Fugas - restaurantes e bares

  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR
  • DR

Nem só de saladas vive a quinoa

Por Francisca Gorjão Henriques

A tradição no Peru é fazer da quinoa um acompanhamento. Mas este pseudocereal pode ser muito mais do que isso.

As tigelas estão já em cima da bancada de pedra: coentros picados, cebola, bacon em bocadinhos, cogumelos, manjericão, sumo de limão... Estão também três taças com uns pequenos grãos: quinoa branca, quinoa vermelha, quinoa preta. Se lhe déssemos o sotaque da sua região de origem escreveríamos “quínoa”. E é assim que vamos ouvir pronunciar durante todo o workshop conduzido pela peruana Valeria Olivari no seu atelier. A ideia é mostrar que a quinoa não serve só para saladas.

No Peru, a quinoa aparece tradicionalmente como acompanhamento, mas há cada vez mais cozinheiros a inventar novas utilizações – como nos vários pratos que Valéria se prepara para cozinhar. As três quinoas que vamos usar foram cozidas previamente apenas em água, sem qualquer tempero, entre 15 e 18 minutos em lume forte (a branca coze um pouco mais rapidamente do que as outras duas).

Começamos pela entrada, um tiradito de salmão. A cozinha peruana tem fortes influências japonesas, de tal maneira que há mesmo um nome para esta “contaminação”: comida nikkei. Este tiradito é um exemplo da nikkei. Faz-se maionese com um ovo, aipo, óleo de girassol, pasta de amarillo (malagueta amarela picante, “a base de qualquer prato peruano”, diz Valeria), concentrado de gengibre, sumo de lima, sal, pimenta. O salmão é colocado cru no prato, em pequenas tiras. Para além da maionese, vem acompanhado com um pouco de puré de batata-doce cor-de-laranja (temperado com sumo de laranja, lima e açúcar), e puré de abacate, com wasabi e limão. Por cima, a quinoa preta, para dar algum crocante.

Segue-se a sopa, um chupe de camarão.

O workshop faz parte de uma campanha do Ministério do Comércio Exterior e Turismo do Peru para divulgar a quinoa, que se tornou um dos produtos mais exportados do país (que também vende para o exterior café, cacau, espargos...) Existem “três mil variedades de quinoa”, assegura Juan Luis Kuyeng Ruiz, responsável do escritório comercial do Peru, quando vários dos presentes comentam que desconheciam a existência de quinoa preta.

É um alimento tão rico que a Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) decretou 2013 como o ano da quinoa – uma planta que há cinco mil anos já era cultivada e que permaneceu praticamente inalterada até agora.

Não é um cereal, mas um pseudocereal, porque a planta é usada praticamente da mesma forma (também pode ser transformado em farinha) e tem um perfil nutricional semelhante a um cereal integral. Mas este é o único produto que tem todos os aminoácidos essenciais, e não tem glúten, contém vitamina B, magnésio, fósforo, potássio, cálcio, vitamina E e fibras. “Tem mais antioxidantes do que qualquer cereal usado nas dietas sem glúten”, lê-se num artigo da americana Medical News Today publicado em Julho. “É uma das poucas plantas com uma proteína completa, [ou seja] contendo os nove aminoácidos essenciais”: aqueles que o organismo não é capaz de sintetizar mas que são fundamentais para o seu funcionamento. Por isso os incas lhe chamavam “a mãe dos cereais”. Cada 100 gramas contêm 15gr de proteína, 68gr de hidratos de carbono, 9,5mg de ferro, 286mg de fósforo, 112mg de cálcio, 5gr de fibras e 335 calorias.

Para além da diversidade genética e da riqueza nutricional, há outra razão para a atenção que a organização da ONU lhe dispensou. A quinoa tem uma grande capacidade de se adaptar a diferentes condições agro-ambientais, e tanto é cultivada em zonas com -4º C, como em áreas que ultrapassam os 30º C, e traz fortes benefícios socio-económicos às comunidades locais. “Face ao desafio de aumentar a produção de alimentos com qualidade para alimentar a população mundial no contexto das alterações climáticas, a quinoa oferece uma alternativa aos países com problemas de segurança alimentar”, defende a FAO. “Tem também a capacidade de diminuir a dependência de outros produtos como o trigo e o arroz."

Tudo isto levou a que a fama do “cereal milagroso dos Andes” se espalhasse. A moda explodiu até no Peru, que produziu no ano passado 140 mil toneladas, mas só exportou 53 mil, adianta Kuyeng Ruiz.

