Um dia num "banal" restaurante "argentino" de centro comercial, explicava ao empregado, brasileiro, como queria o meu bife: "mal passado, um pouco menos de médio, não em sangue, pa-ta-ti pa-ta-ta." Ele cortou-me a palavra, fez um ar ofendido e afirmou convicto e orgulhoso, com um pundonor que lhe mostrava as origens das pampas gaúchas: "Nós servimos a carne no ponto." Calei-me, humilde. O bife veio no ponto.
O ponto. Esse mito que se pode comparar ao al dente da massa italiana. O ponto será diferente para diferentes alimentos e para diferentes pessoas. Mas para ser ponto, a variação deve ser muito pequena em torno de um estado de perfeição gulosa, a que poucos resistirão. Para simplificar o assunto, deixemos de lado os peixes e vamos directo para as carnes.
Na carne, o ponto é um estado no qual o exterior fica dourado, estaladiço, desenvolvendo sabores e aromas próprios, enquanto o interior cozinha mais lentamente, mantendo a suculência. Uma das principais formas de dar sabor à carne vem de uma reacção chamada de Maillard, na qual as proteínas se combinam com os açúcares presentes gerando o aspecto castanho-dourado e uma gama de centenas de sabores e aromas novos. Não serve que a carne esteja crua por dentro, mas também não se pode cozinhá-la demasiado, que a desidratação torna a carne seca e com textura desagradável. Para esta dualidade interior-exterior, o tempo e a intensidade do calor são críticos. É preciso evitar que a exposição ao calor se prolongue demasiado, para não cozinhar muito por dentro. Mas uma intensidade forte e breve pode queimar a carne por fora deixando-a crua por dentro. É preciso mão e experiência.
O ponto é diferente em diferentes carnes. Nem pensar em servir um frango mal passado por dentro, mas também não se quer queimado por fora. O porco suporta algum rosado interno, mas apenas muito ligeiro. O seu teor de gordura permite que se toste por fora enquanto a gordura derrete e preserva a humidade do interior. Com mão e técnica, mesmo nas partes mais magras pode-se obter uma textura apenas suavemente rosada, suculenta. A vaca e o borrego suportam facilmente um interior mais variável, que pode ser quase crua, desde que quente. Mas os melhores grelhadores, como vimos, exigem mais de si próprios e obtêm um ponto castanho e estaladiço por fora enquanto por dentro a carne se apresenta de cor rubi viva, cozinhada, suculenta, texturada.
O churrasco é talvez a forma primordial de cozinhar. Fogo de lenha como fonte de calor, carne como alimento, talvez apenas o sal como tempero. Em Portugal, churrasco leva-nos logo para brasas de carvão vegetal, grelha, carne, sal, talvez azeite e piripiri. Mas nada disto é obrigatório. Como de costume, há um número infindável de pormenores, todos sem importância, todos imprescindíveis.
A importância do corte
Para escrever este artigo falei com talhantes, proprietários de restaurantes, chefes de cozinha, grelhadores, churrasqueiros de vários continentes, até com fabricantes de grelhadores.
Começando pelo princípio, a carne e seu corte. Vaca e porco, mesmo o borrego, para além de saborosos e frescos, para mim devem ter um corte alto. Mas Joaquim Rodrigues, talhante no Espaço LV, prefere um corte médio, de modo a que a confecção seja mais rápida. Esta também é a preferência da maior parte dos grelhadores profissionais, porque nos restaurantes há a pressão do tempo de serviço. Para mim, o corte alto defende melhor o interior da carne contra imprevidências do cozinheiro. Lembremo-nos que um cozinheiro profissional faz dezenas de bifes num dia, enquanto um amador pode levar vários meses a chegar a essa meta. Daí as dicas e truques que aqui incluo, para pular passos nesta aprendizagem, e suprir a falta de experiência. O que não resulta mesmo bem é a carne muito fininha. O churrasco implica sempre calor muito alto, logo uma peça muito fina seca imediatamente por dentro.
O sal é fundamental. Da minha experiência, opto por salgar o porco mesmo antes da confecção, mas a vaca só depois. O borrego é mais variável, tal como o porco pode até marinar antes numa vinha de alhos, ou algo assim.
Nos restaurantes, normalmente os grelhados são feitos de uma só vez. Para chegar ao ponto certo, a experiência do cozinheiro chega. António Tavares, da Carvoaria, disse-me que nem apalpa a carne com os dedos, chega-lhe olhar para ela. Já Henrique Dias, da churrasqueira Rio de Mel, especializada em frangos, diz-me que ao sopesar um frango sabe imediatamente se está no ponto. Aqui, os frangos são marinados umas horas antes em alho, limão e outros temperos, para serem depois assados em grelhas rotativas sobre carvão vegetal.
