Fugas - restaurantes e bares

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O Loco foi tailandês e o Belcanto tornou-se russo

Por Alexandra Prado Coelho

O festival Gelinaz trocou chefs por todo o mundo. Na sua segunda edição, envolveu três portugueses. A Lisboa chegaram a tailandesa Bo Songvisava, vinda de Banguecoque, e o russo Vladimir Mukhin, de Moscovo. Os sabores mais quentes aterraram no Loco e os mais frios no Belcanto, numa noite de descobertas.

Bo e as malaguetas

A chef tailandesa Bo Songvisava viajava, de manhã cedo, no banco de trás de um carro, olhando para o seu caderno de apontamentos com um ar desesperado. Tinha à sua frente uma longa lista de ingredientes e precisava de riscar vários para reduzir o menu para os oito pratos que lhe tinham sido pedidos para o jantar que ia fazer daí a dois dias no Loco, o restaurante de Alexandre Silva.

O problema é que só do Lugar do Olhar Feliz, propriedade alentejana onde existe uma extraordinária colecção de citrinos, além romanzeiras e muitas outras plantas, Bo tinha planeado usar, bem… ingredientes que ocupavam quase uma página inteira. O Lugar do Olhar Feliz é, exclama, “o jardim do Paraíso”.

Nos lugares da frente do carro que a transportava nessa manhã estavam Paulo Barata e Ana Músico, da Amuse Bouche, os embaixadores para Portugal do festival Gelinaz. Bo — que tem, com o marido, o australiano Dylan Jones, o restaurante Bo.Lan, em Banguecoque — veio, juntamente com o russo Vladimir Mukhin, do White Rabbit, em Moscovo, para Lisboa.

Enquanto isso, Alexandre Silva e José Avillez, do Belcanto, deixaram as suas cozinhas entregues a estes dois convidados e partiram para outros países. As trocas fizeram parte de um festival muito original: The Grand Gelinaz Shuffle (ver caixa), que aconteceu em várias cidades do mundo na noite de 10 de Novembro.

O carro tinha partido do Mercado de Benfica e dirigia-se ao Martim Moniz, onde Bo comprou grandes quantidades de malaguetas. Na quinta-feira, às oito da noite, quando finalmente se revelou a identidade de quem ia cozinhar no Loco (a ideia do Gelinaz é que, nesta troca mundial de chefs, só no último minuto se saiba quem está em que país e em que restaurante), Bo apareceu, sempre sorridente, e avisou que a comida ia ser picante. “Não se pode pedir a um chef que ponha menos picante do que os seus pratos habitualmente têm”, disse, aconselhando a quem fosse mais sensível que “bebesse mais vinho”.

O primeiro prato era um caril de borrego, enrolado numa folha de bananeira e servido com pão. Já tinha um nível de picante considerável mas que não abafava os sabores dos vários ingredientes do caril. Foi servido com um vinho fortificado de Colares para que o doce quebrasse o picante.

Mas, apesar de Bo ter explicado que a refeição começaria em tons mais fortes e viria a tornar-se mais suave para o fim, o prato seguinte, porco com pasta de camarão, parecia subir alguns pontos no nível de picante — embora, mais uma vez, isso não afectasse em nada os sabores, ao mesmo tempo delicados e complexos que incluíam, por exemplo, limão rosa.

Voltando 48 horas atrás, ao tal dia das compras, do Martim Moniz, Bo seguiu para o Mercado 31 de Janeiro e foi aí, na banca de peixe de Açucena Veloso, que planeou os pratos seguintes, encantando-se com os peixes e mariscos. Serviu primeiro uma sopa de mariscos, com amêijoas, camarão, percebes e um ovo e, de seguida, peixe (peixe-espada preto e pargo) fritos com duas técnicas diferentes e acompanhados por um molho com finas tiras de marmelo. (A Fugas não acompanhou o resto do jantar porque teve que mudar de restaurante, para ver o que Vladimir Mukhin servia, por essa hora no Belcanto).

Filha de pai chinês, e por isso também familiarizada com a cozinha chinesa, Bo viveu em Londres, onde trabalhou com o chef australiano David Thompson, que mudou o seu restaurante, Nahm, para Banguecoque (quando estava em Londres, Thompson conquistou a primeira estrela Michelin para um restaurante tailandês na Europa). “Nós abrimos o Bo.Lan em Bangkok em 2009 e o David abriu o Nahm no ano seguinte”, recorda a chef.

