Fugas - restaurantes e bares

  • Henrique Seruca
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O holandês que nasceu "no país errado"

Por Francisca Gorjão Henriques

O Belmond Reid’s Palace, no Funchal, juntou seis chefs na mesma cozinha. Falou-se do mar, da matança do porco e de casamentos. Sobretudo de casamentos.

A cozinha do Reid’s Palace é um mundo. Várias salas e corredores, um pequeno escritório, chefs, cozinheiros e ajudantes andando de um lado para o outro. Entramos em má hora, quando se finalizam os preparativos para um almoço que juntará seis chefs (e cinco estrelas Michelin). Agora é uma apresentação para menos de uma dezena de jornalistas, mas à noite será ainda mais exigente, com 60 jantares marcados no William, um dos restaurantes do hotel — o Seis Chefs, Seis Sabores assinalou o encerramento do Festival do Atlântico no Funchal, que teve direito a fogo-de-artifício.

Passada a zona da pastelaria, onde os scones e petit-fours para o chá da tarde já estão em tabuleiros, encontramos o holandês Michel van der Kroft debruçado sobre uma mesa onde se alinham uma dezena de pratos. Em vez de resmungar com a invasão, o chef enche-se de entusiasmo para explicar o que está a fazer: “Terrina de foie gras com enguia fumada; faço este prato há 15 anos.” Sempre igual? “A terrina sim, só mudei as preparações da beterraba.”

No centro da fatia de terrina — com um aspecto marmoreado “porque é feita com vários fígados e cada um tem uma cor” — está uma pequena concavidade onde entrará um vinagre balsâmico de 25 anos. Ao lado, há pequenas meias luas de beterraba, quase translúcidas, uma amarela, outra rosada, e beterrabas bebés, com sabor avinagrado. Trouxe flores da Holanda para compor o resto: capuchinha, campânula, dianthus (também chamados cravos).

O chef do ‘t Nonnetje (a 50 quilómetros de Amesterdão), que ganhou a sua segunda estrela Michelin em 2015, diz que os clientes não o deixam tirar este prato do menu.

Tudo é descrito num português rápido e sem grandes hesitações. A explicação é simples: a sua mulher é da serra da Estrela; teve quatro anos de aulas de português no Instituto Latino, na Holanda, para conseguir comunicar com a família. “Acho importante e interessante”, frisa. Conheceram-se quando trabalhavam no mesmo hotel na Suíça, ele na cozinha, ela chefe de sala, já lá vão 24 anos (Van der Kroft está prestes a completar 47). Antes disso, “não tinha nenhuma ideia” sobre a gastronomia portuguesa.

“A base da minha cozinha é francesa. Mas quando cheguei a Portugal e vi os produtos e provei os pratos, eu adorei. Sou o único chef na Holanda que trabalha com carabineiros, bacalhau e queijo da Serra. E os clientes do restaurante adoram. Os outros chefs não conhecem estes produtos. Mas eles dão uma boa identidade à minha cozinha.”

O desconhecimento talvez se explique numa palavra, “humildade”. “Há bons queijos, presuntos, enchidos, o melhor peixe do mundo. Mas os portugueses são humildes de mais, não estão a gritar ‘Estes são os nossos produtos’. França, Espanha e Itália têm produtos maravilhosos, mas Portugal também. Para mim são top.”

Michel Van der Kroft considera-se “um embaixador de Portugal na Holanda”. E, de facto, quando espreitamos o site do restaurante, mesmo sem entender a língua, lá vemos várias vezes a palavra portuguese ao lado de “Queijo da Serra”, “Carabineiro”, e “Bacalhau”. “Eu sou holandês mas sinto-me português. Acho que nasci no país errado.”

Estar a cozinhar aqui no Funchal, ao lado de outros chefs, não é uma novidade porque vem com frequência à Rota das Estrelas. “Cozinhar assim é muito bom. Vemos outros produtos, outras técnicas e isso dá inspiração. Uso essa inspiração para fazer pratos novos no restaurante onde trabalho.”

E nos tempos livres há “as lapas da Madeira, grelhadas, com manteiga e salsa”. “Adoro. Provas o mar.”

Começámos pela descrição da terrina mas ela só foi servida depois de uma entrada preparada pelo chef executivo da casa, Luís Pestana (trouxa crocante com gema de ovo biológico, puré de batata com trufa de Nórcia e parmesão).

Ao prato de Van der Kroft seguiu-se o de Ricardo Costa, chef executivo do Yeatman, em Gaia (com uma estrela Michelin): salmonete braseado, e cozinhado durante seis minutos a 52º, terrina de cozido, talharim de choco e caldo dashi (com sementes de sésamo e molho de soja). “Tentei ligar um cozido à portuguesa com um salmonete; um prato forte com uma coisa mais ligeira, algo ocidental, com algo mais português... Não é um prato cheio de grande técnica, tinha chocos, percebes, algas, o sabor do mar com um bocadinho do sabor da terra, sem um se sobrepor ao outro.”