O churrasco sul-americano é diferente. Peças grandes, colocadas em espetos e assadas em calor de fogueiras, mas não directamente. Evandro Mello, do Fogo de Chão, diz-me que quando mais lento o assado mais suculento fica. Claro que estas peças são fatiadas na mesa e podem voltar para o fogo para mais Maillard. Nos restaurantes a fonte de calor é adaptada, podem ser brasas, como no argentino Las Brasitas, ou electricidade, como no Fogo de Chão. Aqui, são importantes os cortes diferentes da vaca, que enfatizam diferentes texturas e sabores.
Churrasco em casa
Mesmo sem carvão, pode-se churrascar em casa. Carlos Castro, do Novo Dia/Tico Tico, e André Magalhães ajudaram-me a afinar estes truques. Para peças bem altas (sugiro pojadouro ou vazia de vaca, mas funciona também com postas grossas de lombo de porco), aplicar fogo forte durante alguns minutos e sem medo. Uma panela de ferro fundido, uma grelha estriada, ou uma frigideira pesada ajudam a concentrar o calor. A gordura pode ser azeite, ou um óleo neutro, que aguente bem o calor sem queimar.
Quando a peça está selada a toda a volta, retirar a carne para um prato e reservar uns minutos. Durante este tempo, os sucos do interior voltam a espalhar-se, conduzindo o calor a toda a peça. Mais ou menos a meio, vira-se a peça, para manter os sucos no interior.
Entretanto, a fogo moderado podese ir fazendo um molho. No Tico-Tico inclui manteiga, alho, louro e vinho branco, outras combinações são cebola, colorau e piripiri, o porco pode pedir um pouco de bom vinagre para eliminar os maus odores e reforçar o sabor. Antes de servir, a carne volta para este fogo moderado durante mais alguns minutos, para acabar de cozinhar o interior. Um panelão de ferro fundido com tampa ou o forno podem ser soluções para esta fase.
De novo, uns poucos minutos de descanso antes de fatiar garantem uma carne mais suculenta. Antes de ganhar experiência com esta técnica, o resultado pode ser imprevisível. Assim, mais um truque para socorrer aos desastres. Vale a pena passar sempre de menos. Se for muito de menos, a carne fatiada pode voltar à panela, cinco segundos em cada face, o que garante algum ponto.
Variantes exóticas
Se há coisa que não entendo, é churrascar na labareda. Mas certa vez em Washington comi um extraordinário hambúrguer que tinha estado envolto em chamas e fumo sobre uma grelha durante metade da confecção. Os norteamericanos distinguem barbecue (calor indirecto) de grill (calor directo por baixo), e de broil (calor directo por cima), e há muitas variantes regionais. O barbecue tanto pode usar fumo e calor baixo durante várias horas, como assar no forno de convecção (baking), como assar na grelha num caldo (braising), ou grelhar sobre calor directo. Muitas vezes as carnes são pinceladas com molhos doces ou picantes, ou esfregadas com especiarias.
Os grelhadores podem ser abertos ou fechados, para executar várias destas técnicas. O churrasco mais famoso da Índia e outros países vizinhos e até nos Balcãs é feito no tandoor, um forno cilíndrico ou oval em barro. A famosa galinha tandoori (tal como a tikka) é marinada em iogurte e especiarias para depois assar num tandoor. Apesar das parecenças, a tajine magrebina não pode ser considerada um churrasco, já que cozinha lentamente a temperaturas baixas, gerando pratos com molho. Os mais parecidos com os portugueses são os asados argentinos e os churrascos brasileiros, de influência gaúcha. A diferença principal aqui é o corte das carnes e os molhos (como o argentino chimichurri, feito com salsa, orégãos, alho, cebola, paprika, sal, pimenta e azeite). Nestes, pode ser usada uma grelha, mas a tradição é uma fogueira no chão, com as carnes a serem colocadas em espetos, próximas do calor, mas não directamente sobre ele.
A carne
Os cortes da vaca diferem de país para país. Em Portugal há uma certa cristalização nos cortes clássicos, estando alguns cortes reservados para carne importada. É o caso da picanha, uma parte muito apreciada da alcatra, que os talhos nacionais exploram na vertente congelada ou embalada em vácuo, e sempre importada da América do Sul (Argentina, Brasil, Uruguai) ou mesmo da Europa (Holanda, Escócia). Em geral, penso que os cortes americanos (tanto do Norte como do Sul, aliás, os cortes são parecidos) exploram mais as particularidades da textura e sabor de cada peça. Em Portugal, o marmoreado da carne de vaca não é muito valorizado. Este aspecto marmoreado, dado pela mescla uniforme de gordura no interior dos músculos, é típico dos animais criados ao ar livre. A gordura derrete durante a confecção, contribuindo para a maciez e o sabor da carne.
