Logo que franqueamos a porta estreita desta casa de comidas que aí existe desde 1938, e que desde o final da década de 60 se encontra nas mãos da família de Ernesto Pereira — e nos últimos anos sob a gestão do filho Reinaldo —, reparamos que não estamos apenas num restaurante, mas também numa inesperada galeria de arte. A jarra de flores sobre o balcão, que a cada semana apresenta um arranjo diferente; as esculturas, pinturas, fotografias, instalações e outros pequenos gestos decorativos — como as três andorinhas suspensas do tecto, ou as bengalas com as efígies de Camões e Pessoa!... –, que, no percurso até ao jardim interior do primeiro piso, somam perto de três dezenas de peças; e, acima de tudo isto, a possibilidade de o cliente, enquanto espera ou depois da refeição, falar, e ouvir Reinaldo Pereira falar apaixonadamente da sua relação com a arte, com a arquitectura, com as flores.
“A arte é uma coisa que está comigo desde sempre. Talvez por via do meu avô, que depois de ter estado emigrado no Brasil se tornou no homem da cultura na aldeia, em Castro Daire”, diz Reinaldo Pereira à Fugas. O facto de ele próprio ter vivido parte da infância no Brasil — “Sempre gostei da natureza, daquela diversidade de cores”, recorda — pode ter também cimentado esta atenção às coisas das artes de alguém que, a certa altura, sonhou estudar arquitectura.
Mas as dificuldades da vida obrigaram a outros destinos, e em 1968, ainda adolescente, Reinaldo juntava-se ao pai a ajudar no restaurante. Pela porta dentro, por entre os clientes, começaram a entrar pintores, arquitectos, artistas, e Reinaldo Pereira não deixava escapar a oportunidade de trocar ideias com eles e, mais tarde, “trocar” também quadros.
“Lembro-me que o primeiro quadro que pus na parede foi do Paulo Vilas Boas”, um pintor de Barcelos já desaparecido. Depois, descobriu que tinha como vizinho, na Picaria, Henrique do Vale, a quem desafiaria para “fazer algumas instalações” no restaurante. E elas foram-se sucedendo, de tal modo que o Ernesto é hoje também quase uma galeria informal da arte deste pintor nascido em Angola e desde há anos radicado no Alto Minho — são dele quase um terço das obras aí instaladas.
Henrique do Vale foi, de resto, um dos pintores e outros “amigos do Ernesto” que no último domingo regressaram ao restaurante para a “inauguração” de uma nova instalação, que incluiu a pintura ao vivo — e a duas mãos, com Agostinho Santos — de um novo painel junto às escadas. Mas também de um conjunto de cinco novos quadros, que Henrique do Vale, Henrique Silva, Luís Melo, Evelina Oliveira e Margarida Leão pintaram expressamente para o lugar.
“A ideia surgiu-me depois de ver uma reportagem na televisão sobre os artistas da aldeia de Gondar, em Caminha”, explica Reinaldo Pereira, que desafiou os seus amigos a pintarem esta série para o Ernesto.
E os novos quadros lá estão, ao lado de desenhos já antigos de José Rodrigues e de Armando Alves, feitos em toalhetes de papel. Mas mantendo reservado o espaço que há-de ser ocupado por uma espécie de relicário profano dedicado a Paulo Cunha e Silva, o já desaparecido vereador da Cultura que gostava sempre de se sentar na mesa do canto, ou na esplanada, quando o clima o permitia. “A sua morte foi uma perda pessoal, mas também para a cidade”, lamenta Reinaldo Pereira.
Sobre o encontro de domingo, reforça que se tratou de mais um desses momentos especiais em que, além do seu trabalho quotidiano, encontra tempo e lugar para a arte e para os afectos. Ainda por cima — coisas do destino —, essa reunião, que se encontrava marcada há já vários meses, aconteceria no dia da final do Euro, em Paris. “A festa tornou-se ainda mais emotiva”, graceja o senhor Reinaldo” — ele que até nem gosta muito de futebol. Prefere a arte, as plantas e as flores, de que cuida diariamente no seu “Ernesto”.