Fugas - restaurantes e bares

  • Ana Cerqueira e Isabel Saúde
    Ana Cerqueira e Isabel Saúde DR
  • O licor Orangea
    O licor Orangea DR
  • Uma sobremesa com o licor
    Uma sobremesa com o licor DR
  • Um prato de atum que o chef Pedro Limão preparou no Ozadi
    Um prato de atum que o chef Pedro Limão preparou no Ozadi DR
  • O chef Pedro Limão
    O chef Pedro Limão DR

Pedro Limão na terra do licor de laranja

Por Alexandra Prado Coelho

Um chef do Porto viajou até Tavira para fazer um jantar em torno dos produtos algarvios. Houve lingueirão, amêndoa, atum. E, a acompanhar, o Orangea, licor de laranjas locais que quer fazer pelo Algarve o que o limoncello fez pelo Sul de Itália.

Esta é uma história sobre o Algarve, mas começa longe daqui, em Amalfi, durante umas férias em que Ana Cerqueira se cruzou com o famoso licor italiano limoncello “porta sim, porta sim”. Encontrou um artigo sobre o assunto e percebeu a real dimensão do fenómeno: o limoncello “é exportado para o mundo inteiro e tornou-se muito importante para a economia do Sul de Itália”.

Quanto mais aprendia sobre a história do limoncello mais Ana Cerqueira pensava nas laranjas do Algarve. “O limão da costa amalfitana fez essa ligação com o território de origem e nunca se perdeu. Toda a gente reconhece o limão como uma coisa de Sorrento e da costa de Amalfi.”

Já as laranjas algarvias, apesar da sua qualidade, “são totalmente desperdiçadas, os produtores não ganham dinheiro nenhum com elas, exportam o que podem e o resto cai no chão”. Calcula-se que o desperdício seja de 70%, diz. “A laranja aqui é completamente subestimada.” Nos anos 1960 os citrinos algarvios estavam em alta, exportava-se muito e toda a gente queria ter um laranjal. “Depois vieram os campos de golfe e arrasaram com os citrinos. Estes precisam de água, os campos de golfe também, e o golfe é mais interessante para o turismo”, lamenta.

A ideia de fazer um licor de laranja que um dia pudesse transformar-se também numa imagem de marca do Algarve — o Orangea — nasceu destas preocupações. Mas era preciso saber como fazer. Para isso, Ana pediu a ajuda de uma amiga botânica, Isabel Bensaúde, e as duas lançaram-se a fazer experiências.

O processo parece relativamente simples — colocam-se as cascas da laranja numa infusão com álcool que ajuda a libertar os óleos e depois junta-se água e açúcar até se obter uma bebida com 30% de álcool — mas chegar a ele não é fácil. “Estivemos um ano a fazer experiências e, claro, nem todas correram bem”, conta. “É difícil chegar a uma fórmula perfeita do equilíbrio do grau alcoólico, a acidez, os óleos.”

Teoricamente, o processo é igual ao do limoncello. Na prática as coisas são diferentes. “O limão é mais alcalino e reage de uma maneira diferente. Por seu lado, a laranja é mais ácida. Por isso a fórmula nunca poderia ser igual.” O tempo que as cascas (sem qualquer pele branca) passam no álcool deve ser de mais ou menos dez dias. Além disso, a laranja do Algarve, muito rica em óleos, tem características particulares que é preciso ter em conta e que, entre outras coisas, fazem com que muito rapidamente o líquido da infusão se torne laranja.

Alguns grandes frascos de vidro com a infusão de um tom de laranja vivo estão em cima de uma mesa à entrada do restaurante do hotel Ozadi, junto a Tavira, que pertence à família de Ana e que é uma montra privilegiada para mostrar o que se pode fazer com o Orangea.

Marcámos encontro na varanda do restaurante, ao final da tarde, para conhecer alguns dos cocktails criados para a carta: o Sweet Summer (rum, xarope de baunilha, Orangea, sumo de limão e um pau de canela), o Mediterranean Feel (xarope de amêndoa, brandy, Orangea, sumo de limão e uma gota de Angostura bitter) ou o South Cocktail (gin, Orangea e sumo de limão). Pode-se também, por exemplo, usar o licor para fazer crepes Suzette. Ou tomá-lo simples e sempre gelado, aconselham as criadoras.

Se produtores, responsáveis locais e agentes turísticos se unissem, como aconteceu na região de Amalfi, seria possível criar uma estratégia comum para promover a laranja do Algarve, acredita Ana. Uma estratégia que passaria pelo Orangea, mas não só. “A nossa laranja não é valorizada em Portugal. Os próprios hoteleiros preferem comprar em centrais de compras a laranja que vem de Espanha. É muito mais barata do que comprá-la ao produtor português, que vai de porta a porta e não entra nas centrais de compras.”

Ana interroga-se por que é que, numa região famosa pelas laranjas, “nunca há um jarro de sumo de laranja natural nos restaurantes?”. Já perguntou em alguns porquê. “A resposta é sempre a mesma: porque dá trabalho. Preferem a lata, que não dá trabalho nenhum.” E defende que a promoção da laranja devia “partir de quem regulamenta o turismo”. Tal como o Sul de Itália tem o limão, “temos aqui um produto que é custo zero, que promove uma região, uma identidade, que promove qualidade”. Se existe já no Algarve uma rota das amendoeiras, “porque é que não se faz uma da laranja?”. A estratégia é sempre a mesma: um produto está a morrer, como estava a acontecer com as amêndoas ou a alfarroba, e alguém pega nele e tenta fazê-lo renascer, criando novos produtos, organizando rotas turísticas.

