Esta é uma história sobre o Algarve, mas começa longe daqui, em Amalfi, durante umas férias em que Ana Cerqueira se cruzou com o famoso licor italiano limoncello “porta sim, porta sim”. Encontrou um artigo sobre o assunto e percebeu a real dimensão do fenómeno: o limoncello “é exportado para o mundo inteiro e tornou-se muito importante para a economia do Sul de Itália”.
Quanto mais aprendia sobre a história do limoncello mais Ana Cerqueira pensava nas laranjas do Algarve. “O limão da costa amalfitana fez essa ligação com o território de origem e nunca se perdeu. Toda a gente reconhece o limão como uma coisa de Sorrento e da costa de Amalfi.”
Já as laranjas algarvias, apesar da sua qualidade, “são totalmente desperdiçadas, os produtores não ganham dinheiro nenhum com elas, exportam o que podem e o resto cai no chão”. Calcula-se que o desperdício seja de 70%, diz. “A laranja aqui é completamente subestimada.” Nos anos 1960 os citrinos algarvios estavam em alta, exportava-se muito e toda a gente queria ter um laranjal. “Depois vieram os campos de golfe e arrasaram com os citrinos. Estes precisam de água, os campos de golfe também, e o golfe é mais interessante para o turismo”, lamenta.
A ideia de fazer um licor de laranja que um dia pudesse transformar-se também numa imagem de marca do Algarve — o Orangea — nasceu destas preocupações. Mas era preciso saber como fazer. Para isso, Ana pediu a ajuda de uma amiga botânica, Isabel Bensaúde, e as duas lançaram-se a fazer experiências.
O processo parece relativamente simples — colocam-se as cascas da laranja numa infusão com álcool que ajuda a libertar os óleos e depois junta-se água e açúcar até se obter uma bebida com 30% de álcool — mas chegar a ele não é fácil. “Estivemos um ano a fazer experiências e, claro, nem todas correram bem”, conta. “É difícil chegar a uma fórmula perfeita do equilíbrio do grau alcoólico, a acidez, os óleos.”
Teoricamente, o processo é igual ao do limoncello. Na prática as coisas são diferentes. “O limão é mais alcalino e reage de uma maneira diferente. Por seu lado, a laranja é mais ácida. Por isso a fórmula nunca poderia ser igual.” O tempo que as cascas (sem qualquer pele branca) passam no álcool deve ser de mais ou menos dez dias. Além disso, a laranja do Algarve, muito rica em óleos, tem características particulares que é preciso ter em conta e que, entre outras coisas, fazem com que muito rapidamente o líquido da infusão se torne laranja.
Alguns grandes frascos de vidro com a infusão de um tom de laranja vivo estão em cima de uma mesa à entrada do restaurante do hotel Ozadi, junto a Tavira, que pertence à família de Ana e que é uma montra privilegiada para mostrar o que se pode fazer com o Orangea.
Marcámos encontro na varanda do restaurante, ao final da tarde, para conhecer alguns dos cocktails criados para a carta: o Sweet Summer (rum, xarope de baunilha, Orangea, sumo de limão e um pau de canela), o Mediterranean Feel (xarope de amêndoa, brandy, Orangea, sumo de limão e uma gota de Angostura bitter) ou o South Cocktail (gin, Orangea e sumo de limão). Pode-se também, por exemplo, usar o licor para fazer crepes Suzette. Ou tomá-lo simples e sempre gelado, aconselham as criadoras.
Se produtores, responsáveis locais e agentes turísticos se unissem, como aconteceu na região de Amalfi, seria possível criar uma estratégia comum para promover a laranja do Algarve, acredita Ana. Uma estratégia que passaria pelo Orangea, mas não só. “A nossa laranja não é valorizada em Portugal. Os próprios hoteleiros preferem comprar em centrais de compras a laranja que vem de Espanha. É muito mais barata do que comprá-la ao produtor português, que vai de porta a porta e não entra nas centrais de compras.”
Ana interroga-se por que é que, numa região famosa pelas laranjas, “nunca há um jarro de sumo de laranja natural nos restaurantes?”. Já perguntou em alguns porquê. “A resposta é sempre a mesma: porque dá trabalho. Preferem a lata, que não dá trabalho nenhum.” E defende que a promoção da laranja devia “partir de quem regulamenta o turismo”. Tal como o Sul de Itália tem o limão, “temos aqui um produto que é custo zero, que promove uma região, uma identidade, que promove qualidade”. Se existe já no Algarve uma rota das amendoeiras, “porque é que não se faz uma da laranja?”. A estratégia é sempre a mesma: um produto está a morrer, como estava a acontecer com as amêndoas ou a alfarroba, e alguém pega nele e tenta fazê-lo renascer, criando novos produtos, organizando rotas turísticas.