Foram dos primeiros a querer recuperar a cozinha tailandesa mais tradicional, procurando receitas, por exemplo, nos livros funerários — quando alguém que gostava muito de cozinhar morre, os familiares oferecem no funeral um conjunto de receitas dessa pessoa. Há livros destes muito antigos, de diferentes regiões, e se David Thompson tem “a maior colecção do país”, segundo Bo, ela e o marido têm também já muitos destes livros, que vão comprando em feiras.

Bo, que em 2013 foi distinguida com o prémio Veuve Clicquot para Melhor Chef Feminina na Ásia, não pára nunca. Tem um programa de televisão na Tailândia, quer lançar o movimento Slow Food no seu país e quer ensinar às crianças o que são os diferentes ingredientes e como se deve comer de forma saudável e sustentável.

Quando soube que vinha para Lisboa agarrou-se a um livro de 500 páginas sobre a história das relações entre Portugal e a Tailândia à procura de referências sobre comida. E depois de aqui chegar aprendeu muita coisa que não sabia e ensinou muito sobre o seu país. Porque, afinal, é (também) para isso que serve o Gelinaz.

Vladimir e as flores

Enquanto isso, no Belcanto… a noite era russa. Quando a Fugas chegou estava a ser servido o último prato: costeletas com pera desidratada, cebola e kvass, bebida fermentada feita a partir de pão de centeio. E na cozinha já se preparavam as sobremesas.

Tal como no Loco, o ambiente entre o chef e a equipa era já de grande amizade. Aliás, chegada a fase das sobremesas, Vladimir Mukhin estava descontraído e, enquanto ia deitando o olho ao que a equipa preparava (sob o olhar atento de David Jesus, o sous-chef do Belcanto), pôde mostrar à Fugas alguns dos ingredientes mais exóticos que usara. Por exemplo, o medostav, uma bebida fermentada feita com mel e servida sobre uma pera com caviar de truta.

Os sabores por aqui não podiam ser mais diferentes dos que se provavam no Loco à mesma hora. A cozinha russa do chef do White Rabbit tem muito mais sabores ácidos e amargos do que a tailandesa ou do que a portuguesa. Uma das coisas que encantou Mukhin foi o bacalhau seco que se usa em Portugal e que o inspirou a fazer uns pickles de pepino usando a água da demolha.

Ficou também deslumbrado com o cheiro das rosas no jardim da propriedade do Casal de Santa Maria, em Colares. Não encontrou depois à venda flores que se assemelhassem a essas, mas descobriu begónias e lembrou-se de como gostava de as comer quando era criança. Deu-lhes então um “orvalho” feito de cidra e vodka e abriu assim o jantar no Belcanto onde serviu, entre vários produtos portugueses (bacalhau, percebes, leitão) outros trazidos do seu país, como caranguejo de Kamchatka ou carne de cavalo.

Usou ainda outras flores campestres (que, garante, cheiram a tomate) para, misturadas num puré de maçã reineta, acompanhar o leitão (e, entretanto, não se cansa de mostrar no telemóvel as fotografias que tirou junto aos leitões) e aproveitou as folhas de Outono para um prato com bacalhau e cogumelos.

Vladimir — que, para além do White Rabbit em Moscovo, actualmente no 18.º lugar na lista dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo e situado num 16.º andar com uma vista a toda a roda sobre a cidade, é chef de um grupo proprietário de 17 outros restaurantes na Rússia — cozinha desde os 12 anos.

No White Rabbit, frequentado pela elite de Moscovo e, por vezes, pelo próprio Presidente Vladimir Putin, serve uma cozinha russa moderna mas que mergulha nas mais distantes regiões do país para resgatar ingredientes exóticos e que os outros restaurantes habitualmente não usam. O que Mukhin mais gosta é de viajar até esses lugares longínquos e perceber que produtos e técnicas se usam aí. E foi esse trabalho inovador que o catapultou para a lista dos melhores do mundo, onde teve uma subida muito rápida. “O meu pai era talhante e tinha um restaurante no Sul da Rússia”, conta, por entre muitas histórias das suas avós (um dos ramos da família era judaico, o outro era ortodoxo russo), ambas óptimas cozinheiras, o avô com quem foi caçar no dia em que viu um urso e como era difícil parar de comer numa família onde a boa comida nunca faltava.

