Está sempre presente, é indissociável do prazer e exigência gastronómica mas raramente é notado. Não porque se menorize ou deprecie o pão à mesa, mas antes porque a sua presença é tão natural e indispensável que faz parte da natureza das coisas. Tal como o ar que respiramos, é como uma espécie de oxigénio da refeição, principalmente quando falamos de gastronomia regional. Pão e vinho sobre a mesa, que o resto é que pode variar.
À parte da sua essencialidade para os prazeres da mesa, o pão teve sempre também um papel fundamental na cultura e alimentação dos povos ocidentais. E até na economia, como ficou largamente ilustrado com a carcaça, uma invenção portuguesa do tempo de Salazar.
Pela sua riqueza em carboidratos, é uma importante fonte de energia para o organismo humano. Contém também fibras, vitaminas e minerais que são fundamentais ao equilíbrio alimentar. Daí que tivesse saído furada a antiga estratégia de alimentar os presos a pão e águas como forma de castigo. Em vez de morrerem, os presidiários permaneciam saúdaveis.
Base da alimentação durante longos tempos, principalmente dos mais desfavorecidos, a sua essencialidade até muitas vezes representada como símbolo de vida e factor de coesão social: sem trabalho não há pão, sem pão não há vida!
No filme O Pão, Manoel de Oliveira põe em paralelo a celebração de um casamento e a produção do pão para enfatizar a sua importância como pilares da organização social e da vida em colectividade. Por um lado, a união entre homem e mulher; por outro, a sementeira e colheita do trigo e a posterior produção industrial do pão, essenciais à subsistência e continuidade da vida.
O filme foi realizado em 1959, por encomenda da Federação dos Industriais de Moagem, e Oliveira confessaria mais tarde, em entrevista a João Bérnard da Costa, que procurou mostrar a ideia de que o pão é como a corrente de um rio que passa por vários lugares, por diferentes mãos e diferentes tipos de pessoas. “Servi-me do pão para enfrentar muitos aspectos da vida portuguesa. Procurei sobretudo mostrar o papel do homem em cada etapa do fabrico do pão e a comunicação que se instaura assim entre homens muito distantes no seu espaço através de um único elemento: o grão de trigo.”
E embora o trigo seja normalmente usado como símbolo do pão no nosso país — é, de facto, o mais utilizado no fabrico de pão —, têm também forte tradição os pães de milho, de centeio e os de trigo com cevada. A distinção é sobretudo regional e decorria historicamente dos cereais que eram predominantes em cada zona, em função da adaptação da sua cultura às condições naturais: o centeio nas zonas de montanha de Trás-os-Montes e serra da Estrela; o milho no Minho e grande parte do norte do Douro; o trigo no resto do país; e a mistura de cereais nas zonas de transição do Centro e Beiras.
Com a industrialização da produção do pão, o comércio e a importação de farinhas, os diferentes tipos de pão encontram-se hoje disseminados por todo o território, principalmente nos centros urbanos. Daí que Mouette Barbof, na sua obra essencial A Tradição do Pão em Portugal, editada pelo Clube do Coleccionador dos Correios, o tenha dividido em dois grandes tipos: o pão das cidades e os pães regionais.
O pão das cidades
O pão de trigo assentou arraiais nas cidades, onde as padarias se especializaram no comércio de pães pequenos. Um fenómeno que não é de agora — já em meados do século passado Orlando Ribeiro notava que o consumo de pão de trigo estava “cada vez mais associado às populações urbanas e à elevação do nível de vida nos centros rurais mais em contacto com elas”.
