Se tal fosse possível, o ideal seria comer o menu Raízes que Tiago Bonito concebeu para o restaurante Lisboeta, na Pousada de Lisboa, junto ao Terreiro do Paço, com o próprio chef ao lado a contar as histórias da sua infância e a falar dos sabores que o marcaram enquanto criança e que hoje o inspiram.
Tiago fala rápido e não lhe faltam as palavras para descrever como era a vida na pequena aldeia, a 15 quilómetros de Coimbra, onde os pais eram agricultores. “Cultivavam tudo em casa, cebola, tomate, pepino, pimento, tínhamos porcos, criação de leitões, de cabritos. Sempre fui habituado a participar na matança, faziam-se as morcelas, ia-se ao rio lavar as tripas, eu ajudava a mexer o sangue para não coalhar.”
Memórias não lhe faltam e é delas que se faz o Raízes. “São os sabores com que nasci”, repete. O pão feito pela mãe, a massa-mãe que era guardada para a fornada seguinte, o dia de matar o galo ou o pato para o jantar, a vontade de meter as mãos na salgadeira onde estavam os presuntos para os talhos que eram dos avós. “Tínhamos sempre azeite caseiro, era com ele, acabado de sair da bica, que regávamos o bacalhau saído das brasas. São as nossas tradições, que hoje se estão a perder em muitos sítios.”
Um dos pratos do menu é um ballotine de cabrito. “Em minha casa, estava sempre na mesa no Natal, na Páscoa. A minha mãe assa-o no forno com pau de louro. Eu faço à minha maneira, mas com a mesma marinada com a banha e o colorau, como ela faz”, explica. A diferença é que, no Lisboeta, Tiago usa a técnica de baixa temperatura e cozinha o cabrito durante oito horas até conseguir a textura macia que pretende. E se a mãe o fazia usando o caldo para o arroz de açafrão, ele opta por um puré de cherovia, batatas confitadas e molho de vinho da Madeira.
A ideia é “conciliar os nossos sabores com as técnicas mais vanguardistas”. De resto, basta respeitar o produto. “Quando se tem um bom peixe-galo ou lavagante, só temos que lhe enaltecer o sabor.” E é precisamente um peixe-galo acompanhado por espargos verdes e brancos, um canelone de sapateira e espuma de champanhe que apresenta noutro passo do menu Raízes. “Quero chegar aos meus clientes e tocar nessa infância” de que todos nos recordamos, diz. “Com este prato vamos mais para Peniche. Sou pescador, vou muitas vezes à pesca e uma das paragens obrigatórias é num restaurante típico.”
A refeição começara com uma sucessão de snacks: corneto de tártaro de gamba da costa, recheio de leitão em massa de crepe com sal de laranja apresentado dentro de um osso, um fresco quadrado de melancia marinada em soja com abacate. “Em minha casa havia sempre melancia e melão ao final da tarde no Verão. Depois de os meus pais regarem a horta, apanhávamos a melancia e ela explodia de frescura.”
Segue-se um carabineiro de Sagres que vem acompanhado por aquilo que parece uma batata preta mas que são, na realidade, ovas de choco panadas, como rochas que recriam o habitat do carabineiro. “Trabalhei sete anos no Algarve”, conta o chef, “e os carabineiros eram um dos produtos que via chegar constantemente, junto com as amêijoas, o lingueirão”. Aqui, o carabineiro aparece numa elegante composição, sobre um prato preto — “faz-me lembras as rochas do Algarve” — e pepino, para conferir maior frescura.
Chegamos por fim às sobremesas nesta refeição que, é necessário sublinhar, foi acompanhada por uma muito cuidada escolha de vinhos pelo escanção e chefe de sala do Lisboeta, João Sá, que foi apresentando várias propostas para harmonização com os diferentes pratos, explicando que lhe interessa dar a conhecer vinhos menos óbvios e produtores menos conhecidos.
A primeira sobremesa é uma sopa de ruibarbo, “algo mais ácido, mais fresco, para fazer a transição entre a carne e a sobremesa”. O ruibarbo é cozido com especiarias e servido com iogurte trabalhado com mascarpone para dar maior cremosidade e morangos para dar alguma acidez.
Por fim, chega a sobremesa que já se tornou famosa, o petit gâteau de pastel de nata e gelado de canela. Tiago Bonito sorri, orgulhoso. Já se habituou a ver os clientes limparem o prato até ao fim com este doce que apresenta como uma homenagem a Lisboa. Conta como lhe surgiu a ideia: “Uma tarde, quando estava a trabalhar na Pousada, fiz uma pausa e fui a um café onde reparei que as pessoas comiam o pastel de nata à colher e deixavam a massa folhada. Tive a ideia de fazer um bolo só com o recheio.” Mete-se a colher e o interior quente e cremoso espalha-se pelo prato. Esta não é uma memória de infância do chef, mas isso não importa porque é mesmo muito bom.