Recuemos cinco séculos para perceber a origem e o respeito pela fogaça de Santa Maria da Feira. Em 1505, o povo feirense prometeu a oferta de um pão doce a São Sebastião, acreditando que a intervenção divina acabaria com a peste que dizimava a população. Desde então, todos os dias 20 de Janeiro cumpre-se o voto. Meninas vestidas de branco transportam fogaças à cabeça até à igreja matriz para oferecer ao mártir o doce da promessa em sinal de agradecimento. O doce tornou-se símbolo de uma região e a receita é honrada à letra. Água, fermento, farinha, ovos, limão, manteiga, canela, açúcar e sal são os ingredientes. O segredo está na forma como a massa é trabalhada e na temperatura ideal de cozedura.
A fogaça, com os quatro coruchéus do castelo no topo, continua a sair do forno como manda a tradição. Depois tudo pode acontecer. Pode ser um doce ou um salgado. O chef Luís Sottomayor, da Adega Monhé, na Rua Elísio de Castro, tem um enorme respeito por este pão doce. “Jamais trataria mal a fogaça. Como cozinheiro, quero aproveitar os sabores e a textura que dá e a partir daí trabalhar com ela.” Há um prato especial que faz apenas no dia 20 de Janeiro: fogaça com carne de porco que vai ao forno com bechamel. Na carta, tem várias propostas. Filet mignon com cogumelos, redução de vinho tinto, assente numa cama de mil folhas de fogaça; açorda de bacalhau com fogaça; castelinho, uma fogaça mais pequena recheada com enchidos e quatro queijos; tigelada de fogaça com mirtilos; pudim de fogaça. “A fogaça dá pano para mangas”, garante.
Miguel Bernardes, do Restaurante Praceta, na Rua das Fogaceiras, concorda e vê nestas reinvenções gastronómicas uma bela maneira de “valorizar e elevar um produto tradicional”. A fogaça também tem lugar na sua ementa - usando ainda Chamoa, um licor lançado como bebida oficial da Viagem Medieval, evento de recriação histórica medieval que se realiza anualmente em Santa Maria da Feira. “São Precisos Dois Para Dançar o Tango” é um tema que criou para deixar a fogaça brilhar. Entrada: montadito de fogaça no forno com pérolas de chamoa, queijo brie e pimentos. Prato principal: pato confitado com redução de chamoa e crostinis de fogaça. Sobremesa: bomboca de fogaça recheada com creme de chamoa. E tem ainda chamoa de fogaça para beber café.
As experiências de Carlos Moisés com a fogaça têm mais de uma década. Juntou-as em 2012 quando abriu o Museu Vivo da Fogaça, no centro histórico da Feira, e colocou-as no menu. Cortesãs de fogaça são miniaturas com chocolate por baixo e recheadas com cremes à escolha: framboesas, baunilha com rum, café e o genuíno creme da bola de Berlim. Salame de fogaça com chocolate e bolacha. A fogaça rainha tem frutos secos e a fogaça imperatriz, de 750 gramas, é recheada com trufas de chocolate e leva um creme de frutos vermelhos por cima. Fogaças com ovos moles, pudim de fogaça e rabanadas de fogaça também se encontram no seu “museu”. Carlos Moisés nunca aceitou a espécie de ditado que durante anos ouviu: com a fogaça não se brinca. Provou que esse doce pode ter outros paladares e apresentações para agradar a mais gente. “Para manter o espírito vivo.” E não abre mão da receita secular que respeita grama a grama. “A tradição tem de ser mantida e aí sou fundamentalista”, confessa.
Diogo Almeida faz gelado de fogaça no Café Castelo, no centro histórico, há mais de dois anos. Uma base simples de gelado com fogaça que se mistura e amolece e chega fria à boca. A textura é quase imperceptível, mas o sabor está lá. Os fornos do Café Castelo são conhecidos por cozerem fogaças regularmente, o gelado é a nova proposta. Para Diogo Almeida, a reinvenção da fogaça não é a subversão de um doce secular. Nada disso. “É a utilização da fogaça para outro fim, o que é uma vantagem.”
Há um ano, o chef Lindolfo Ribeiro criou uma entrada de fogaça e apresentou-a no castelo da Feira. Cortou-a em cubos, barrou-a com molho bechamel para ajudar o presunto a aderir. Uma entrada para uma ocasião especial. O que permanece na sua cozinha é a utilização da fogaça no doce de colher da Confraria das Papas de São Miguel, de Oliveira de Azeméis, da qual faz parte. Nesse doce, barriga de confrade, aproveita-se a parte mais tostada da fogaça na receita que inclui açúcar em ponto, uma dose generosa de gemas, canela e vinho do Porto. “A fogaça diz muito bem com queijos, compotas, mel. Usa-se a fogaça tal e qual ela é, mas é possível dar-lhe outras formas e outros fins.” Palavra de chef.