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    abrótea com folhas de limoeiro, azeitonas de sal e pau-roxo Vasco Célio
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    O alho e as ervas á venda no mercado de Loulé Vasco Célio
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    ipico limoeiro do quintal das casas algarvias, neste caso o limoeiro da casa da Maria Manuel Valagão Vasco Célio
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    Retrato dos autores Vasco Célio

Num dia de Inverno, à descoberta das cozinhas do Sul

Por Alexandra Prado Coelho

Maria Manuel Valagão, Vasco Célio e Bertílio Gomes percorreram a paisagem, os produtos e as cozinhas do Algarve e oferecem em livro a história de uma paisagem alimentar.

Naquele dia no mercado havia abróteas. Era assim que funcionava, conta Bertílio Gomes. Ele, que estava encarregado de cozinhar, Maria Manuel Valagão, que ia escrever, e Vasco Célio, responsável por fotografar, tinham um acordo: só usar o que houvesse disponível naquele dia num qualquer mercado algarvio.

Nesse dia em particular, era Inverno e havia abróteas. E também o pau-roxo, uma cenoura especial que Bertílio descobriu nestas aventuras. Por isso, um dos pratos de Inverno do livro Algarve Mediterrânico (Tinta da China, com duas edições, uma em português, outra em inglês) é abrótea com folhas de limoeiro, azeitonas de sal (uma forma de conserva que as torna mais secas, como passas) e pau-roxo.

A ideia de Maria Manuel Valagão, investigadora na área da sociologia da alimentação e do ambiente, foi sempre a de fazer um livro sobre o Algarve, as suas tradições, produtos e cozinhas (no plural, pela “grande diversidade de práticas” que existe) partindo das quatro estações do ano e das diferenças que se descobrem em cada uma — a paisagem muda e com ela mudam os produtos e muda o que as pessoas comem, numa relação muito próxima entre alimentação e natureza. Era essa a história que queria contar desde que, em 1994, fizera um primeiro e muito rápido trabalho em torno da recolha de testemunhos sobre hábitos alimentares no Algarve.

“Nasci aqui”, conta, “mas fui-me embora e, para mim, São Brás [de Alportel] eram as férias e as festas do Natal e da Páscoa.” Depois desse primeiro trabalho, em 1994, quando ainda era professora no ISCTE (Instituto de Ciências do Trabalho e Empresa), que partiu de uma recolha de receitas na serra do Caldeirão, ficou sempre a vontade de voltar. Só quando, mais tarde, saiu do instituto é que percebeu que “tinha um recurso muito importante, para além da vontade, que era o tempo”. Mas receava também que o tempo fosse curto para descobrir e contar todo esse mundo que adivinhava existir no aparentemente pequeno rectângulo no Sul de Portugal, que se estende, de norte para sul, pelas serras, o barrocal e, por fim, o litoral.  

Começou em 2011, mas tinha na cabeça uma coisa que o amigo e crítico gastronómico do PÚBLICO, já falecido, David Lopes Ramos, lhe dissera a propósito dos livros anteriores (Tradição e Inovação Alimentar e Natureza Gastronomia & Lazer). “Ele dizia que o que eu fazia era único e muito importante mas faltava a parte da gastronomia, da inovação.” E tinha razão. “A única coisa que vai perpetuar as tradições é inová-las e adaptá-las à nossa vida contemporânea. Pensei que tinha que arranjar um parceiro que soubesse cozinhar e criar a partir do meu produto e das minhas estações. E tinha que ser in loco. Parecia uma coisa do outro mundo, porque não havia recursos financeiros.”

Precisava de um cúmplice. E, de entre os chefs que conhecia, havia um que lhe parecia o certo para este projecto porque “tinha a intuição, as características humanas, a grande criatividade”. Ligou a Bertílio Gomes para lhe explicar que havia esta ideia de fazer um livro para o qual não tinha nem editora nem dinheiro. E, para grande surpresa dela, ele disse logo que sim.

É verdade, confirma Bertílio. “Tenho um grande carinho pelo Algarve, que nem sempre é valorizado, e que para mim foi sempre uma fonte de inspiração.” Maria Manuel não sabia, mas Bertílio tem também raízes algarvias, o que foi apenas mais um sinal de que este projecto estava no caminho certo.

Faltava apenas um fotógrafo e Maria Manuel angustiava-se a pensar como é que iria convencer um fotógrafo a ir fazer um trabalho para o Algarve. Foi Bertílio quem lhe deu a solução: conhecia um excelente fotógrafo, que vivia no Algarve (e Maria Manuel rapidamente percebeu que já tinha visto muitas vezes o trabalho dele). Entrou em cena Vasco Célio, que também não hesitou em dizer que sim.