Mas o trabalho também não faltava. E, a propósito da pré-sobremesa feita de salsa, recorda como fazia calor quando, ainda adolescente, tinha que trabalhar na grelha do restaurante do pai. Uma das coisas que usava para aliviar a sede eram as hastes da salsa, que gostava de chupar. Daí que, tantos anos depois, no Belcanto em Lisboa, sirva aos clientes da noite Gelinaz uma sobremesa toda ela de salsa, com uma base de bolo e um gelado de um verde intenso.

Para terminar o jantar, uma última sobremesa traz, ainda, a Rússia às mesas. “Chamamos-lhe a Rússia Negra porque leva pão negro, bagas negras e café negro”, explica o chef. Mas toda essa negritude está escondida por uma espuma branca, feita a partir de leite de alce. No final, despediu-se, por entre as palmas dos clientes, com uma música russa a encher a sala.

Avillez na Alemanha...

Nas trocas de chefs da segunda edição do The Grand Gelinaz Shuffle (a primeira em que Portugal participou), a José Avillez, do Belcanto, coube um bilhete de avião para a Alemanha, mais exactamente para Wolfsburgo, onde aterrou no Aqua do chef Sven Elverfeld.

Ao telefone com a Fugas, contou que levara consigo alguns produtos portugueses, como os carabineiros ou o pinhão de Alcácer do Sal. Mas a ideia era tentar cozinhar com produtos locais, fazendo um cruzamento de influências. O prato que criou e que melhor representa essa ligação luso-germânica é feito com um peixe que Avillez nunca tinha trabalhado: uma espécie de truta salmonada fumada, com creme de pinhão, fígado de bacalhau, pickles e kalix (ovas crocantes de um peixe local.

“Curei o peixe com feno, o que também foi uma novidade para mim”, diz. Mas reconhece que, sendo a Alemanha um país relativamente próximo, seria muito difícil encontrar ingredientes extraordinariamente diferentes. “Não é como se estivesse na China.”

Ficou apenas com pena de não poder usar a carne de caça, porque naquela altura “não tinha a qualidade de excelência” de que precisava, mas criou dois pratos com borrego, um mais “alemão”, com puré de beringela, gel de hortelã e maçã, e outro mais “português”, um cozido de grão com caldo de hortelã.

... e Alexandre Silva na ilha Lummi

O chef do Loco teve a sorte de ir parar a um lugar quase no fim do mundo (pelo menos para quem olha de Portugal): a ilha Lummi, na costa leste dos Estados Unidos, um pouco a norte de Seattle, junto à fronteira com o Canadá.

Ficou instalado numa das cabanas junto ao restaurante Willow’s Inn, do chef Blaine Wetzel, para onde levou a massa mãe com que é feito o pão no Loco e a flor de sal portuguesa. De resto, cozinhou com ingredientes locais que, numa zona muito rica em peixe e marisco, são “diferentes de tudo” a que está habituado. O que mais o surpreendeu — e que usou no prato que escolhe destacar do seu jantar — foi o geoduck, uma amêijoa gigantesca, que cozinhou com pés de porco, tendões e tutano.

Aprendeu, entre muitas outras coisas, que nomes semelhantes se aplicam ali a animais muito diferentes. “Os lingueirões, por exemplo, não têm nada a ver com os nossos e o bacalhau do Pacífico também é completamente diferente.” De carne, usou apenas o pato fumado. Mas confessa-se surpreendido com a variedade de produtos que se encontram numa ilha tão pequena — “em vinte minutos de carro damos a volta” —, como as seis variedades de maçãs ou os frutos secos, que usou também no seu jantar.

O que é o Gelinaz?

O festival que aconteceu na noite de 10 de Novembro é uma ideia do jornalista gastronómico e curador Andrea Petrini e envolveu 40 dos grandes cozinheiros do mundo (três dos quais portugueses, mas também, por exemplo, os chefs do Noma, em Copenhaga, René Redzepi, ou da Osteria Francesca, em Modena, Itália, Massimo Bottura). Vinte deles receberam um bilhete de avião para um destino tirado à sorte, onde tiveram que cozinhar no restaurante de um colega, com a equipa dele e com ingredientes desse país (em alguns casos ficando até na casa do chef local, com a família deste). Os outros vinte estiveram em Bruxelas para uma maratona de jantares (servidos de acordo com diferentes fusos horários), onde pratos concebidos pelos chefs “viajantes” foram recriados por duplas de outros cozinheiros. Para conhecer todos os envolvidos nesta aventura, ver a página oficial do evento.

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