Gelados. Este é o tema favorito de Daniel Burns e é o que mais lhe ocupa a cabeça por estes dias. Mas temos que falar de outras coisas antes de chegarmos aí. Temos, em primeiro lugar, que perceber como é que este chef canadiano veio parar a Lisboa, ao Loco, para o primeiro dos dez jantares a quatro mãos do ano, com Alexandre Silva.
No festival Gelinaz, a grande troca de chefs entre restaurantes de vários países, Daniel recebeu ordem de partida para Lisboa, mas na altura, por razões de organização, foi outra chef, a tailandesa Bo Songvisava, que acabou por vir. Ficou, no entanto, a vontade de Alexandre receber Daniel e o convite aconteceu agora.
Daniel está com algum tempo livre porque o seu restaurante em Brooklyn, o Luksus, com uma estrela Michelin, fechou. “Achei que era mais criativo para mim fechar e passar para outras coisas”, explica. Foram três anos e meio de funcionamento. “Fizemos algo de diferente do que existia em Nova Iorque porque tudo era acompanhado com cerveja — trouxemos as harmonizações com cerveja para o fine dining”.
Mas o espírito inquieto de Daniel — que a sua aparência de extrema calma, mesmo nos momentos de mais trabalho na cozinha, não deixa adivinhar — levou-o a querer passar para a fase seguinte. E, sim, estamos a falar de gelados.
A inquietação passa sobretudo por uma enorme curiosidade, provavelmente relacionada com a sua formação: matemática e filosofia antes da cozinha que, confessa, lhe desperta uma “curiosidade científica”. Faz, aliás, todo o sentido para quem trabalhou no The Fat Duck com Heston Blumenthal — “o meu primeiro trabalho aí foi precisamente com gelados, tínhamos 14 ao almoço e dez ao jantar”. Passou também pelo Momofuku, de David Chang, onde trabalhou na área de pesquisa e desenvolvimento, e, em 2006, pelo Noma, onde foi “desafiado a fazer uma série de coisas diferentes na pastelaria”.
O Noma, várias vezes considerado o melhor restaurante do mundo na lista do World’s 50 Best, foi uma influência determinante na sua forma de pensar a comida. Cozinhar com produtos locais e de estação foi a filosofia que aplicou no Luksus — e que o aproxima de Alexandre Silva e do Loco.
“O movimento da nova cozinha nórdica tem tudo a ver com o terroir. Como se transpõe isso para Nova Iorque? Usando produtos locais, de estação, sabores brilhantes. Mas tenho a liberdade de usar produtos asiáticos, por exemplo. Não estou a tentar ser nórdico, estou a tentar ser sazonal.” Em Lisboa aplicou o mesmo princípio. Alexandre levou-o aos seus fornecedores e Daniel escolheu os produtos portugueses com os quais queria trabalhar.
A única excepção, que trouxe consigo, foram os pickles de nozes verdes, que encantaram Alexandre. “Nunca provei nada igual a isto, é diferente de tudo”, diz o chef português. Outra coisa que lhe interessa é a maneira como Daniel gosta de esbater as fronteiras entre o salgado e o doce (algo que gosta muito de trabalhar nos gelados, por exemplo). “Ele acredita que um prato não deve ser só salgado ou só doce, deve ser muita coisa. Chegas a uma altura em que já estás farto de ter um carabineiro a saber a carabineiro, já sabes de olhos fechados qual será o sabor. Há uma grande necessidade de criar coisas novas, de comer uma cavala que tem um sabor diferente de todas as que já comeste.”
E, assim, Daniel e Alexandre apresentaram, por exemplo, um carabineiro com tangerina e anémonas, uma cavala com beringela e pickle de nozes verdes, uma ostra com couve e alcachofras, um tártaro de vaca com lingueirão e shiso, um caldo de sapateira com capuchinhas e funcho, raia com raiz de aipo fumada e alga vermelha ou uma língua de vaca com sementes de mostarda e salsa.
Combinações improváveis, um número reduzido de elementos, uma presença assumida da acidez (“a Escandinávia é a minha segunda casa”, tinha dito Daniel, para explicar porque é que o Luksus foi sempre etiquetado como um restaurante nórdico). O prato mais arriscado, por ser o oposto de uma ideia de comida de conforto — e por isso mesmo foi o menos consensual — juntava cebolas jovens, pickles chanterelle e ouriços-do-mar.
Entre os momentos altos, e como sempre acontece no Loco, estiveram o pão, que veio com as várias manteigas que o acompanham habitualmente, e o molho de bife, e que era feito com gordura de pato fumada.
A refeição terminou com duas sobremesas muito bem conseguidas. A primeira, do chef pasteleiro Carlos Fernandes, era um pomelo confitado com um puré das peles do fruto, um sorbet de tangerina e yuzu e uma areia de especiarias. A segunda era de Daniel e quebrava mais uma vez as tais fronteiras entre o que são ingredientes de prato principal e de sobremesa: cenoura, beterraba e gelado de iogurte com um suspiro de vinagre.