Eram 9h quando começaram os preparativos no restaurante Bon Bon. Vinte chefs, entre nomes sonantes e outros emergentes, agrupavam-se em duplas, cada uma com a função de preparar quatro pratos (um por turno) com base nas receitas enviadas pelos chefs que participavam no Gelinaz Grand Shuffle 2. O convite para seguir ao longo de 24 horas, em Bruxelas, à jornada que aglutinava, conceptualmente, todos os jantares do evento espalhados pelos cinco continentes, era uma ideia atractiva, mas também um tanto alucinante.
O plano passava por acompanhar os preparativos, desde manhã cedo, bem como os quatro jantares que se realizariam a cada quatro horas, de acordo com o fuso horário dos locais onde os outros teriam lugar — com início ao meio-dia e final previsto para as três da manhã. Depois, haveria ainda a celebração dos acontecimentos, num pós-evento que se estenderia até de madrugada. Teria este repórter resistência (e estômago) para tanto?
Jantar ao meio-dia, às 16h, às 20h... e à meia-noite
Perto das 12h, estava tudo a postos para acolher os primeiros clientes que aguardavam numa sala anexa. À hora marcada, quando soaram as primeiras notas de Web, de Brian Eno (Lascaux Mix), abria-se a cortina e os chefs recebiam os participantes com aplausos. De batina, o “padre Joe” (o autor do livro Where Chef’s Eat, Joe Warwick) abençoava os presentes e informava: “Os pratos que vão receber são irrepetíveis. Vão comê-los aqui pela primeira vez e não voltarão a ser feitos”. “Chefs, estão prontos?”
Começar a jantar ao meio-dia, quando na Austrália Adeline Grattard (do yam’Tcha, Paris), ou Alex Atala (do D.O.M., São Paulo), iniciavam o serviço da noite, é só uma questão de informar o cérebro de que se trata de um almoço. A chefe francesa, famosa por misturar sabores orientais e ocidentais, enviara uma receita de tributo ao restaurante Attica, onde se encontrava, e caberia à dupla Christophe Hardiquest e Enrico Crippa interpretarem-na. “Kung Fu Panda bolognese”, chamaram-lhe eles. Na sala, perante um começo tão auspicioso, até os italianos ficaram estupefactos com o toque asiático que transportava para outra dimensão um clássico da sua cozinha.
As propostas foram-se sucedendo, umas atrás das outras, a um nível impressionante, tendo em conta que as receitas não tinham sido testadas. A meio do jantar surgia outro dos grandes pratos da jornada: “Leite de Bruxelas”, da dupla Fulvio Pierangelini & Petter Nilsson, nada mais do que uma versão do popular prato belga de mexilhões com batatas fritas, aqui envolvidos num leche de tigre europeu (feito também com mexilhões) e couve-de-bruxelas. A cada colherada, um sabor diferente. Certamente que Virgilio Martinez (do Central, Peru), autor da receita, teria gostado da reinterpretação.
Já perto do final do primeiro turno, chegava a proposta do português Leonardo Pereira, que fazia dupla com Albert Adrià. O duo ibérico não complicou e fez um “Thai chicken”, um snack com pele de galinha crocante, queijo fumado e peito de frango marinado em molho e ervas orientais, uma receita de Dave Pynt num tributo ao Bo.Lan, (Banguecoque).
Leonardo Pereira é um dos chefs adoptados por Andrea Petrini (responsável pelo evento), que ficou encantado com o seu trabalho quando ele era ainda chef no Areias do Seixo (Torres Vedras). O português, que procura actualmente um espaço no Porto (depois de falhada uma primeira hipótese de o fazer em Lisboa), considera a presença no Gelinaz bastante importante por se tratar de um festival de culto. “Estão aqui os melhores chefs da actualidade e jornalistas de todo o lado. É um evento restrito mas ao mesmo tempo influente e muito aberto ao mundo.”
