Ao email chega-nos uma fotografia de vários queijos da serra da Estrela, abertos, com uma ligeira barriga abaulada. Nenhum deles escorre para o prato como se vê tantas vezes. E nenhum foi aberto com uma “tampa” na casca em cima. A foto foi enviada por Manuela Barbosa, uma das principais especialistas em queijos portugueses, e surgiu na sequência de uma conversa precisamente sobre a relação que temos com os queijos nacionais.
O serra da Estrela nunca foi comido mole, à colherada, diz a autora de Queijos Portugueses, com Maria de Lourdes Modesto, e de O ABC dos Queijos Portugueses (ed. Feitoria dos Livros), prémio Best Cheese Book do Gourmand World Cookbook. “Não sei de onde vem a moda de mudar as características dos queijos. O que aconteceu com o serra da Estrela foi um abuso, foi incompetência. O serra come-se à fatia. Passou a ser fino ter o queijo aberto por cima, o que é uma atrocidade. Antigamente, um queijo a escorrer era um queijo que tinha defeito, e isso acontecia em anos que tinham sido muito húmidos”, indigna-se.
Mas esta história tem a ver com algo mais vasto que apenas a consistência do queijo da serra: será que os portugueses conhecem bem os queijos que se fazem em Portugal? Pedro Cardoso, da Queijaria, uma loja especializada que abriu recentemente em Lisboa (ver texto nestas páginas), assume-se como um recém-chegado ao mundo dos queijos, mas queixa-se do facto de não haver a figura do affineur que existe noutros países e que tem a vantagem não só de trabalhar a maturação dos queijos mas também de funcionar como o fornecedor das lojas de queijos.
“Em Portugal não se trabalha a cura dos queijos”, concorda Manuela Barbosa. “Vendem-se com os tempos mínimos de maturação e isso é uma má técnica porque depois têm todos os mesmo sabor.” Não acha que a solução passe pela existência dos afinadores, porque “isso não está na nossa cultura, e não precisamos de copiar os modelos dos outros”, mas acredita que os queijos portugueses teriam muito a ganhar se os produtores apostassem, nalguns casos, em prolongar os tempos de cura.
Diogo Rocha, chef do restaurante Mesa de Lemos, na Quinta de Lemos, próxima de Viseu, decidiu desafiar um produtor de queijo serra da Estrela a fazer uma experiência: criaram quatro queijos, um com 17 quilos e três com 30 quilos, que estão a deixar maturar por períodos diferentes para ver o resultado. “Abrimos o primeiro ao fim de dois meses mas o resultado foi muito semelhante ao de um queijo mais pequeno”, conta Diogo Rocha. “O segundo, com cura de seis meses, já mostra alguma evolução, com alguns toques de picante, embora ainda tenha alguma acidez no interior, que ainda está um pouco ‘verde’.”
O terceiro queijo só será aberto ao fim de um ano e o quarto e último ao fim de dois anos. O chef sublinha que se trata apenas de uma experiência, que partiu da ideia de que “alguns dos melhores queijos do mundo, como o Parmesão, são grandes”.
“Envelhecer um queijo é toda uma arte”, frisa, por seu lado, Manuela Barbosa. “Os afinadores vão vendo a evolução da pasta. Claro que é muito mais difícil fazê-lo com queijos pequenos.” E isto prende-se com outro “erro crasso”, que é a diminuição das dimensões dos queijos tradicionais portugueses para os tornar mais fáceis de vender. “Diz-se que se as pessoas não podem comprar grande, então fazemos pequeno, mas os fenómenos bioquímicos que se dão num queijo grande são diferentes.” Quanto a fazer um serra gigante, acha que “como experiência tudo se pode fazer”, mas recorda que o tamanho tradicional é de 1,5 a dois quilos, e que tem a ver com o facto de na região o tamanho dos rebanhos não ser muito grande.
Quando o queijo de 30 quilos e dois anos de cura estiver pronto a abrir, Diogo Rocha vai servi-lo simples, acompanhado apenas pelos doces que faz no Mesa de Lemos. “Um queijo como esse vai valer por si”, diz. Na sua cozinha usa o serra da Estrela, mas o de tamanho tradicional, sobretudo em entradas ou sobremesas como o pudim de queijo.
A diferença está no leite
Passamos para Lisboa e para o restaurante Avenue, de Marlene Vieira, que tem na carta uma tábua de queijos portugueses, resultado de uma pesquisa junto dos produtores artesanais. Mas, apesar de ser “apaixonada por queijos”, confessa que ainda os integra pouco nos seus pratos. “Cada vez gosto mais de queijos, estive há pouco tempo no País Basco e todos os restaurantes a que fui tinham um prato com queijo. Faz parte da cultura deles. Aqui no restaurante ainda não tenho muito e gostava de ter muito mais. Já fiz, por exemplo, uma salada com presunto, morangos e queijo dos Açores, mas acho que é importante que se faça uma pesquisa mais profunda sobre a tradição dos queijos na nossa gastronomia.”
Voltamos a ouvir Manuela Barbosa: “Os portugueses ainda são muito ignorantes em relação aos seus queijos. Sempre fomos um país pobre, e tínhamos o hábito de comer queijos regionais mas de muito má qualidade. O Serpa, que era um queijo grande, de 2,5 quilos, praticamente desapareceu. No Alentejo fazia-se o grande queijo da casa senhorial, que se mantinha aberto e ia-se comendo. O resto era transformado em queijos mais pequenos, secos e muito salgados, que os trabalhadores punham num saco com um pão. Isso era a nossa tradição nos anos 1930, 40.” E quando, a seguir ao 25 de Abril, se generalizou o consumo de queijo, foi com o flamengo. A isto soma-se outro problema: “Somos fracos produtores de leite, por isso o consumo de queijo sempre foi limitado.”
E, no entanto, temos vários queijos DOP que vale a pena conhecermos melhor. Temos, explica a especialista no seu livro, no continente sobretudo queijos feitos com leite de ovelha e cabra, ou mistura dos dois — o da serra da Estrela (que inspirou o de Azeitão) tem que usar o leite das ovelhas da raça bordaleira ou churra mondegueira, o de Serpa da raça merino, o transmontano terrincho a raça churra da Terra Quente, o de cabra transmontano usa o leite da cabra serrana.
Os queijos amarelo e picante da Beira Baixa usam a mistura de ovelha e cabra. E nos Açores, onde se fazem alguns dos melhores queijos portugueses (São Jorge, Pico), usa-se essencialmente o leite de vaca. Há ainda queijos que não sendo regionais merecem referência, como o queijo chèvre artesanal feito desde há 30 anos por Adolfo Henriques na Granja dos Moinhos, perto do Cartaxo, e que continua a ser o único chèvre de Portugal.
E, apesar do difícil panorama, continua a haver quem aposte no sector do queijo em Portugal — arrancou há pouco tempo o projecto da Queijaria de Marvão, numa zona, diz Vítor Bernardo, um dos responsáveis, onde não existia nenhuma queijaria e onde o leite de quem tinha cabras ou ovelhas era vendido para a indústria do queijo. O pouco lucro conseguido por essa venda do leite levou estes empresários a decidirem fazer o próprio queijo, sendo que o mais difícil é mesmo resolver o problema da distribuição para o colocar no mercado.
Um bom exemplo é o da Herdade dos Coteis, que faz queijo de Serpa, e que há um ano abriu a sua loja própria em Lisboa, onde, dispensando intermediários, vende directamente ao público o vinho, azeite e queijos que faz no Alentejo. Ou outras duas lojas que abriram recentemente, também na capital, com produtos da Beira Baixa — a Terras da Idanha e a Aromas da Beira Baixa —, onde se podem comprar os diversos e premiados queijos daquela região.
O que Manuela Barbosa receia é que, quando surgem no mercado até cópias do serra da Estrela feitas com leite de vaca, se estejam a adulterar os queijos tradicionais e que as pessoas não se apercebam de que o que estão a comprar não é o verdadeiro queijo DOP ou regional. Não basta gostar de queijo, é preciso conhecê-lo. “Nos últimos anos o vinho sofreu uma grande evolução em Portugal”, lembra a especialista. Os queijos portugueses estão à espera que lhes aconteça o mesmo.
São Jorge DOP, ?puro terroir açoriano
São oito a 12 quilos de puro terroir açoriano. Cada queijo de São Jorge concentra na sua pasta consistente de tom amarelo e pequenos orifícios distribuídos de forma irregular, as características destas pastagens insulares. É o leite que “transporta” no seu sabor o clima peculiar e a identidade dos pastos da ilha de São Jorge. O facto de a personalidade deste território ser irrepetível noutro local cria uma espécie de terroir cuja Denominação de Origem Protegida (DOP) é certificada desde 1986, sendo o nosso único queijo de vaca com prestígio internacional.
A produção de queijo na ilha de São Jorge iniciou-se há mais de 500 anos para ajudar à fixação e subsistência dos primeiros povoadores. Os primeiros queijos de São Jorge terão sido feitos também com o leite das ovelhas e cabras levadas em rebanho para a ilha. No entanto, foi a chegada de Bruges de Williem van der Haegen, no século XV, que marcou o fabrico de queijo de vaca. O povoador flamengo adoptou o nome de Guilherme da Silveira e estabeleceu-se na zona alta da ilha (Topo), onde encontrou condições ideais para fabricar queijo parecido com o da sua Flandres (actual Bélgica). Hoje, a freguesia mantém uma cooperativa de queijo.
O aroma intenso e a ligeira adstringência provocada pelo sabor picante são descritores perceptíveis após três meses de cura (mínimo permitido) e que se tornam notórios após sete meses de maturação. No entanto, há cerca de dois anos, a Escola de Hotelaria de Ponta Delgada fez uma descoberta inédita, como nos conta o seu director, Filipe Rocha. “Num evento que fizemos em São Jorge os professores de cozinha perguntaram se não havia um queijo com uma maturação mais prolongada e então trouxeram-nos um, salvo erro, com três anos. Nós utilizámo-lo num evento e era um queijo extraordinário.” Ao provarmos um exemplar com dois anos de cura sente-se que rivaliza em sabor com um parmesão de topo (24 meses), sendo menos quebradiço e com um final longo e lácteo. A comercialização pode ser realidade no futuro, segundo refere António Azevedo, da Lactaçores: “A aceitação foi fantástica e o assunto está a ser estudado, mas tem que se analisar a rentabilidade de ter um queijo armazenado durante dois anos antes de ir para o mercado.”
Pode abrir-se aqui um capítulo de excelência no percurso do queijo de São Jorge, enriquecendo ainda mais a tábua queijeira portuguesa.
(Fortunato da Câmara)
Serra, o nosso símbolo
É um dos símbolos mais evidentes da nossa gastronomia, tem uma história e tradição seculares, mas continua envolto em muitos equívocos. “O ‘queijo da serra’ não existe!” Assim reage José Matias para vincar que só o “queijo serra da Estrela” é o genuíno e certificado e que nada tem a ver com aquele que se come à colher. É um queijo de pasta mole ou semimole, sendo os outros apenas queijos produzidos na região da serra da Estrela. A par da consistência, o técnico que é responsável pela produção da Casa da Ínsua, em Penalva do Castelo, destaca o teor de gordura e sabor únicos, qualidades normalmente só perceptíveis pelos especialistas. Para o consumidor comum, a garantia de estar perante o genuíno queijo serra da Estrela é dada pela referência DOP e pelo selo de certificação que vem colado no queijo, uma espécie de medalha com brilho e reflexos prateados numerada e com a indicação do dia em que foi feito.
A par dos procedimentos de higiene e controlo sanitário do rebanho, o verdadeiro serra da Estrela só pode ser produzido a partir de leite de ovelhas das raças autóctones bordaleira, serra da Estrela ou churra mondegueira, menos produtivas mas com um leite mais gordo, concentrado e de sabor acentuado. Daí as diferenças. Os outros ingredientes são o cardo vegetal, sal e as mãos hábeis e com o saber dos anos das queijeiras.
A pasta semimole, amanteigada e de cor branca ou ligeiramente amarelada é por isso bem ligada, cremosa e untuosa, com poucos ou nenhuns olhos. É dessa textura fechada e bem ligada que deverá resultar um som maciço quando o queijo é tocado com as pontas dos dedos.
Quando preservado por mais tempo, temos o serra da Estrela Velho. O queijo torna-se então quebradiço e o sabor levemente acidulado vai dando origem a sabores fortes, levemente picantes e salgados. As cores amaralo-torrada ou de tons castanho-alaranjada decorrem da mistura de azeite e colorau que podem ser utilizados no revestimento da crosta. O tempo mínimo de maturação é de 120 dias, mas os mais apreciados e refinados têm sempre à volta de ano e meio.
A par das adulterações, o futuro ameaça também a produção. É cada vez menor o número de queijarias certificadas, consequência da falta de promoção e valorização do genuíno serra da Estrela, mas também muito por força da teia fiscal e exigências burocráticas que são colocadas aos produtores, normalmente idosos e sem qualquer formação. “A legislação trata a todos por igual e ninguém parece dar-se conta que os pastores e queijeiras são já uma espécie em vias de extinção que é necessário proteger”, lamenta José Matias.
Das 44 queijarias existentes há pouco mais de uma década, são hoje apenas 15 as que produzem queijo certificado. Uma média de dez queijos por dia cada uma delas, durante sete meses. “Nem uma fatia por ano dá para cada português”, avisa o técnico.
(José Augusto Moreira)