Até agora, a produção do Orangea tem sido feita de forma artesanal. Mas Ana e Isabel já conseguiram uma licença semi-industrial, e das 6000 garrafas (que actualmente se vendem em mercearias gourmet em Lisboa, Porto, Algarve e Funchal) vão passar para as 30 mil. Por isso, Ana desafia os responsáveis pelo turismo do Algarve: “Porque não tornar o Orangea a bebida de boas-vindas da região?”

Os cocktails servidos ao final de uma tarde de Maio na esplanada do Ozadi serviram precisamente de boas-vindas para um jantar preparado por um chef convidado pelo hotel: Pedro Limão, vindo do Porto para cozinhar com produtos algarvios.

Nesse dia (um sábado) de manhã cruzámo-nos com Pedro Limão no mercado de Tavira. Tinha andado à procura de pimentão fumado e estava muito satisfeito por o ter encontrado. “Quando me propõem uma situação nova penso no menu antes de o realizar e depois tenho vários problemas porque nunca tinha feito aquilo”, confessa, rindo.

Mas gosta muito da ideia de experimentar coisas novas. No caso dos produtos algarvios, o único que nunca tinha trabalhado eram os lingueirões e decidiu fazê-los com dois sabores da região: uma espuma de arjamolho (uma sopa semelhante ao gaspacho feita com pão, tomate, pimento, pepino, azeite, vinagre e sal) e ar de orégãos.

A seguir serviu um atum de cebolada em tártaro com maionese de wasabi e sésamo, pimentão fumado e coentros; depois veio um bacalhau em crosta de amêndoa e aromáticas, risotto de tinta de choco, creme de pimento vermelho na brasa e salada de daikon. Um granizado de amêndoa amarga e lima serviu como limpa palato antes do prato de carne: um magnífico carré de borrego de leite fumado com favas à algarvia, quinoa e ervilhas de quebrar. A sobremesa foi um bolo de montanha com nozes, cítricos e mel.

O convite do Ozadi foi uma oportunidade para Pedro Limão cozinhar com produtos diferentes, mas também para o público algarvio conhecer este chef que tem uma concepção muito própria do que deve ser um restaurante. Ouçamos, então, a história. “A primeira aventura mais a sério na cozinha foi com um amigo com o qual abri um espaço, que na verdade funcionava à porta fechada, e que se chamava Na Cantina.” A experiência levou-o a querer mais e por isso deixou o trabalho como urbanista e foi estudar cozinha para Barcelona.

Mas trabalhar num restaurante, “estar ali a dar energia para uma máquina”, não era bem aquilo com que se identificava. “Daí surgiu esta necessidade de criar projectos alternativos, fugindo à restauração clássica.” Teve, na sua própria casa, o Clandestino, um espaço mínimo onde servia o que entendia a quem sabia que ele existia. O conceito alargou-se um pouco mas o espírito manteve-se quando abriu o Pedro Limão (não é o seu verdadeiro nome, mas sim o nome que escolheu enquanto cozinheiro).

Gosta de estar com as pessoas para as quais cozinha e sabe que para isso precisa de se organizar, preparar tudo com bastante antecedência e ter as coisas praticamente prontas quando as pessoas chegam para comer. Hoje, no Porto, pode-se conhecer a cozinha de Pedro Limão no Andor Violeta (na Praça Carlos Alberto) e na Oficina de Cozinha (na Rua do Almada), “uma espécie de clube” com menus de degustação e apenas 20 lugares, com vista para Pedro a preparar os pratos.

E o que marca essa cozinha de um cozinheiro muito pouco convencional? É Cátia, a mulher de Pedro e companheira de projectos, que resume: “A combinação do doce e do salgado, a estética do prato, que é uma coisa muito particular no Pedro, as cores que usa, os molhos-base, que são o pimento vermelho assado, a emulsão de vinho tinto e emulsão verde que pode ser de coentros ou salsa; e também a maneira como cozinha (pouco) o peixe, o bacalhau, a carne de porco.”

É tempo de nos despedirmos dos sabores, temporariamente mais algarvios, de Pedro, porque o Ozadi propôs-nos um programa para a manhã seguinte, de domingo. Quem nos espera, pelas 10h, é Jerome Séguy, que vai ser o nosso guia num passeio pela zona das salinas. O espaço, mergulhado numa paz só interrompida por uns pernilongos que perseguem uma gaivota (ficamos com a impressão que a história acaba mal para a gaivota), fica, surpreendentemente, logo ali em frente, do outro lado da estrada.

Jerome conta que há 16 anos que vive em Portugal e tem-se dedicado a fazer passeios (alguns com a duração de uma semana) com turistas estrangeiros, sobretudo franceses. Agora vai passar a fazê-los também com os hóspedes do Ozadi. Traz binóculos e aponta-nos os diferentes pássaros, os alfaiates com os seus bicos curvos e os flamingos rosados apoiados nas delicadíssimas patas. E mostra-nos como o rio Almargem se vai enchendo e a água passa de reservatório em reservatório, num processo de filtragem que termina, mais à frente, numa elegante pilha de sal que se ergue contra o céu azul do Algarve. 

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