Fugas - restaurantes e bares

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Com sombra de pecado

Por Carla B. Ribeiro

O chef Luís Mourão, do restaurante Al Quimia, voltou a criar um jantar sensorial. Desta vez sob o signo do pecado. Senhoras e senhores, o espectáculo vai começar, que os sentidos também comem.

A penumbra domina o espaço do restaurante Al Quimia, no Epic Sana Algarve, em Albufeira. É neste lusco-fusco e ao som de Violin, de Alone Wolf, que nos arriscamos a encontrar um lugar, lutando contra as expectativas que tantas vezes estragam experiências. Mas é impossível não ficar ansiosa: disseram-nos que haverá surpresas pela noite fora e só isso já chega para pôr todos os sentidos de atalaia. Até porque este jantar tem um mote algo perverso, os sete pecados capitais.

Da preguiça
Mal chego à mesa tenho vislumbres do primeiro, ao aperceber-me de uma pequena e alva almofada a ocupar o lugar do prato. E o certo é que dá logo vontade de aninhar ali a cabeça, deixando a preguiça levar a melhor, embalada pelo cante alentejano dos Adiafa. Tal como alguém, sem quaisquer pudores, já o está a fazer, aproveitando um pequeno sofá num dos recantos da sala. “Não quero que vás à monda / Nem à ribeira lavar / Só quero que me acompanhes”. Não rima, mas tem alma. Subitamente, a preguiça é substituída por um irado Luís Mourão, que não só trata de curar a preguiça ao dorminhoco como de fazer entrar uma legião de funcionários — há um para cada conviva. A invasão apura-nos ainda mais os sentidos. É um toque de despertar. Afinal, a almofada não seria nossa companheira, mas antes a cama, mais que apropriada, para uma ostra com algodão doce de citrinos e caviar de arenque, coisa para apreciar dengosamente ao ritmo borbulhante de um champanhe Billecart-Salmon Blanc de Blancs.

Da avareza
Money, get away / Get a good job with more pay and you're okay”. Os primeiros acordes da música dos Pink Floyd, que fazia parte do álbum-estrela do grupo The Dark Side Of The Moon (1973), não deixam margem para dúvidas: segue-se um pecado relacionado com bens materiais. Vem aí, claro, a avareza. Mas o prato que nos servem poderia ser catalogado de tudo menos de avarento! Para mais, oiço uma voz dizer, “o tesouro está escondido”. O prato surge como um disco de ouro e, para descobrir a anunciada riqueza, há que começar a garimpar. Entram os Dire Straits: “Now look at them yo-yo's that's the way you do it”. Afinal, o que reluz é chocolate (mas, nem por isso, menos rico) e sob este repousa um envolvente parfait de foie gras sobre um crumble de frutos vermelhos. A evidenciar ainda mais este estranho, mas sempre bem-sucedido, casamento de sabores, um fresco mas persistente Caios Branco 2012, da Herdade do Cebolal (Península de Setúbal), com estágio de três meses em barricas novas de carvalho francês.

Da luxúria
Mas, se até aqui, nada parecera perturbar os vários sentidos, eis que se aproxima a luxúria, gingando ao som de George Michael. I want your sex, grita-se. E com um toque de bondage: uma venda negra esconde-nos o olhar, enquanto nos são algemadas as mãos atrás das costas. Entre este momento e a altura em que nos devolvem a visão pareceu passar uma eternidade. Mas afinal passou apenas o tempo necessário para que no centro da sala fosse montado um varão e entrasse uma exímia bailarina que se movimenta ao ritmo de Sadness, dos Enigma. Mas lá está: é só para ver; nada de tocar. Por isso, não é de espantar que as mãos se mantenham presas e nos tenhamos de servir apenas da boca para as delícias de toque exótico que desfilam à nossa frente: duas esferas de teriyaki de salmão e vieira, gaspacho de ouriço-do-mar e vieira e um cocktail, denominado Aphrodite, com mezcal, shrub de cenoura roxa, sumo de lima e xarope de gengibre.

