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Queijo da Serra? Só se for Serra da Estrela, com todas as letras

Por Luísa Pinto

Natal é sinónimo de queijo na mesa. Queijo Serra da Estrela, quererão muitos. Mesmo que depois, afinal, sirvam o chamado Queijo da Serra. E como é que se distinguem um do outro? Nós aprendemos com as mãos na massa. Perdão, no queijo.

Joaquim Rebelo levanta-se às 5h15 da manhã, de segunda a domingo, Natal e feriados, no Verão e no Inverno. Tem uma profissão exigente, a que poucos darão valor. Gosta da liberdade, ele que tentou outras actividades (todas na área da construção civil) mas acabou por voltar ao sítio onde deu os primeiros passos no pastoreio, seguindo as pisadas do pai, quando tinha, então, 17 anos. Hoje, Joaquim tem 52, e está há mais de 12 como pastor do rebanho da Casa da Ínsua, um hotel de charme de cinco estrelas, pertencente ao grupo Visabeira, localizado em Penalva do Castelo. No Inverno, às seis da manhã começa a ordenhar as ovelhas; no Verão aproveita para as levar para o pasto, antes que o calor fique insuportável. Todos os dias dão diferentes, mas todos os dias são iguais.

Foi numa manhã de Inverno que o fomos encontrar a ordenhar quatro dezenas de ovelhas da raça Bordaleira Serra da Estrela. Dali, o leite viaja poucos metros para chegar à queijaria onde Virgínia, a esposa de Joaquim Rebelo, começou a acompanhar a queijeira Maria do Céu na produção de queijo Serra da Estrela.

Nós chegamos com o leite, já elas estavam a tratar o que tinha sido enviado uma hora antes. Todos os dias trabalham 80 litros de leite, todo produzido ali à porta. A cada litro de leite cru que ali chega, acabado de ordenhar, depois de coado e colocado num recipiente aquecido (a cerca de 30 graus), juntam-lhe 14 gramas de sal e 0,2 gramas de cardo. A receita vem de tempos imemoriais, diz-se que desde o século I. Menos de uma hora depois de ali ter sido colocado com o coagulante vegetal, já o leite está coalhado, e pronto a trabalhar.

É agora que coloco uma bata, arregaço as mangas e junto as minhas mãos às de Maria do Céu e Virgínia. Aproveitei a oferta que a Casa da Ínsua faz a qualquer cliente que o pretenda e a qualquer visitante que avise da chegada. Nem é preciso pernoitar na Ínsua para aproveitar o programa que eu ali fiz — e , que eu saiba, não há melhor maneira de perceber uma actividade do que experimentá-la.

É também por isso que José Matias, responsável pela produção da Casa da Ínsua, abre as portas da queijaria e do ovil aos visitantes (as escolas são as mais comuns): para os sensibilizar para a importância da tradição na produção deste queijo que muitos pensam que conhecem mas que poucos, eu incluída, saberiam reconhecer. Estamos num hotel cinco estrelas, é verdade. Até as ovelhas notarão a diferença, já que o ovil em que pernoitam e aleitam tem condições bastante superiores à da maioria dos “palheiros” que ainda grassam pela região — e que o produtores resistem em melhorar e em adequar às condições exigidas pela certificação, quer por falta de conhecimento, de rendimento ou de vontade. “Tem sido uma actividade muito esquecida e maltratada”, diz José Matias, que sonha com o dia em que um pai não torça o nariz ao dia em que o filho, ou filha, lhe diz que começou a namorar com um pastor ou uma queijeira. Esse dia ainda vem muito longe, é preciso mudar muita coisa até lá. Por enquanto, procura-se manter a tradição.

Procure o selo

As novas queijarias, mais industriais, como a da Ínsua ou a que o ex-ministro Jorge Coelho acaba de montar em Mangualde, apenas se podem permitir a trazer uma maior escala. São obrigadas a respeitar os mesmo trâmites de produção, sob pena de não conseguirem pôr nas prateleiras um queijo Serra da Estrela com certificação DOP (Denominação de Origem Protegida): leite fresco produzido por ovelhas da raça Bordaleira Serra da Estrela e ou Churra Mondegueira, produzido na área geográfica delimitada de produção (que abrange 18 concelhos e uma área de 3142 quilómetros quadrados).

