Fugas - restaurantes e bares

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As bombas que vêm do Peru

Por Francisca Gorjão Henriques

A peruana Valeria Olivari tentou trazer um pouco do seu país para Lisboa. A invasão chegou em forma de bolachas que explodem na boca. “Antes Peru era igual a perigo, terrorismo, pobreza. Agora, Peru é Machu Picchu, Peru é gastronomia.”

A loja com artigos de electricidade que fica mesmo em frente de sua casa, nos Anjos, passou para a porta ao lado. Valeria Olivari entrou no espaço vazio, viu as janelas que davam para a rua, abriu-as de par em par e a luz entrou. Não demorou a decidir que era mesmo aqui que queria o seu novo atelier. O chão e as paredes ficaram em betão polido. E no fundo cinzento um desenho com uma daquelas típicas mulheres da serra peruana, de cores garridas. “Antes, soñaba”, lê-se. A frase foi trazida de um outro graffiti que ficou famoso em Lima, colocada ao lado da imagem de uma criança andina a dormir. Aplica-se a Valeria, “como a tanta a gente”, diz a chef peruana que vive em Portugal há cinco anos.

O nome que no Peru se dá a estas mulheres da serra, Las Cholas, foi o mesmo que Valeria Olivari escolheu para a sua marca de alfajores, as tradicionais bolachas sul-americanas, com doce de leite por dentro, como se fosse uma pequena sanduíche. Quando entramos no seu atelier reparamos que na mesa comprida de vidro, ao centro, está um computador, algumas revistas, castiçais, cadeiras de madeira com almofadas coloridas. Mas o verdadeiro espaço de trabalho fica à direita, onde está uma bancada de mármore e inox, um congelador, um frigorífico, dois fornos, porque isto é sobretudo uma cozinha. Podemos marcar workshops, jantares e almoços. Ou entrar só para encomendar as suas empanadas e alfajores.

Porquê chamar-lhes Las Cholas? “Foi uma forma de agradecimento. São mulheres lutadoras, que vivem com poucas condições e conseguem sempre dar a volta. Há zonas do Peru onde as crianças sofrem de malnutrição, morrem de frio. Estas mulheres são heroínas que levam as suas famílias para a frente. Muitas vezes são obrigadas a sair das suas terras para ir trabalhar para uma cidade que não é a sua e às vezes quase nem falam espanhol, só as suas línguas [indígenas]. São muito discriminadas no nosso país... Ainda temos essa mentalidade de que uma chola não tem tanto valor.”

Foi com uma destas mulheres, Roza, que aprendeu a fazer empanadas. “De dia trabalhava em minha casa, à noite a minha mãe mandava-a estudar. Era uma escola de rapazes durante o dia e à noite ensinava raparigas que não tinham conseguido estudar, ou que estavam grávidas, e que trabalhavam. Como eu era muito ligada a ela, queria sempre acompanhá-la. Sentava-me ao seu lado nas aulas. Havia as aulas normais e as aulas de culinária.”

Valeria Olivari nasceu em Tacna, no Sul do Peru, junto à fronteira com o Chile, há 33 anos. “Sempre quis cozinhar, nunca pensei fazer outra coisa. Cresci com empregadas domésticas, cholas, porque os meus pais trabalhavam muitíssimo, e elas ensinavam-me. Somos seis irmãos e eu era aquela que estava sempre metida na cozinha.” Mas cozinhar era também uma tarefa habitual entre as mulheres da família: “A minha mãe, a minha avó, as minhas tias, todas cozinhavam. E com elas aprendi a fazer alfajores, panquecas, tudo.”

Quando acabou o liceu quis estudar gastronomia em Lima, a capital. “Aprendi cozinha francesa e especializei-me em pastelaria. Fiz estágios em diferentes países da América do Sul: Argentina, Chile, Brasil.” Foi para os EUA, Suíça, Espanha. Voltou a Lima. “Comecei a trabalhar com o chef Rafael Osterling, e foi ele que me enviou para o [festival gastronómico] Madrid Fusion. Apaixonei-me por Madrid e decidi que queria ficar em Espanha um pouco mais. Fiquei a fazer um estágio de três meses com o Paco Torreblanca, um dos maiores chefs pasteleiros do mundo.”

