Fugas - restaurantes e bares

  • J.MINONDO Y S.SANTOS
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  • MARIANA MARQUES

Um chef português no centro nevrálgico da gastronomia mundial

Por Miguel Pires

Depois de anos virado para a Europa, aquele que é um dos principais congressos gastronómicos do mundo virou-se a Oriente, recebendo Singapura e Hong Kong. Porém, voltaram a brilhar os chefs da casa. O português José Avillez mostrou que, embora vizinha, a cozinha portuguesa tem uma identidade própria.

Passavam poucos minutos das 18h quando José Avillez, acompanhado dos seus colaboradores David Jesus e Inês Pina, entrou no auditório do centro de congressos do Kursaal, em San Sebastián (País Basco espanhol), para a sua apresentação no Gastronomika 2015, perante cerca de um milhar de espectadores. Num castelhano quase perfeito, Avillez agradeceu a oportunidade e arrancou para uma exibição segura e convincente. A começar, fez o enquadramento, recorrendo a um pequeno vídeo, em que partia do geral (Portugal) para o particular (a cozinha do restaurante Belcanto).

Depois, falou dos seus princípios de base. “Combinar e comunicar são os dois conceitos fundamentais da minha cozinha.” No primeiro caso, explicou que quando se juntam diferentes elementos num prato se transita “de um ingrediente que tem um valor para uma combinação que o supera”. Quanto ao segundo conceito, invocou a forma diferente como um cliente reage, consoante a memória que tem ou não de um determinado prato. Como exemplo, recorreu a uma das receitas, a “sardinha assada”, que é elaborada de forma diferente no Belcanto, ainda que utilizando os mesmos elementos de base. O peixe é curado com sal, braseado com um maçarico, pincelado com azeite e vinagre e servido com gel de pimento assado e creme de fermento de pão. “Perante este prato pode haver duas reacções diferentes, consoante o receptor. Como a servimos quase crua, há portugueses para quem essa textura é mais difícil, porque pensam na típica sardinha assada. Já um estrangeiro parte do pensamento oposto.”

Avillez e a sua equipa prosseguiram a bom ritmo, com outras quatro propostas cozinhadas ao vivo no local: carabineiro grelhado com cinzas de alecrim, xerém com sames de bacalhau, “cozido à portuguesa” e “como um arroz de cabidela”. Em relação ao cozido, o chef português esclareceu que era difícil fazer um prato “de memória” num restaurante contemporâneo. “Como fazer um prato que leva muita coisa e que é muito rico, num menu de 18 serviços?”, era o desafio, o seu maior até ao momento. Segundo confessou, foram necessários quinze testes até chegar a uma proposta “que se comesse em duas ou três colheradas e que apelasse à memória das pessoas”. A acabar, de forma elegante, e não fosse alguém ter estado menos atento, o chef do Belcanto deixou a mensagem: “Estamos ao lado de Espanha, mas temos uma identidade própria.”

Caminhos diversos

O Gastronomika assume-se como um congresso que privilegia a cozinha contemporânea e que marca tendências. Porém, à luz da imagem do logótipo deste ano, em que uma série de ingredientes saltam de um cesto de bambu em várias direcções, também por estes dias, mais do que uma tendência dominante, o que se viu no auditório do Kursaal foram caminhos diversos. É óbvio que tudo isso tem muito a ver com o facto de os territórios asiáticos convidados se distinguirem pelo cruzamento de culturas, estilos e conceitos, quer em termos de alta cozinha, quer ao nível do chamado street food — mesmo quando apenas como influência para uma cozinha mais refinada.

Por exemplo, o australiano Dave Pynt, do Burnt Ends (Singapura), deu uma aula de como se pode cozinhar quase tudo no fogo, quer seja em forno a lenha, quer na parrilla (grelha). Já o exuberante Justin Quek, do Sky On 57 (Singapura), exibiu a sua cozinha de luxo de influência francesa, enquanto Topham Nurdin, do NUR (Hong Kong), surpreendeu a assistência com a improvável ligação culinária nórdico-chinesa, que lhe tem valido rasgados elogios. Por sua vez, Andre Chiang, do Andre — considerado o melhor restaurante de Singapura e número 46 na lista dos World 50 Best Restaurants — fez uma apresentação muito interessante sobre sumos fermentados, como uma alternativa não alcoólica, cuja complexidade, semelhante à de um vinho, lhe permite efectuar combinações mais adequadas para os seus pratos.