Entre o pão das cidades, Barbof destaca vários tipos: o “molete”, que se encontra sobretudo no Minho e no Baixo Douro; o “bijú”, que recebeu o nome de uma padaria do Porto e abunda a Norte; o “papo-seco”, uma celebridade de Lisboa de extremidades aguçadas que era embrulhado em papel de seda; a “bica”, que no Porto, Braga e Viana do Castelo era fabricado com massa mais rica; a “mimosa”, uma variedade da bica de Macedo de Cavaleiros; o “boné”, especialidade de Setúbal com a forma do dito; a “pada”, típica da região de Aveiro e famosa em Ul, Oliveira de Azeméis, e que é formado pela junção de dois ou mais moletes; o pão de “coroa”, do vale de Ílhavo, idêntico à pada mas com um acrescento na parte de cima; a “viana”, um pãozinho redondo com rebordo torcido cujo nome deriva da capital austríaca, donde é original; a “pinha”, com a tal massa mais rica (espanhola) e a parte superior cheia de bicos (em pinha); o pão de “Padornelo”, com quatro cabeças e oriundo da aldeia homónima, no concelho de Amarante; o pão “Pádua”, uma versão do papo-seco típica de Guimarães; o pão da “Mealhada”, com quatro bicos e que se faz na região da Bairrada; o “pão com chouriço”, oriundo de Almeirim; e a “carcaça”, que foi inventada no tempo de Salazar para poupar (ver texto ao lado).
Entre os pães regionais, que também é comum designarmos como o pão tradicional, encontram-se os que são ligados a uma região ou cidade específica e caracterizados por uma forma, cor, gosto, textura do miolo e aspecto da côdea muito particulares.
Nestes, Barbof identifica os mais representativos de cada região. O “pão de centeio”, um pão escuro e com miolo compacto que ainda hoje é comum nas terras frias de Trás-os-Montes; a “broa”, feita com farinha de milho branca e que os minhotos não dispensam para acompanhar sardinhas ou caldo verde; a “broa de Avintes”, cuja forma, textura humedecida e cor escura a diferenciam de todas as outras; o “pão de quartos”, de trigo, da Beira Interior, que se divide em quatro partes iguais; a “trigamilha”, que, como o nome indica, é feita à base de trigo e milho que se cultiva na Beira Litoral; o “pão de Mafra”, com farinha de trigo duro e que deverá continuar a ser cozido em fornos de alvenaria aquecidos a lenha; o “pão alentejano”, que se reconhece pelo agradável cheiro a trigo e é amassado com fermento azedo que lhe confere o gosto característico; o “pão de testa” algarvio, que é parecido ao vizinho alentejano e deverá ser cozido em fornos de lages de barro; o “pão de milho dos Açores”, cuja massa é “adocicada” com um pouco de farinha de trigo que o torna mais macio e atenua o sabor a milho; e o “pão de batata da Madeira”, cuja massa, de trigo, deve levar cerca de um quarto de batata-doce.
Como o papo-seco perdeu as maminhas
Foi na década de 50 do século passado que foi criada a carcaça, um pão que nasceu para contrariar o aumento do preço dos cereais e reduzir as importações. Numa altura em que Salazar não permitia que se mexesse no preço do pão e um quilo de pão chegou a ser mais barato que um quilo de farinha, a indústria teve que recorrer à criatividade para dar a volta ao texto e parar com os prejuízos. Coube então a Vítor Moreira, um engenheiro químico que já trabalhava para a Fábrica Portuguesa dos Fermentos Holandeses, protagonizar a versão panificadora do tradicional desenrasque lusitano.
O pão de Lisboa era então o papo-seco e, olhando para ele, o engenheiro pensou que prescindido das extremidades aguçadas, as maminhas como sempre foram designadas, seria possível poupar na mão-de-obra e reduzir substancialmente os custos de produção. Se o pensou, melhor o fez. Com a “carcaça”, assim designou o novo modelo, o padeiro poderia fazer o pão apenas com uma das mãos, enquanto as extremidades do papo-seco implicavam o empenho dos dois braços.
E o padeiro que fazia uma média de 40 papo-secos passou, assim, a produzir 70 carcaças no mesmo período de tempo. A par da poupança na mão-de-obra, Vítor Moreira aplicou também ao novo modelo uma fenda longitudinal, fazendo com que fosse maior a superfície de massa exposta ao calor. Conclusão: Aumentava a expansão da massa e, consequentemente, o volume da cada pão.