Fugas - restaurantes e bares

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Nem sempre o bacalhau foi rei na mesa de Natal

Por José Augusto Moreira

A consoada era frugal em respeito pelo jejum que impunha o tempo de advento. Os peixes, galo ou borrego no forno da tradição na ceia de Natal só cederam o protagonismo na última metade do século passado. E o Estado Novo ajudou à receita.

Domina de forma absoluta a refeição de Natal dos portugueses, e até já alargou o reinado a outras paragens, mas nem é assim tão antiga a tradição do bacalhau. A consoada começou por ser frugal e contida, com respeito pela atitude de jejum que impunha o tempo de advento, celebrou-se depois com peixes, galinha e borrego antes da chegada do peru, e foi já na segunda metade do século passado, empurrado pelo nacionalismo salazarista, que o hábito do bacalhau acabou por se impor em todo o território nacional.

Hoje, bem se pode dizer que não há Natal sem bacalhau à mesa dos portugueses na noite de consoada, sendo que para o dia 25 o cabrito assado vem ganhando terreno à roupa ou farrapo velho. Apenas nas ilhas dos Açores e da Madeira o polvo guisado, espetadas e carnes em vinha-d’alhos roubam protagonismo ao fiel amigo. E o mesmo se poderá dizer apenas em relação a raras comunidades do Alentejo e barrocal algarvio, que preservam o velho hábito da sopa de cação, peixes no forno e carne com amêijoas, ou da Beira Baixa, onde as carnes dão substância aos pratos festivos.

Associa-se ao período pré-cristão o hábito da entrega de oferendas aos magistrados e imperadores romanos que estará na origem da tradição cristã de assinalar o nascimento de Jesus. Um hábito que, no entanto, apenas se impôs a partir do século VII com a acção do Papa Bonifácio. Ele próprio fazia questão de distribuir simbolicamente pão ao povo no dia 25 de Dezembro e com isso terá definitivamente fixado a tradição da celebração do Natal.

Com o poderio da Igreja e o domínio absoluto sobre os usos e costumes a partir da Idade Média, o Natal era tempo dedicado à contemplação e ao sacrifício do jejum. E a refeição da noite de Natal, a consolata, que deu origem à consoada, não era mais que uma simples consolação para o estômago antes da meia-noite. A ceia tinha lugar depois da missa do galo.

Principalmente no Sul do país, a tradição era que se fizesse apenas uma refeição leve. Em absoluto respeito pelo jejum mas também pela herança de frugalidade da tradição árabe, como explicam Maria de Lurdes Modesto e Afonso Praça no livro Festas e comeres do povo português. Uma simples sopa de feijão, em muitos casos, ou um peixe de coentrada, como era a tradição em Castelo de Vide.

Diferente era o Natal a Norte. Mais dados a festejos, alheios à tradição árabe e habituados a criativas interpretações dos ditames da Igreja, os povos do Entre-Douro-e-Minho desde cedo encontraram no bacalhau uma forma bem conveniente de cumprimento do jejum. Com os rigores do tempo, mais acentuados a Norte, nem sempre a pesca era abundante nesta altura do ano, e também, por outro lado, já desde o século XIV que o porto de Viana do Castelo se afirmara como o grande ponto da descarga do bacalhau.

Assim podiam celebrar antes da missa do galo e da forma que lhes era mais do agrado e conveniente: dentro de portas e em família, para não perturbar o ambiente de contemplação, e sem carnes, para respeitar o jejum.

Pelas outras regiões do país, galinha, borrego, leitão e outras carnes assadas eram protagonistas de ceia de Natal. De fora, sobretudo da luminosa Paris, vinham influências mais cosmopolitas, entre as quais se foi impondo o peru assado e recheado com carnes, uma tradição de origem americana que foi trazida para a Europa pelos espanhóis no século XVI.

Ao bacalhau, os minhotos passaram a juntar o polvo, que também respeitava o jejum. O ambiente de festa e de grande celebração familiar compunha-se com uma vasta panóplia de doces, mesas exuberantemente decoradas, tudo em abundância quase desmedida e a obrigação de que tudo se mantivesse sobre a mesa até à refeição do dia seguinte.

Ou seja, a grande festa da família que rivalizava até com os grandes banquetes parisienses. “Há um só banquete português que desbanca todos os jantares de Paris, mas que os desbanca inteiramente: é a ceia da véspera de Natal nas nossas terras do Minho”, como em finais do século XIX, descreveu Ramalho Ortigão.