A conversa decorre enquanto prepara as bolachas — espalha a massa com a ponta dos dedos, depois estica-a com o rolo e mostra como se parte facilmente, porque não se pode abusar da farinha. As empanadas também já estão terminadas e a repousar no congelador, dentro de caixas (vende-as congeladas ou já prontas). Cada gesto é preciso e já executado milhares de vezes. “Agrada-me esta ideia de ser tudo muito artesanal.” Para além de três bolas de massa envolvidas em película, na bancada de mármore há uma balança, um liquidificador, uma batedeira e um jarro com água.

Continua: “Não gosto nada de falar em público. Mas um dia, quando estava a trabalhar com o Rafael, tive de ir à sala explicar o meu prato. Estava uma mesa cheia de portugueses.” Um deles viria a ser seu marido. E é por isso que há cinco anos vive em Portugal.

Trazer a gastronomia peruana para Lisboa não é simples. “É muito difícil fazer uma cozinha viajar de um país para o outro. Mas a nossa gastronomia é uma fusão, não é 100% pura — tem influências chinesas, japonesas, espanholas…” Além disso, “temos costa, serra e selva, cada um com os seus produtos”; e uma batata não é igual no Peru ou em Portugal. Portanto, o melhor é assumir a distância e fazer aqui também uma certa mistura. A gastronomia peruana “avançou imenso”, exclama. “Estamos entre os melhores do mundo, não me perguntem porquê. Talvez por essa fusão, estamos sempre a recriar.” “Antes Peru era igual a perigo, terrorismo, pobreza. Agora, Peru é Machu Picchu, Peru é gastronomia.”

Ainda antes de se instalar de vez em Portugal quis conhecer o país e foi estagiar para restaurantes, como o Vila Joya – “com uma disciplina que não vi em lado nenhum; e depois da disciplina havia festa. O [chef Dieter] Koschina, quando me chamava dizia ‘Ó Peru’”. Depois, andou de Norte a Sul a comer em casas particulares para aprender aquilo que os restaurantes não ensinam.

Ainda tentou pôr a pastelaria de lado, “mas estavam sempre” a chamá-la “de Madrid para ajudar a fazer as ementas”. “Pensava ‘estou condenada aos doces’.” E foi sobretudo através dos doces que Las Cholas nasceu.

Até há dois anos, “não tinha marca, não tinha nome, não tinha nada.” “Só fazia para os amigos.” Um deles era o futebolista peruano André Carrillo, que lhe encomendava as bolachas para levar para os treinos do Sporting, em Alcochete, “e eram um êxito total”. “Ele deu-me muita força.” Outro, proprietário da loja Gardénia, abriu o Gardenia Café Chiado e convidou-a a vender ali as suas empanadas. São dois produtos que para si “representam a América do Sul”.

O alfajor terá sido introduzido pelos árabes em Espanha, onde ainda hoje é preparado, sobretudo no Natal. Mas a sua versão espanhola, com mel, especiarias e frutos secos, é bem diferente daquela que actualmente se faz na América Latina, onde terá chegado no século XV.

Não há uma receita de alfajores, “há 1001 receitas”, e Valeria Oliveri foi testando várias até ficar totalmente satisfeita. “Já estamos no caminho, agora é avançar”, diz sobre o seu projecto. A cada três meses, o carrinho/stand que neste momento está a um canto da sala “estaciona” no El Corte Inglès. A cada ida, a visibilidade de Las Cholas aumenta. “Os alfajores são uma droga, são a cocaína do Peru! Não se consegue parar. Fico admirada por ver que uma bolacha com a qual cresci, e que havia sempre em casa, agrada tanto às pessoas. É uma coisa que me emociona muito.”

Las Cholas
Rua Carlos José Barreiros, 20, Lisboa
Tel.: 960 475 923
Preços: alfajores: uma caixa com 25 bolachas pequenas custa 14€; as grandes custam um euro cada e vendem-se em caixas de 6 ou 12; empanadas: 1,70 € já prontas; 0,90€ congeladas.
Encomendas online em www.lascholas.com

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