Pereira estava satisfeito por fazer dupla com um nome sonante como Albert Adrià, que considera um dos melhores chefs da sua geração. O antigo cozinheiro do Noma referia ainda que era fácil trabalhar com ele, uma vez que o espanhol “tem mundo e ideias muito claras sobre o que fazer”. E como é ter de reinterpretar no prato aquilo que por sua vez já é reinterpretação de outro chef, que por vezes nem se conhece? Primeiro, “há que imaginar a pessoa que vai cozinhar a um certo lugar de outro chef”. Depois, “tens de tocar em pontos específicos do seu trabalho sem cair nos clichés e passares a barreira do que fazes normalmente”.
Pelas 15h40 já todos os clientes abandonaram a sala. Antes de entrar o segundo turno e de novo o tema de Brian Eno, ouve-se o aspirador e o tilintar dos últimos retoques nas mesas, enquanto os pratos começam a alinhar-se no balcão da cozinha. Para os jornalistas que acompanham o evento desde o inicio há que fazer reset e começar tudo de novo. Os mais difíceis são os últimos pratos, dado que os primeiros ainda iludem o cérebro. Neste grupo estava uma belíssima truta com clementina e pinhões, a receita de José Avillez em tributo ao Aqua (Wolfsburgo), reinterpretada por um duo que vale seis estrelas Michelin: Gert de Mangeleer, do Hertog Jan (Bélgica), e Clare Smyth, até há pouco tempo chef principal do restaurante Gordon Ramsay, em Londres. Lá pelo sexto prato, surge a primeira sobremesa da noite, granola e molho de cerveja preta, pelas mãos de Mauro Colagreco e Alexandre Gauthier. É uma proposta que surpreende pelos sabores refinados e pouco doces e por aparecer a meio da refeição.
Antes do turno seguinte dou um salto ao primeiro andar, onde funciona a cozinha do pessoal. Visivelmente cansado, o jovem chef Mathieu Rostaing-Tayard parece dormir de olhos abertos sobre a mesa, enquanto outros chefs saem para fumar, indiferentes à chuva e à temperatura próxima dos zero graus. Já Leonardo Pereira, atira-se com apetite ao caril de frango preparado por dois anjos da guarda nos bastidores.
Pelas 20 h, sobe pela terceira vez a cortina. Repete-se Brian Eno no sistema de som e as palmas de boas vindas dos chefs. O cansaço começa a evidenciar-se e até o “padre Joe” vai perdendo gás. Surpreendentemente, nas mesas que seguem o evento desde o primeiro turno, uma boa parte da nova leva de dez pratos saboreia-se com apetite. Afinal, no fuso horário de uma boa parte da Europa agora sim, é hora de jantar. O veterano e “tri-estrelado” Yannick Alleno, em parceria com o norueguês Nicolai Nørregaard, reinterpretam o prato que o russo Vladimir Mukhin dedica ao lisboeta Belcanto e a Bruxelas: raiz de aipo com bacalhau e uma batata frita em forma de mexilhão. Por sua vez, a fechar a refeição, cabe ao dueto ibérico apresentar uma sobremesa (pouco doce), de Massimo Bottura, um creme de limão grelhado, puré de trigo sarraceno e uma telha de merengue.
É meia-noite, o último serviço vai começar e a equipa de cozinha parece ter recuperado a energia. Sobe a cortina e vislumbra-se de novo a surpresa nos rostos de quem ali acaba de chegar. Já para os resistentes da primeira hora, mais parece um loop de um mesmo filme. No seu púlpito, o “padre Joe” quebra o ciclo e confessa: “Meu Deus, estou a fazer a mesma piada com o Trump desde manhã.” Gargalhada geral. Pelos vistos, continua a funcionar. Dez pratos mais e o repórter praticamente já não tira notas. Porém, descobre mais tarde, pelo registo fotográfico, que comeu até ao fim alguns dos pratos do derradeiro turno, entre eles “a ostra virtual”, que o austríaco Philip Rachinger e o italiano Davide Scabin garantiram ser a sua interpretação da receita que o chef do Loco, Alexandre Silva, enviou em tributo ao Willow’s Inn, (ilha de Lummi, Estados Unidos). A jornada no Bon Bon terminaria pelas 3h30 e o Gelinaz prosseguiria ainda num bar da cidade. Porém, já sem Brian Eno, “padre Joe”, ou pratos finos. Apenas cachorros quentes, tacos, cabeça de porco assada e Hallelujah, em homenagem a Leonard Cohen. E aos que resistiram, certamente.