Todos aceitaram as premissas deste projecto: não havia dinheiro (cada um pagava as suas despesas) e durava o tempo que fosse necessário (acabou por durar quase quatro anos); era fundamental acompanhar as diferentes estações do ano; e nenhuma receita seria confeccionada e fotografada fora do Algarve. Em contrapartida, Maria Manuel propunha-lhes que eles fossem co-autores do livro.

Seguiram-se quatro anos desta aventura, com todos os sentidos abertos, num permanente encantamento. É Maria Manuel quem o descreve logo na introdução: “Finais de Setembro, caem as primeiras chuvas. Percorremos a Estrada Nacional 2, rumo ao sul. Já no Algarve, passamos no Ameixial e a bruma entreaberta permite antever o extraordinário cenário envolvente da serra do Caldeirão. […] Viajamos numa manhã enevoada e o cheiro quente da terra seca e das estevas dissolve-se no ar fresco e húmido, repleto dos aromas das ervas silvestres que aqui crescem. Estamos deslumbrados.”

“Percorri o território todo a observar as estações do ano, os produtos”, conta à Fugas. Tinha, no terreno, “informadores privilegiados”. Mas para os conquistar precisou também de tempo. “Ia conversar com as pessoas, tive que ser adoptada por elas, porque a comida é uma coisa muito íntima e eu ia estudar a comida familiar do quotidiano e não a comida de festa, aqueles pratos de que as pessoas se orgulham.”

Sabia que ia encontrar um Algarve de práticas alimentares transformadas. Escreve: “[…] a predominância de alimentos de origem animal impôs-se sobre a frugalidade mediterrânica ancestral.” Mas, ao mesmo tempo — e, sublinha, não quer dar uma nota pessimista — descobriu que muita coisa ainda se mantém e que alguma está a ser recuperada.

Veja-se o caso do pau-roxo, essa cenoura de nome cómico e cor roxa que permite criar belos efeitos num prato. Apesar das suas raízes algarvias, Bertílio não a conhecia. “Tenho alguns livros, sobretudo franceses, que falam de vegetais esquecidos, mas nunca tinha imaginado que existisse em Portugal e muito menos no Algarve.”

No final de uma das sessões fotográficas do Inverno, trouxe algumas dessas cenouras e mostrou à mãe. “Achei que lhe ia mostrar uma coisa nova e ela disse-me que fazia parte da alimentação lá de casa. Os meus avós eram pessoas humildes, que viviam na fronteira entre o litoral e a serra e onde hoje são os campos de golfe do Morgado de Quarteira era onde as pessoas antes faziam a agricultura de regadio. Os meus avós deslocavam-se aí nos carros de bestas para fazer essa agricultura de subsistência.”
Foram muitas histórias como esta que Maria Manuel foi recolhendo nas suas conversas. “Nunca pedi receitas. Era o ‘como faz?’. E as pessoas diziam ‘se tenho isto faço desta maneira, se não tenho faço da outra’. Procurei sempre pessoas que tivessem aprendido através da tradição oral.” Uma tradição que nas últimas décadas se foi perdendo pela “ruptura na transmissão do saber que antes se fazia na cozinha, à mesa, ligada à comida, ao ir apanhar as coisas, o ir plantar, sachar o alho, tudo tem a ver com a sua época”.

E é precisamente porque estamos a chegar ao Inverno — e porque o Algarve não é apenas Verão e peixe grelhado —, que, no início deste texto, pedimos a Bertílio que escolhesse uma das suas receitas de Inverno e ele elegeu a abrótea com pau-roxo, folhas de limoeiro e azeitonas de sal — a quinta e última parte do livro é dedicada à inovação e está dividida nas quatro estações para as quais o chef propõe uma série de receitas com os produtos de cada época. E Vasco Célio — que aqui aparece menos por palavras porque o seu olhar está nas imagens que acompanham este texto — sugeriu escolher fotos ligadas ao Inverno algarvio.

Podemos partir do prato para a paisagem ou vice-versa — a relação é sempre profunda. É uma paisagem alimentar. Nas outras receitas de Inverno, Bertílio usa, por exemplo, puré de castanhas piladas e cantarelos (e confessa que também desconhecia que houvesse castanhas piladas no Algarve, embora depois lhe tivesse surgido a memória das que uma tia-avó tinha guardadas numa gaveta), coelho bravo com malagueta, figos, amêndoas e batata-doce, espargos bravos com pau-roxo e barriga de porco, lebre estufada com lentilhas, abóbora e pak choi, costeleta de borrego com pau-roxo e cebolo, tubérculos e raízes com sarrajão, perdiz com repolho e castanhas piladas e gelado de flor de amendoeira.