A pesca e o consumo de bacalhau constituíram um dos desígnios centrais da política do Estado Novo. À satisfação das necessidades alimentares o regime associava-lhe a exaltação de valores heróicos e identitários do nosso povo: um produto especial, preparado e consumido segundo o engenho e criatividade únicos dos portugueses, explorado em águas internacionais em condições heróicas e perante a admiração estrangeira.

Desígnio nacional

E com a chegada da televisão, em meados do século passado, o bacalhau ganha grande protagonismo e é assumido como desígnio nacional. As partidas e chegadas das heróicas frotas de bacalhoeiros tinham direito a grandes reportagens e eram abençoadas em directo pelos mais altos dignitários da Igreja. Paulatinamente, os portugueses passaram a adoptá-lo como símbolo de Natal e da festa da família, tornando-se também um produto abençoado pela Igreja.

Maria de Lurdes Modesto concorda que foi o bacalhau que esteve na base do alargamento do modelo de consoada minhota para todo o país. “O bacalhau, que é uma grande paixão dos portugueses, é que esteve na base da mudança”, disse em tempos à Fugas. “E eu também não me tiro de fora”, assumiu, referindo-se às “sumptuosas consoadas minhotas que todos os anos preparava para os programas na RTP” que protagonizou durante as décadas de 1960 e 1970.

A acompanhar o bacalhau, em postas altas e bem demolhado, devem estar as batatas, couves — penca e galega —, cenouras, cebolas e um ovo para cada pessoa. Tudo cozido e servido em fartas travessas, depois de devidamente escorrido. No prato, aduba-se com azeite, vinagre e alhos ao natural, havendo quem prefira um molho fervido com alhos e uma lasca de cebola.

Mesmo assim, em boa parte das mesas há também espaço para os assados de peru ou galo, cabrito, borrego ou leitão, e também, mais a Norte, o polvo guisado é obrigatório.

Quatro vinhos para a noite de Natal

Niepoort VV Vinhas Velhas Branco 2013

A Bairrada e os seus solos calcários eram uma velha paixão que Dirk Niepoort viu correspondida com a aquisição da Quinta de Baixo. É de vinhas centenárias, trabalhadas segundo os mandamentos biodinâmicos, que saem as uvas das castas Maria Gomes e Bical que entram neste vinho. Exemplo perfeito da leveza e complexidade da Bairrada, é um vinho limpo, elegante, fino, e sobretudo sempre fresco. Tem corpo e garra, mas é ao mesmo tempo austero, mineral e muito digestivo. Um excelente parceiro para o bacalhau de Natal.

Quinta de Baixo, Bairrada
Preço: 29,50€

 Nunes Barata Grande Reserva 2011

Castas Syrah, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon e Touriga Nacional. Estagia em barricas de carvalho francês durante 12 meses e o mínimo que se pode dizer é que constitui uma agradável surpresa. Desde logo porque mostra um lado de frescura e leveza, depois porque na boca esconde por completo o álcool elevado (14,5%) e a criação em barrica. À elegância associa boa estrutura e uma acidez digestiva. Daqueles tintos que vão bem com bacalhau.

Nunes Barata Vinhos, Cabeção, Mora, Alentejo
Preço: 28€

Churchill’s Estates Grande Reserva 2013

Proveniente de vinhas velhas, não só mistura as mais diversas castas do Douro como diferentes parcelas e exposições. Uvas da Quinta da Gricha e de outras propriedades do Cima Corgo. Um tinto feito ao estilo dos vinhos do Porto, mas fino, elegante e de sabor delicado. Aromas vegetais e florais, cedro, resina e notável equilíbrio entre estrutura, poder e frescura. Na boca tem notas de especiarias e é complexo. Vai valorizar os assados do período festivo.

Churchil Graham, Douro
Preço: 25€

Andresen White 20 anos

A casa Andresen é um santuário de Portos Tawny e brancos velhos, mas este Branco 20 anos nem é dos mais mediatizados ou valorizados. É, no entanto, um vinho extraordinário, uma obra-prima da filigrana que a enologia de Álvaro Van Zeller pacientemente vem trabalhando naquelas caves centenárias. Impressiona pela força aromática e frutos como pêssego e alperce. Na boca ligeiro mel, suave e delicado, acidez fresca e incisiva para um final poderoso, longo, poderoso e saboroso. Pode dizer-se que associa as virtudes de acidez de um Madeira de colheita tardia e o esplendor e volúpia de um Porto. Perfeito para a doçaria de Natal.

J H Andresen Sucessores, VN Gaia
Preço: 35€

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