“Não cresci com quinoa”, diz Valeria Olivari, que nasceu em Tacna, no Sul, junto à fronteira com o Chile. “Só a descobri há poucos anos. Era um alimento de Puno”, região agrícola também no Sul, um planalto a mais de 4 mil metros de altitude, que juntamente com Cusco é das zonas de maior produção da planta. “A quinoa não chegava aos supermercados das cidades”, afirma a chef do atelier Las Cholas, em Lisboa. “Eu própria fiquei surpreendida com o que se pode fazer e utilizo agora nos meus pratos”."

Um artigo no Guardian em Janeiro de 2013 apontava para o reverso da medalha. O aumento da procura trouxe o aumento do preço do alimento, que triplicou desde 2006 até então, de tal forma que “as pessoas mais pobres do Peru e da Bolívia, para quem este era o alimento nutritivo por excelência, já não conseguem consumi-lo". "A comida de plástico importada tornou-se mais barata. Agora, em Lima, a quinoa é mais cara do que o frango. Fora das cidades, devido à grande procura exterior, a pressão é para transformar a terra que produzia diversas colheitas numa monocultura de quinoa."

O mesmo jornal publicou um artigo de opinião, em Julho deste ano, assinado por Alexander Kasterine, responsável pelo programa de comércio e ambiente do International Trade Centre (ITC, agência conjunta da ONU e da Organização Mundial do Comércio), em que estes argumentos eram refutados. Um estudo publicado em Maio pelo ITC, citado por Kasterine, revela que não só o aumento dos preços da quinoa não impedia as populações rurais mais pobres de a consumir, como veio melhorar o seu nível de vida. “E na verdade, quando os preços caíram em 2014-2015 devido ao aumento da concorrência trazida por plantações de maiores dimensões, com uma agricultura mais intensiva na costa, produzindo a custos mais baixos, os rendimentos dos agricultores também caíram e a alimentação das suas famílias piorou”, lê-se.

De acordo com o mesmo estudo, nos anos em que os preços aumentaram, entre 2004 e 2013, “tanto os produtores como os consumidores beneficiaram financeiramente da comercialização". "Os produtores de quinoa, que estão entre as populações mais pobres do Peru, viram um aumento de 46% dos seus rendimentos durante este período”, escreve o responsável.

Para um cozinheiro, a quinoa tem a vantagem de absorver muito bem os sabores dos produtos com os quais é cozinhada. É isso que Valeria Olivari sobretudo valoriza, tal como a textura. “É um grão que mesmo quando coze de mais não fica uma papa, como o arroz."

O chupe que nos prepara é exemplo disso. A sopa leva camarão (inteiro, sem casca, e o caldo feito com as carcaças), cenoura, ervilhas, tomate, e umas boas colheradas de quinoa branca (a que geralmente é utilizada em sopas, porque abre mais) previamente cozida, que dá corpo a tudo. Na lista de ingredientes ainda consta o queijo fresco (de consistência parecida com o Feta) e o leite evaporado. E se fosse um grupo de peruanos com a tigela de chupe à frente, seria bem provável que contestassem a ausência de um ovo estrelado a rematar a taça, mas como os comensais são portugueses achou-se por bem deixar o prato por aqui.

Não foi só o Japão que entrou na gastronomia peruana; a China também. A chaufa de frango é “o prato preferido” de Valeria Olivari (pelo menos entre os que tem hoje no menu). Faz-se com sobras de arroz e legumes, bacon, omelete, molho de soja. Parece um arroz chau-chau (e já agora, fan é arroz em cantonense). Mas em vez de arroz leva quinoa vermelha. Segue-se o quinoto, um risotto de quinoa (branca), a que se junta um pesto de coentros e manjericão, e que pode acompanhar peixe ou carne. Sim, também há influências italianas nas tradições peruanas.

“Uso quinoa em entradas, sopas, pratos quentes. Tenho que começar a trabalhá-la mais para as sobremesas”, diz a chef. Uma das que já tem treinado assemelha-se a um arroz doce. Leva o leite, a casca de limão, gemas e um pau de canela. E outras coisas mais que a desviam do universo português: leite condensado, coco ralado, baunilha líquida, passas. Neste almoço, o que se pretende é mesmo uma aproximação ao Peru – ainda que isso muitas vezes implique passar por vários lugares do mundo.

--%>