O abandono das amendoeiras é uma das coisas que mais entristece Maria Manuel. Enquanto “as oliveiras não estão abandonadas e muitas pessoas vêm ajudar os familiares a apanhar a azeitona”, e mesmo a alfarroba é apanhada e até reinventada em receitas que não são tradicionais como o pão de alfarroba, as amendoeiras estão esquecidas. “A amêndoa local não tem mercado”, lamenta. “Sonho com um movimento de protecção das amendoeiras, mas que tenha o ciclo completo, não é só apanhá-las, é preciso tratar delas todo o ano.

Mas há outras tradições algarvias que conhecem um renascimento. Uma delas é a das papas ou xarém (xarém é a farinha de milho, papas é o cozinhado), esse prato nascido das trocas entre o interior do Algarve, que dava o milho, e o litoral, que dava as conquilhas, e ao qual Maria Manuel dedica várias páginas do capítulo sobre Cozinha Saudável, Oralidades e Patrimónios.

Uma das grandes vantagens das papas é a sua versatilidade. “Faz-se papas com tudo”, explicam à autora os seus “informadores” e ela própria recorda-se de, quando era pequena, gostar de as comer com água-mel. Há papas com sardinhas, com conquilhas, com torresmos, com quadradinhos de pão frito, com griséus e “a tal panela podre que é bem boa” — entre as várias receitas tradicionais recolhidas (sempre mantendo o registo oral), está esta da panela podre que é, na realidade, papas com grãos.

No primeiro capítulo percorremos a História, Paisagem e Tradição e no segundo descobrimos os Produtos Mediterrânicos Algarvios, dos peixes e moluscos, ao papel do sol e do sal na conservação dos alimentos, o azeite, os frutos secos, o vinho e ainda as “preciosidades esquecidas” (como o pau-roxo, mas também a bolota, a salicórnia ou os bicos de favas, que eram cortados às favas no Inverno para fortalecer a planta a aproveitados na cozinha).

Antes de chegarmos às festas e bolos em Petiscos, Convivialidade e Festas, o já referido capítulo da Cozinha Saudável mostra-nos a arte dos algarvios de transformar os produtos mais simples numa alimentação mediterrânica muito saudável, sábia mistura de campo e mar, na qual a carne (porco, aves de capoeira, borrego e caça) é usada em pequenas quantidades e onde o pão tem um lugar de destaque, nas tibornas, nas sopas, nas açordas, e onde o tomate reina no Verão nas saladas e tomatadas, ao lado do peixe, com o atum e as suas muxama e estopeta ou os peixes alimados.

Mas, sobretudo, Maria Manuel destaca o facto de esta ser uma cozinha de água e de colher. Nas sopas e nos ainda muito presentes “jantares” e cozidos, há uma arte de fazer caldos e guardar neles todo o sabor, seja do peixe, da carne ou dos legumes, que vem de saberes antigos. Voltando ainda à receita da abrótea de Bertílio Gomes, ela inclui um caldo feito com o aproveitamento das cabeças e espinhas do peixe.

Se muita gente continua, em casa, a fazer este tipo de alimentação, nos restaurantes (com excepções, é claro) é ainda difícil de encontrar alguns dos pratos mais tradicionais do Algarve. “Começou-se a fazer aquilo que a maioria das pessoas pede, o bife, a batata frita, o arroz”, diz Maria Manuel. “A restauração não soube valorizar a cozinha tradicional”, concorda Bertílio, que no seu restaurante em Lisboa, o Chapitô à Mesa, usa já produtos algarvios. “Havia alguns pratos que eram associados a uma certa penúria, mas agora as pessoas estão a voltar a eles.”

É também isso que este livro pretende. Preservar os saberes, garantir que a transmissão, mesmo que por outras vias, se faz. Porque só conhecendo os produtos e sabendo dar-lhes o uso certo os podemos preservar — a eles e à paisagem a que pertencem e que constroem.

Aí está o livro. Uma homenagem de três algarvios à sua terra que foi também uma viagem de descoberta. “É um trabalho de observação e de escuta, com tempo”, diz a autora. “Esse foi o nosso privilégio: tivemos tempo.”

Na apresentação que fez do livro no lançamento no Chapitô, José Manuel dos Santos fala desse “mundo cheio de tempo e espaço”. Um tempo que “vem das idades em que, ao comer, dizia-se à morte para esperar” e que, aqui, “é também o tempo da memória e da mitologia”, “do mistério e do milagre em que ele se revela”, um tempo de “estabilidades e metamorfoses”.

Era em direcção a esse mundo mágico que se dirigiam, numa manhã de finais de Setembro, pela estrada rumo ao Sul, três viajantes.

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