Até agora, a produção do Orangea tem sido feita de forma artesanal. Mas Ana e Isabel já conseguiram uma licença semi-industrial, e das 6000 garrafas (que actualmente se vendem em mercearias gourmet em Lisboa, Porto, Algarve e Funchal) vão passar para as 30 mil. Por isso, Ana desafia os responsáveis pelo turismo do Algarve: “Porque não tornar o Orangea a bebida de boas-vindas da região?”
Os cocktails servidos ao final de uma tarde de Maio na esplanada do Ozadi serviram precisamente de boas-vindas para um jantar preparado por um chef convidado pelo hotel: Pedro Limão, vindo do Porto para cozinhar com produtos algarvios.
Nesse dia (um sábado) de manhã cruzámo-nos com Pedro Limão no mercado de Tavira. Tinha andado à procura de pimentão fumado e estava muito satisfeito por o ter encontrado. “Quando me propõem uma situação nova penso no menu antes de o realizar e depois tenho vários problemas porque nunca tinha feito aquilo”, confessa, rindo.
Mas gosta muito da ideia de experimentar coisas novas. No caso dos produtos algarvios, o único que nunca tinha trabalhado eram os lingueirões e decidiu fazê-los com dois sabores da região: uma espuma de arjamolho (uma sopa semelhante ao gaspacho feita com pão, tomate, pimento, pepino, azeite, vinagre e sal) e ar de orégãos.
A seguir serviu um atum de cebolada em tártaro com maionese de wasabi e sésamo, pimentão fumado e coentros; depois veio um bacalhau em crosta de amêndoa e aromáticas, risotto de tinta de choco, creme de pimento vermelho na brasa e salada de daikon. Um granizado de amêndoa amarga e lima serviu como limpa palato antes do prato de carne: um magnífico carré de borrego de leite fumado com favas à algarvia, quinoa e ervilhas de quebrar. A sobremesa foi um bolo de montanha com nozes, cítricos e mel.
O convite do Ozadi foi uma oportunidade para Pedro Limão cozinhar com produtos diferentes, mas também para o público algarvio conhecer este chef que tem uma concepção muito própria do que deve ser um restaurante. Ouçamos, então, a história. “A primeira aventura mais a sério na cozinha foi com um amigo com o qual abri um espaço, que na verdade funcionava à porta fechada, e que se chamava Na Cantina.” A experiência levou-o a querer mais e por isso deixou o trabalho como urbanista e foi estudar cozinha para Barcelona.
Mas trabalhar num restaurante, “estar ali a dar energia para uma máquina”, não era bem aquilo com que se identificava. “Daí surgiu esta necessidade de criar projectos alternativos, fugindo à restauração clássica.” Teve, na sua própria casa, o Clandestino, um espaço mínimo onde servia o que entendia a quem sabia que ele existia. O conceito alargou-se um pouco mas o espírito manteve-se quando abriu o Pedro Limão (não é o seu verdadeiro nome, mas sim o nome que escolheu enquanto cozinheiro).
Gosta de estar com as pessoas para as quais cozinha e sabe que para isso precisa de se organizar, preparar tudo com bastante antecedência e ter as coisas praticamente prontas quando as pessoas chegam para comer. Hoje, no Porto, pode-se conhecer a cozinha de Pedro Limão no Andor Violeta (na Praça Carlos Alberto) e na Oficina de Cozinha (na Rua do Almada), “uma espécie de clube” com menus de degustação e apenas 20 lugares, com vista para Pedro a preparar os pratos.
E o que marca essa cozinha de um cozinheiro muito pouco convencional? É Cátia, a mulher de Pedro e companheira de projectos, que resume: “A combinação do doce e do salgado, a estética do prato, que é uma coisa muito particular no Pedro, as cores que usa, os molhos-base, que são o pimento vermelho assado, a emulsão de vinho tinto e emulsão verde que pode ser de coentros ou salsa; e também a maneira como cozinha (pouco) o peixe, o bacalhau, a carne de porco.”
É tempo de nos despedirmos dos sabores, temporariamente mais algarvios, de Pedro, porque o Ozadi propôs-nos um programa para a manhã seguinte, de domingo. Quem nos espera, pelas 10h, é Jerome Séguy, que vai ser o nosso guia num passeio pela zona das salinas. O espaço, mergulhado numa paz só interrompida por uns pernilongos que perseguem uma gaivota (ficamos com a impressão que a história acaba mal para a gaivota), fica, surpreendentemente, logo ali em frente, do outro lado da estrada.
Jerome conta que há 16 anos que vive em Portugal e tem-se dedicado a fazer passeios (alguns com a duração de uma semana) com turistas estrangeiros, sobretudo franceses. Agora vai passar a fazê-los também com os hóspedes do Ozadi. Traz binóculos e aponta-nos os diferentes pássaros, os alfaiates com os seus bicos curvos e os flamingos rosados apoiados nas delicadíssimas patas. E mostra-nos como o rio Almargem se vai enchendo e a água passa de reservatório em reservatório, num processo de filtragem que termina, mais à frente, numa elegante pilha de sal que se ergue contra o céu azul do Algarve.