Inicialmente ia fazer um peixe espada com maracujá e milho frito, sabores típicos da ilha. “Mas era mais difícil chegar aqui e fazer um jantar para 60 pessoas com um prato que não fazemos todos os dias, numa cozinha diferente, com uma equipa diferente. Por isso trouxemos um prato que temos no menu.”

Foi sobretudo o mar que Joachim Koerper, do Eleven, em Lisboa, (e que faz a curadoria do William), colocou no prato pensado especialmente para a ocasião: lavagante assado e descascado, uma tira fina de crocante, feito com as cascas trituradas, e maionese. Este é um produto que Koerper (também com uma estrela Michelin) gosta de ter sempre na carta porque “o lavagante tem um sabor extremamente fino e intenso”. “Tem mais sabor que a lagosta.” E como “na estrutura do menu faltava um marisco”...

Seguiu-se a terra, com a matança do porco de João Rodrigues, do restaurante Feitoria, também em Lisboa (uma estrela Michelin). Quando conversamos no dia seguinte parece ter o indicador com sangue. São ainda vestígios da beterraba que usou no prato precisamente com essa finalidade: trazer através da cor o dramatismo e a violência da matança do porco. Em cima da loiça branca estão por isso salpicos encarnados, do “sangue” de beterraba. Mas quando serve a sua matança, em Lisboa ou no Reid’s, a encenação começa ainda antes. Um pedaço de carvão arde em cima de uma rocha escura, com a ajuda de um pouco de gordura de porco: o fumo e o cheiro leva-nos de um salto para as fogueiras.

“Parece que as pessoas se viraram contra o mundo da proteína animal e a tendência é para cozinhar cada vez mais com legumes”, explica. “Mas se não soubermos a origem de um vegetal, seja ele qual for, podemos também estar a ingerir algo que seja nefasto, como todos os transgénicos, ou produtos de cultivo extensivo. O mesmo se passa em relação às carnes: quando não sabemos a alimentação que o animal teve, a maneira como é tratado, a forma como é abatido, manipulado, guardado, podemos sofrer as consequências. Para mim, as coisas funcionam se houver um equilíbrio entre os pratos da balança.”

Esta “matança” surgiu da reflexão sobre aquela “dualidade entre o mundo vegetal e animal”. O chef quis pegar na festa tradicional, que junta família e vizinhos, “e que está a cair no esquecimento”.  “Na terra do meu pai, São Pedro do Sul, quando havia esta festa nós participávamos, segurávamos nas patas do porco, etc., e a primeira coisa que se comia era o coração grelhado. Foi por aqui que peguei: pelo coração, que carrega um simbolismo muito forte, e [quis] fazer a mesma coisa, mas com um vegetal. Daí escolher o coração da alface. Grelhámo-lo e temperámo-lo com uma massa de pimentão.” O verdadeiro sangue de porco está na morcela usada no molho onde a carne assenta.

“A gastronomia hoje tem muito a ver com estes equilíbrios”, continua. “Antes esqueciam-se os legumes, agora não devemos caminhar num sentido em que se esquece o mundo animal. Podemos dar a mesma importância a um porco e a uma alface.”

A refeição foi terminada com um produto local: o maracujá da sobremesa do chef pasteleiro Pedro Campas, do Belmond Reid’s Palace.

Os sabores da ilha estão agora na lista das tarefas de Koerper enquanto curador do William e na tentativa de revitalização da cozinha madeirense. A Madeira tem produtos únicos. “Há um milho frito que não há em mais lugar nenhum. Devemos procurar os clássicos, manter o sabor, mas pô-los no prato com outra forma.” Por exemplo, fazer do milho “uma telha crocante, uma semiesfera suculenta, ou pipocas, porque não pipocas? O tema da cozinha tem um horizonte muito alargado.”

Luís Pestana é da mesma opinião. E acrescenta: “A cozinha madeirense tem muitos pratos semelhantes aos da Europa Central, Europa do Sul e Norte de África. A nossa feijoada tem semelhanças com o cassoulet francês, o nosso cozido é semelhante ao pot au feu francês, as nossas carnes cozidas têm um pouco do tafelspitz da Áustria, o nosso cuscus tem a ver com o Norte de África. Temos muitos cruzamentos. Grande parte das pessoas que cozinhavam aqui na Madeira foram muito fiéis a estas influências, de uma forma muito rústica, ou muito artesanal... [No William] tentamos criar o nosso caminho de uma maneira que não desvirtue o que é a sua essência, mas dando outra finalização, outro casamento.”

A Fugas viajou a convite do Belmond Reid’s Palace Madeira

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