Também entre a armada espanhola que se apresentou em San Sebastián, a diversidade foi o mote. Carme Ruscalleda (San Pau, em San Pol de Mar) apresentou os seus pratos monocromáticos, numa demonstração de técnicas de alta cozinha contemporânea, tal como aconteceu com Elena Arzak, que subiu ao palco pela primeira vez sem o pai Juan Mari. Num registo semelhante, estiveram ainda os pupilos de Ferran Adrià, Oriol Castro e Eduard Xatruch, que fizeram a sua primeira apresentação no Kursaal desde que abriram o Desfrutar, em Barcelona. As referências ao elBulli foram evidentes, tal como seria de esperar com os pratos do Heart, o novo projecto que Albert e Ferran Adrià abriram este Verão, em Ibiza, em conjunto com o Cirque du Soleil.

Contudo, neste último caso, Albert desviou o foco e avisou que ia falar “de coisas boas, coisas más e coisas horríveis”. O mais novo dos Adrià centrou a sua apresentação no projecto como um todo, e surpreendeu a audiência ao falar de fracasso, de dificuldades de implementação e, inclusive, da sua insatisfação por não terem feito nada de novo, em termos de comida. “Desculpem estar a falar disto, mas os congressos são também para falar dos erros”, justificou, arrancando um aplauso na assistência. Contudo, a sinceridade  do chef catalão, misturada com a mestria que lhe é conhecida, foi em crescendo e as tais “coisas boas” acabaram por ficar espelhadas nas imagens finais, onde, apesar do prejuízo, aparentemente tudo acabou em bem.

Com uma cozinha de grande personalidade e complexidade técnica, Josean Alija (Nerua, Bilbau) e o seu vizinho Eneko Atxa (Azurmendi, Larrabetzu) preferiram destacar nas suas apresentações o trabalho com produtores locais em detrimento da demonstração técnica. Já Francis Paniego (El Portal del Echaurren, Ezcaray) e Ángel León (Aponiente, Puerto de Santa Maria, finalmente em casa nova) defenderam os chamados produtos de segunda: entranhas, órgãos internos de animais e peixes de baixo valor comercial. Numa apresentação humorada, Paniego mostrou pratos belíssimos, como um tártaro com coração de cordeiro ou um risotto elaborado com sangue de porco coagulado. “O comensal muda a sua percepção depois de comer o prato”, esclareceu. Segundo ele, actualmente apenas 35% dos seus clientes pedem o menu de casquería, composto por este tipo de propostas. Todavia, muitos outros regressam depois de observarem os pratos nas outras mesas.

Roca’n roll

A actuação de Joan Roca é sempre muito aguardada, ainda para mais num ano em que o Celler de Can Roca voltou a ser o melhor restaurante do mundo, segundo a lista do W50Best. O mais conhecido dos irmãos Roca dividiu a sua exposição em duas partes: uma, sobre a recente digressão que fizeram pela Turquia e os pratos inspirados no receituário local; e outra parte com as novas criações do restaurante, incluindo uma invulgar demonstração de como extraem essência de lã de ovelha, que, pulverizada num cone de papel, acompanha uma sobremesa à base de leite do animal. O chef catalão falou ainda dos óleos e bebidas que começaram a fazer no restaurante utilizando uma série de ingredientes naturais disponíveis na região. Deu o exemplo do “figomel”, elaborado a partir de uma base de um figo local, água, mel, pólen de abelha e levedura, que, após três a quatro semanas de fermentação, resulta numa bebida alcoólica ligeiramente carbónica. Segundo o chef, estas bebidas permitem fazer harmonizações diferentes como os seus pratos.

Mas se a apresentação de Roca era muito esperada, a de Andoni Aduriz é sempre a que desperta maior entusiasmo, com muitos fãs a dizerem que só por ele o congresso já valeria a pena. No seu estilo “fora da caixa”, o chef do Mugaritz (Errenteria, San Sebastián) utilizou os seus 30 minutos para falar de rituais. “Em todos os rituais há símbolos, que são diferentes maneiras de mostrar ideias. Isso acontece numa matança de um porco, num piquenique ou numa cerimónia do chá.” Aduriz explicou que esse é o marco da fronteira em que o Mugaritz também se encontra. O chef basco falou igualmente do ritual de transição e, para combater a ideia de que os cozinheiros de vanguarda não têm uma base de cozinha bem assente, distribuiu pela assistência uma pequena goma de gelatina em forma de cabeça de vaca. Foi feita com um caldo clássico de carne,  porém, também era doce. Ou seja, demonstrava um ritual de passagem entre uma gelatina infantil e um caldo de um prato adulto. Tal como aconteceu com outros cozinheiros presentes no Gastronomika, Aduriz evocou o recém-falecido Juli Soler, responsável pelo elBulli, e o homem que descobriu Ferran Adrià: “Era o mestre dos rituais”, declarou.

De outros rituais viveu também o Gastronomika, com o seu intenso programa, área de feira e diversos acontecimentos em simultâneo. E se há muito que não se ouvia falar de Portugal por estes lados, realce-se a forma superior com que José Avillez aproveitou a oportunidade que lhe foi concedida. Vizinhos, vizinhos, identidades à parte.

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