Da inveja
De mãos libertas, regressa a venda e um aviso: Cuidado com a inveja, como canta Zeca Pagodinho. Afinal, “ainda te mata” e o “olho grande pode te cegar”. Quando a venda se vai, fica-se de olhar perdido: um livro foi depositado à nossa frente e a sua capa exibe o esqueleto de um peixe, do qual só sobrou a cabeça. Já se estava à espera de surpresas, mas esta deixa-me de olhos arregalados. Como é que alguém pode invejar um peixinho já sem carne? A resposta reside dentro deste livro que afinal é uma caixa. Ao abri-la, deparo-me com um bonito lombo lagosta que acompanha lulas com algas, bolo de iogurte e molho de caldeirada. No meu copo é vertido um branco da região de Lisboa, Casal Figueira António de 2015, um monocasta Vital de vinhas velhas. O palato já festeja ainda antes de iniciar a prova. Até os olhos se desviarem para a caixa ao lado que exibe um tataky de atum de cebolada com amêijoas, tentáculos de lula, e areia de algas, harmonizado com um tinto do Dão, um Quinta da Pellada Alvarelhão 2012. Mais à frente, há um reluzente robalo que casa com lula, bolo de rocha de algas e bisque de marisco a ser saboreado com o tinto algarvio João Clara Negra Mole de 2013. Como é que era aquilo da galinha da vizinha?

Da ira
A inveja sentida é bem compensada pela qualidade do repasto que calhou a cada um. E não tarda ouvem-se sussurros de quem confessa não trocar o seu prato. Daí, não há lugar a ira. Mas o DJ não está de acordo e, com os pratos de carne servidos com um vitelote, puré de cherovia e cenoura roxa, é ao som de Thunderstruck, dos AC/DC, que Luís Mourão solta a sua ira num tabuleiro deitado ao chão enquanto a restante tropa nos atira violentamente para o prato um naco de tenríssima vitela. A acompanhar, a proposta é para saborear um Mãos Reserva 2011 do Douro. Enquanto isso, o DJ não desarma: “Motherfucker!”, grita Zack de la Rocha dos Rage Against the Machine em Killing in the name.

Da vaidade
Num desfile gastronómico que nos apela a todos os sentidos, a beleza não poderia ficar perdida. E é cheiinha de vaidade que ela se desenha na forma de uma delicada e frágil caixinha de jóias ao mesmo tempo que pela sala ecoa o divertido Sexy and I know it, dos LMFAO. Mas, em vez de diamantes, encontramos rebuçados e aquilo que poderia ser uma embalagem de lip gloss cor-de-rosa é um pequeno gelado de morango com pimenta. Já a pepita de ouro é um bombom de chocolate negro que teima em querer alinhar com o sorvete.

Da gula
Poderia ser esta a sobremesa, não faltasse ainda um pecado. O meu, confesso: mesmo de verdade, como o que me saiu por sorte no convite. Venha então daí essa gula. Ou não. Quando uma gigantesca tábua em madeira nos oferece aquilo que mais parece uma viagem ao mundo do açúcar, cheia de cor e malabarismos, não há margem para dúvidas. A gula é mesmo um pecado tão grande que se torna impossível cometê-lo por inteiro. É que à nossa frente há mais de uma dezena de docinhos, já para não falar dos escorregas de esferas de chocolate ou dos chupa-chupas ultrabrilhantes. Os Depeche Mode cantam Just can't get enough, mas neste caso não se aplica. No entanto, o Bastardinho de Azeitão 30 anos da Península de Setúbal ajuda a encontrarmos a coragem para pelo menos provarmos um bocadinho de tudo do que encerra este pecado.

“É só dos sentidos que procede toda a autenticidade”, escreveu Nietzsche. Depois de uma experiência que se pode descrever, sem quaisquer reservas, de imaculadamente pecaminosa, seria bom acrescentar que só dos sentidos, para o mal e para o bem, advém todo o prazer. Será que se filosofa melhor de barriga cheia e corpo saciado?

 

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