com um amuse bouche, notável para quem gosta de lapas: abalone (popularmente conhecida como lapa burra, que se encontra muito no Pico) servida com uma manteiga de ananás dos Açores, doce e cremosa. A lapa, bastante rija, foi levemente frita em azeite e acompanhava com quatro espécies de algas (favas do mar, nuri, alface do mar e erva malagueta).
Seguiu-se um ceviche de peixe-espada preto (espécie substituída em Lisboa pela veja, ou peixepapagaio), limão galego (de origem indiana, assemelha-se no aspecto à tangerina, no sabor fica entre o limão e a lima, é muito usado em São Miguel, por exemplo nas marinadas), ouriço-do-mar, cebola de curtume e chips de batata-doce.
A receita é originária do Peru e já tinha sido apresentada por Luís Baena em Madrid, no ano passado.
Porém, em matéria de produtos tidos como "pobres", a grande surpresa foi um aveludado de inhame com abóbora assada e chantilly de cracas. Surpreendente a textura do inhame - um tubérculo que por ser muito calórico era presença assídua nas casas de parco orçamento - e a leveza do chantilly, obtido a partir da junção de natas ao caldo em que se cozeram as cracas - crustáceos que, para muitos, não passam daquelas conchas calcárias que se vêem agarradas aos cascos dos barcos.
A excelência do pescado açoriano - muito do qual chega anonimamente às cozinhas continentais via Mercado Abastecedor da Região de Lisboa - revelou-se no prato seguinte, um meli-melô (mistura, combinação) de chicharro marinado e fumado a quente com tataki de atum, tatin de batata e uma maionese de poejo. O chicharro (carapau, no continente) foi fumado a quente com chá - outro produto típico dos Açores, que é, aliás, a única região europeia onde se cultiva chá - resultando num contraste com o peixe marinado e o tataki de atum (brevemente tostado). A cereja em cima do bolo foi o poejo em espuma, aligeirando um prato que se revelou repleto e farto.
Antes da sobremesa, foi servida a alcatra de capão (galo castrado) do Nordeste em pastel de massa tenra. A carne foi tratada como habitual neste prato tradicional, depois desfiada e envolvida na massa para ser transformada num pastel acompanhado com salada e caiota (chuchu, no continente).
A terminar, houve pétalas de abóbora caramelizadas com anona - outro fruto aqui resgatado - e um creme queimado de chá preto com gelado de maracujá. Um desfecho com notas doces, neste jantar de antecipação ao festival Peixe em Lisboa, entre 7 e 17 de Abril, no Pátio da Galé.
A Fugas viajou a convite da Associação Turismo dos Açores, SATA e Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada