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Comer Amarante é comer lérias, foguetes ou brisas

Por Luísa Pinto

Cabem nos dedos de uma mão e deixam qualquer um de barriga cheia. Amarante recebe este fim-de-semana a X Feira do Doce Conventual tendo as suas lérias e foguetes, papos de anjo, brisas e São Gonçalos como mestres de cerimónia. Pretexto para conhecer quem se dedica a perpetuar os segredos que fugiram do convento.

A história é conhecida — e parecida com todas aquelas que falam de freiras a ganhar a vida e a vender para as casas fidalgas doces ricos (com muitos ovos e ainda mais açúcar) cujas receitas teimavam em manter secretas. No Convento de Santa Clara de Amarante, fundado no século XIII, a história não podia ser diferente. As clarissas foram adoçando a boca à fidalguia até que as ordens religiosas foram extintas, acabou-se o segredo e as receitas chegaram à população. No caso de Amarante, a receita até chegou 20 anos antes de a última freira se ir embora, em 1845, e até se sabe o nome da senhora que teve a sorte de acompanhar a vida da última freira e a quem se atribuiu a transmissão das receitas: Maria do Sacramento Oliveira.

Contam-se pelos dedos, até a mão ficar cheia, a variedade de doces que se têm vindo a perpetuar, de geração em geração, entre as famílias doceiras que continuam a levar longe o nome dos doces conventuais de Amarante. E se há alguma novidade é que, entre as preciosidades que saíram das clarissas que viviam em clausura junto ao Tâmega, para além dos ovos e do açúcar, também se encontra a amêndoa nos ingredientes.

Os mais tradicionais são os papos de anjo, feitos com uma massa de ovo e açúcar que é envolta em papel de hóstia e cortada num formato de rissol. As brisas do Tâmega fazem-se com a mesma massa, mas são vertidas numa baunilha com o formato de um pequeno barquinho e ainda levam por cima uma calda de açúcar. A amêndoa junta-se aos ovos e ao açúcar para fazer os foguetes que vão ao forno enrolados numa folha de hóstia e também nos doces de São Gonçalo, que se apresentam com uma textura tipo pudim conseguida na cozedura no forno em banho maria. Por fim, o quinto e mais original de todos os doces, as lérias, que não levam ovos mas apenas amêndoa e açúcar (e um pouco de farinha para as unir) e que vão ao forno antes de serem cobertas com uma calda de açúcar.

As receitas passaram de geração em geração, de família em família, e fizeram-se em Amarante casas tradicionais que correram mundo, sobretudo à boleia dos emigrantes. Só quem nunca ouviu falar de doces conventuais de Amarante é que pode dizer que nunca ouviu falar de Alcino dos Reis e da sua Casa das Lérias. Ou da da Pastelaria LaiLai, outra casa histórica na reputação da cidade e da sua doçaria conventual. Estas duas estão fechadas. Outras reabriram com novas gerências. A que vai resistindo no tempo é a Doçaria Mário, que comemora dentro de duas semanas os seus 60 anos de actividade ininterrupta.

Tal actividade faz de Mário Silva, 81 anos, doceiro desde os 13, o decano. Ele é, porventura, o mais antigo a continuar na arte, mesmo depois de ter “passado às gémeas” a freima da cozinha da sua Doçaria. Hoje diz que anda por lá mais a “fazer sala”, mas confessa que ainda se permite dar o gosto à mão — até porque é tudo feito manualmente, e com tempo. E dar gosto também à boca, claro. “Que eu não provo só. Eu também como”, acrescenta.

Mário é um homem de memórias límpidas. Ainda se lembra, por exemplo, da noite em que conseguiu aprender a fazer ovos em fio. “Eram cinco da manhã. De tanto experimentar, houve uma altura em que acertei. Nunca mais falhei”, relata. Aprendeu com os melhores, diz: “A dona Júlia, a mulher de Alcino dos Reis.”

A famosa Casa das Lérias fica a poucos metros da Doçaria Mário, ambas numa das mais nobres artérias da cidade, a Cândido dos Reis, ambas com terraços a permitir vistas panorâmicas a abraçar o rio Tâmega. A de Mário está aberta e a vender doce conventual todos os dias. A Casa das Lérias não. Está fechada, assim como está a Confeitaria LaiLai, outro nome importante da tradição amarantina. É o “problema” dos negócios familiares. Nem sempre os herdeiros estão em sintonia e as duas casas históricas da doçaria amarantina parecem votadas ao abandono.

Mário ainda tentou comprar a Casa das Lérias, mas não conseguiu. Comprou a casa ao lado, fez o seu próprio nome e tem a sucessão preparada. Teve a sorte de, entre os cinco filhos, ter encontrado nas filhas Madalena e Antónia, gémeas, quem tivesse vontade e empenho. “Quando a mãe morreu, elas desistiram de estudar e agarraram-se a isto”, conta Mário, alegando que as gémeas sempre se deram bem com as gemas. Tinham 19 anos. Hoje têm 51. “É uma vida doce. Mas às vezes amarga”, diz-nos Antónia, referindo-se à prisão dos dias, ininterruptos. Ou seria Madalena? São gémeas verdadeiras. Das que sorriem quando um cliente da casa lhes vem pedir uma caixa de “Mários”, em vez do lhes chamar pelo nome verdadeiro — as lérias.

Mas não há perigo de lhes mudar o nome. A tradição ainda é o que a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) continuar a deixar que seja — “Já tivemos uma centena de galinhas para nos dar os ovos. Agora não podemos comprar ovos a galinhas do campo. Só ovos certificados”, diz Mário. Por isso, e só se a ASAE obrigar, é que deixarão de fabricar as lérias, as brisas e os foguetes, os papos de anjo e os São Gonçalo como manda a tradição, com ovos mesmo. “Já cá têm vindo bater à porta, mas gema líquida e ovo em pó não entram”, assegura Mário.

Ponte, no centro de tudo

Se a Doçaria Mário vai fazer 60 anos, ao fundo da rua, e no ponto mais central da cidade, fica a Confeitaria da Ponte, que já assinalou 130 anos. Ricardo Ribeiro comprou-a há pouco mais de cinco ao padrinho de baptismo, José Pinheiro Ribeiro (conhecido como Zé da Ponte). O padrinho aprendeu a arte na Casa das Lérias, assim como José Mota, um dos quatro doceiros que Ricardo Ribeiro está a gerir na sua equipa. Mota começou há 43 anos, quando tinha apenas dez, a aprender com Alcino dos Reis. Já saiu três vezes da Confeitaria da Ponte, mas acaba sempre por voltar. Gosta do que faz.

Mota estende a folha de hóstia, recheia-a com o doce de ovos, humedece as bordas com um pano, fecha-as e recorta-as; e, num abrir e fechar de olhos, o tabuleiro já tem mais um papo de anjo. “São os mais procurados”; assegura Ricardo Ribeiro. Quando estiver pronto pode ir preencher uma caixa de doce conventual e ser vendido ao quilo. Ou então ser degustado à unidade, que os turistas começam a encomendar sucessivamente, pedindo para acompanhar com um café, mas também com um copo de branco ou de tinto.

Há umas décadas o gosto era o mesmo, mas os subterfúgios eram diferentes: as senhoras pediam bules de chá gelado, para que ninguém percebesse que estavam a acompanhar os doces conventuais com um copo de vinho branco geladinho. “Estes doces acompanham tudo. Vão bem com café, com tinto, com verde branco”, assegura Ricardo, garantindo que vai reflectir essa realidade nos menus turísticos que está a preparar. 

Uns metros abaixo, na mesma rua, a confeitaria Tinoca também está a dar os primeiros passos com uma nova gerência. Catarina Pinto, formada em arquitectura, comprou o trespasse há cerca de ano e meio. Renovou o espaço e acrescentou ao conceito do salão de chá novas tendências, como o cake design e os cupcakes, que surgem na montra ao lado dos doces conventuais. Também o doce de São Gonçalo — não confundir com o conventual, em formato de queijadinha, aqui estamos a falar do “doce fálico”, “a ferramenta” de São Gonçalo que foi banida durante a ditadura, por ser indecorosa — sofreu às mãos de Catarina melhorias na massa, para ficar mais tenro. Catarina admite que arriscou e que ainda é cedo para fazer balanços. “Mas tudo é melhor do que o desemprego” a que estava confinada na arquitectura.

Elisabete Rocha, dona da confeitaria Brisa Doce, é o exemplo de uma doceira de uma grande superfície que se transformou numa empresária de sucesso. Andou mais de um ano a negociar o trespasse na confeitaria onde paravam camionetas à porta, a caminho das excursões para o Douro e para as amendoeiras. Hoje, oito anos depois, os amarantinos enchem-lhe a casa, no dia-a-dia, por causa das torradas ( “demorei a acertar na massa para o pão de forma”), mas os doces conventuais também têm grande saída das montras.

Mais afastada dos turistas e das excursões, a pastelaria/padaria O Moinho trabalha sobretudo para os locais — que são “bem exigentes”, como confirma Ilídia Barbosa, que fundou a casa há 19 anos. Professora do ensino básico, agora reformada, Ilídia deve à mãe os ensinamentos e o gosto de pôr as mãos na massa, e à dona LaiLai, a própria, alguns truques. E nós devemos a toda esta gente a qualidade dos conventuais que nos continuam a adoçar a boca. E a alma.

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