Maria do Céu manda-me lavar as mãos e pôr, literalmente, a mão na massa. Ou melhor, no queijo. A actividade que se segue é o dessoramento, isto é, tirar o soro (líquido) daquele coalho, soro esse que é recolhido e será depois transformado em requeijão. O coalho que tenho entre as mãos, envolto num pano de tecido que me empenho em espremer sobre a mesa, está morno (na verdade está a 30 graus). “Devem ser as mulheres a fazer este trabalho, porque a temperatura do corpo é sempre mais elevada. Quando estão com o período menstrual é demasiado elevada, é preciso andarem sempre a molhar as mãos, para as arrefecer”, explica José Matias.

“Não torça o pano, menina!”, apressa-se a corrigir Virgínia, quando eu me preparava para tirar o soro ao coalho como quem torce um pano de roupa. É com paciência, determinação, que se vai espremendo aos poucos, pressionando aquela amálgama no interior do pano contra a mesa,várias vezes, mudando de posição. O soro não pára de sair. Nem quando, já muito espremido o coalho, o coloco dentro do recipiente que vai dar a forma ao queijo. Há sempre soro a sair (abençoados requeijões aí virão). Está na altura de reabrir o pano e começar a picar aquele coalho, soltá-lo, de forma a preencher os espaços livres que encontre com mais matéria-prima. O objectivo é fazer um queijo firme, sem buracos. A missão é continuar a retirar o soro, pressionando-o, enquanto o moldamos à forma, pressionando com mais vigor na borda da forma. Fazê-lo e repeti-lo, virar a forma, fazer e repetir, revirar.

Maria do Céu já tinha feito dois ou três quando a minha inexperiência a convencia que também já poderia tentar desenformar o meu. E tal qual faço com um bolo, tirei o queijo da forma e fiquei a olhá-lo sob a palma da minha mão. Já era um queijo bonito. O período de maturação a que se sujeitaria nos próximos dias, num mínimo de 40, dar-lhe-á o sabor. Coloco-lhe a marca de certificação, um holograma com um número de série produzido pela Casa da Moeda. Aquele é o “meu” queijo. Vai estar pronto para o Natal.

A maturação é o período essencial para o sabor e a qualidade do queijo. Duas semanas numa câmara climatizada entre os seis a oito graus de temperatura, e a humidade a exceder os 90%. Os queijos estão colocados sob tábuas de pinho seco, e todos os dias são lavados e virados. Passam depois para outra sala, agora mais aquecida, entre os 12 e 13 graus e a humidade mais baixa, abaixo dos 65%. Se fica 40, cem ou 120 dias, vai definir se é um Serra da Estrela DOP, ou um Serra da Estrela Velho DOP — também conhecido como queijo corno. É assim que são feitos todos os Queijos Serra da Estrela. Alguns serão ainda feitos à lareira, outros não poderão dar a garantia de que o leite é todo proveniente de ovelhas daquela raça específica (há 65 mil ovelhas na região, mas só 14 mil é que são raça bordaleira Serra da estrela), ou até daquela região (há quem compre leite em Espanha!). Alguns queijos não chegam, por isso a ser Serra da Estrela. São, só, Queijo Serra — sendo que essa denominação não só não está protegida como não existe legalmente. Pela força da lei, esses queijos deveriam indicar que são “queijo de ovelha amanteigado curado”.

De acordo com a legislação, entende-se por “Queijo Serra da Estrela” o queijo curado, de pasta semimole, amanteigada, branca ou ligeiramente amarelada, bem ligada, cremosa e untuosa, com poucos ou nenhuns olhos, obtido por esgotamento lento da coalhada, após coagulação pelo cardo (nome científico, Cynara cardunculus, L.). 

O Queijo Serra da Estrela - DOP tem uma textura medianamente amanteigada, deformável ao corte, mas bem ligada, e tem cor branca ou ligeiramente amarelada. O Queijo Serra da Estrela Velho - DOP tem uma massa ligeiramente quebradiça e seca e uma paleta de cores que vai do amarelo ao castanho.

O melhor de tudo é procurar o selo de origem neste Natal. Se encontrar o 3408C1A, houve um engano na distribuição: porque esse deveria estar na minha mesa, fui eu que o fiz.

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