Fugas - restaurantes e bares

  • Os cozinheiros
    Os cozinheiros "às cegas" Mário Cerdeira/100% Foto
  • Jantar na Gorreana
    Jantar na Gorreana Mário Cerdeira/100% Foto
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    Jantar na Gorreana Mário Cerdeira/100% Foto
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    Jantar na Gorreana Mário Cerdeira/100% Foto
  • No Laboratório de Química da ESAQ
    No Laboratório de Química da ESAQ Mário Cerdeira/100% Foto
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    No Laboratório de Química da ESAQ Mário Cerdeira/100% Foto
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    No Laboratório de Química da ESAQ Mário Cerdeira/100% Foto

Jantar às cegas nos Açores

Por Fátima Moura e Pedro Cruz Gomes

Às Cegas, dizia o convite: «Um pequeno número de pessoas, um sorteio, uma mesa única e um jantar inesquecível». Quatro pares de cozinheiros, quatro locais desconhecidos, todos na ilha de S. Miguel, e quatro ementas diferentes.

A organização estava a cargo da Escola de Formação Turística e Hoteleira, de Ponta Delgada, estabelecimento de ensino que, desde 2002, já formou centenas de profissionais do sector e que tem dois restaurantes abertos ao público, sendo um deles, o Anfiteatro, de cozinha contemporânea.

Voltar ao arquipélago dos Açores desperta-nos a «busca de correspondências essenciais» com os trópicos, sobretudo com o Brasil. Vitorino Nemésio, autor destas palavras, encontrava no país irmão a «lusitaneidade transplantada». Palavras que para nós se tornam de torna viagem, já que, em São Miguel, achamos a «tropicalidade transplantada» espreitando na vegetação, nos frutos, nas festas, na toponímia e envolvendo-nos num abraço.

Espaço ideal para o comprovar, é o Mercado Municipal de Ponta Delgada, onde se alinham bancas e bancas de frutos e legumes, cuja geometria e nomenclatura são desconhecidas no continente, mas que apelam para a nossa memória tropical - araçá, coquinho, tomatilho, minhotes, caiotas - lado a lado com nomes mais conhecidos, mas igualmente tropicalíssimos - ananás, maracujá, bananas, anonas, goiabas, inhames, pimentas ... Na peixaria, impõem-se o colorido tropical do peixe-cão, contrastando com uma agradável textura firme de peixe atlântico, e toda uma colecção de espécies que nos soam a outras latitudes - peixe-porco, alfonsim, bodião, bocanegra, enxaréu, tudo acabado de saltar do oceano.

É com estes e outros filhos da terra e do mar que está em construção a cozinha açoriana contemporânea. Indo ao encontro das tendências actuais, parte de um profundo estudo das matérias-primas disponíveis em todas as ilhas, para a elaboração de novas criações com marcada identidade. Identidade essa bem visível, mesmo num jantar que se propunha Às Cegas.

Os quatro chefs / formadores da Escola juntaram-se em duos aos quatro convidados do continente - Pedro Oliveira/Hugo Nascimento, Cláudio Pontes/Vasco Lello, Sandro Meireles/João Simões, Nuno Santos/Mário Cruz, oito «ocupas» de quatro locais improváveis. A tasca do Mané Cigano, uma estufa de ananases, a sala de rolagem das folhas de chá da Gorreana e o laboratório de Química da Escola Secundária Antero de Quental foram os cenários perfeitos para os jantares que a estes se moldaram.

Não tendo o dom da ubiquidade (os quatro jantares ocorreram à mesma hora), apenas estivemos presentes na fábrica de chá da Gorreana e na Escola, onde tivemos oportunidade de encontrar bem preservada a matriz dos sabores açorianos.

Na Gorreana, Sandro e João trabalharam espadarte e encharéu, lagosta e cracas, combinando-os com a textura líquida de um caldo e a cremosidade de uma açorda. Brilhava o riquíssimo mar açoreano, com toda a sua frescura e vivacidade. A vazia maturada de limousine, acompanhada pelo funcho selvagem, tradicional nas sopas açorianas, representou bem a importante faceta cárnea da gastronomia local.

Num espaço de descoberta e experimentação que marcou gerações, Nuno e Mário casaram o local e o cosmopolita, numa sequência de pratos de mar. Ao polvo e ao bonito seguiu-se uma composição de cebola-do-mar (prima do nosso ouriço) e uma "craca" inteiramente comestível, a casca feita de uma finíssima massa de wonton, o recheio, uma espuma e o molusco, terminando a série marinha com um chowder a envolver supremos de cântaro, congro, garoupa e lula, de sabor aprofundado pelas presença de inúmeras algas. O limpa-palatos à base do sumo da aromática mandarina, foi, de novo, evocador dessa «tropicalidade transplantada».

O sucesso das duas refeições foi bem visível no sorriso consolado que ficou nos rostos para o resto da noite.

A recente liberalização do transporte aéreo para os Açores com a previsível, e já visível, grande afluência de turistas, coloca o arquipélago, no que à gastronomia diz respeito, perante opções de escolha urgente: que tipo turismo será de incentivar e, em função disso, por que tipo de oferta gastronómica optar.

Pelo observado e vivido, a cozinha tradicional está no bom caminho, depurada de excessos de condimentos e frituras, e a cozinha contemporânea continua a dar os passos certos no sentido da valorização das incomparáveis matérias-primas do arquipélago açoriano.

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