Este fenómeno é bem conhecido e apreciado no porco, especialmente no porco preto e bísaro. Uma técnica também muito usada noutros países mas não permitida em Portugal é a maturação da carne. A maturação é um processo natural de amaciamento da carne provocado pelas enzimas presentes, que amacia a carne e lhe confere um sabor e um aroma mais acentuados. O processo deve ocorrer a uma temperatura entre 0ºC e 2ºC, com a carne protegida contra infecções microbianas, e demora uma a cinco semanas. As raças europeias têm uma maturação mais rápida do que as americanas (de origem indiana).
Vinhos para churrasco
O churrasco tanto pode ser um alegre evento social, como um extraordinário prato onde carnes de primeira linha brilham na mão de assadores competentes. Ou seja, os vinhos para churrasco podem percorrer toda a gama disponível.
Se formos acender brasas e fazer em casa, saltam os brancos e rosés, para ir bebericando enquanto o se produz o calor. Eventualmente, enquanto os enchidos vão saindo da brasa, podemos continuar com estes. Claro que uma cervejinha gelada também cai bem, mas não posso dizer isso. Mas posso dizer que nunca o champagne sabe tão bem como quando se está quase a acabar de cozinhar e quase a começar a comer.
Com as carnes mais sérias, tinto. Podem ser tintos jovens, robustos, frescos e encorpados. Mas como a carne grelhada pode ser um prato relativamente neutro, pode também ser perfeita para deixar brilhar os melhores tintos.
Um frango assado, suculento e estaladiço, pode acompanhar o melhor tinto do mundo com mérito. Na minha escolha de vinhos procurei assim percorrer o país, encontrando vinhos acessíveis, em preço e em estilo, com um vigor que eu procuraria ligar aos melhores cortes de carne.
Quinta do Infantado Douro reserva
Douro Reserva tinto 2008
Quinta do Infantado
Topo de gama entre os vinhos de mesa da histórica Quinta do Infantado, mais conhecida pelos seus Vinhos do Porto. A quinta vai pacatamente reconfigurando a vinha em produção biológica. Este Reserva 2008 mostra fruta preta, pimenta, húmus, minerais. Elegante, denso e complexo. Muito texturado na boca, com os taninos rugosos muito bem envolvidos, frescura dada pela excelente acidez, final longo, austero, muito equilibrado e elegante, profundo (€22)
Quinta Lagoalva de Cima
Syrah Grande Escolha 2008 Reg. Tejo tinto
Soc. Agr. Quinta Lagoalva de Cima
Enorme quinta do Ribatejo, com muitos vinhos que já pertencem à história da região. A recente renovação enológica não tirou qualidade nem longevidade a estes vinhos, pioneiros da Syrah em Portugal. Este 2008 mostra fruta vermelha, muita frescura, fumados, tudo muito envolvente. Na boca tem acidez a dar frescura, taninos suaves, especiarias, corpo médio, termina intenso, longo e fresco. (€23)
Pegos Claros
Palmela tinto 2005
Companhia das Quintas
Uma marca histórica entre os tintos de Palmela, talvez os mais sub-valorizados do país. Este 2005 está num ponto perfeito para consumo, mostrando fruta densa, preta e azul, notas lenhosas, muita profundidade. Na boca está fresco e equilibrado, denso, com taninos muito elegantes, final muito longo e profundo. (€4)
Quinta da Pellada
Dão tinto 2007
Álvaro Castro
Para além de outros vinhos mais badalados deste produtor, o Quinta da Pellada é sempre um tinto estrela desta quinta nas faldas da Serra da Estrela. Mostra fruta preta e violeta muito densa, com travo mineral, ervas aromáticas, chocolate, alcaçuz. Bonito e profundo, complexo. Na boca entra discreto, corpo médio, depois explode em sabores, texturado, fresco, profundo, rugoso, sedutor, longo. Belíssimo. (€29)
Monsaraz Premium
Alentejo tinto 2008
CARMIM
A marca Monsaraz entrou no mercado como um furacão, num segmento muito disputado pelas grandes casas. Passado os anos, a Carmim mostra que é possível a uma cooperativa competir também no segmento de tipo. Este Premium é profundo, com fruta preta na maturação perfeita, chocolate, notas tostadas, tudo muito elegante e integrado. Muito polido e envolvente, com corpo texturado, acidez correcta, muito saboroso, sumarento, longo. Uma boa surpresa. (€23)