Está vento e frio. O mar está agitado e o pequeno barco com dois homens lá dentro salta quando apanha as ondas de frente. Vem do Baleal, da apanha de percebes, e nós estamos a vê-lo chegar, enrolados em casacos e cachecóis, ao lado de João Rodrigues, chef do restaurante Feitoria, do Hotel Altis Belém, em Lisboa, e de Joel, o proprietário da Tasca do Joel, famosa casa de Peniche.
Está um daqueles dias em que quase não dá para ir ao mar. Mas o mergulhador que faz a apanha dos percebes em profundidade foi, apesar de tudo. “O problema é a rebentação, hoje está impossível. Com a força das vagas quase não se consegue chegar à pedra. São precisos quatro ou cinco mergulhos para apanhar alguns percebes”, diz.
Mesmo assim, passou várias horas no Baleal, que neste momento não está em defeso, ao contrário das Berlengas, local óptimo para a apanha de percebes. “O percebe do Baleal é mais pequeno mas é mais saboroso”, explica Joel, entusiasmado também com a notícia de que há uma nova espécie de gamba que nos últimos dias começou a aparecer por aqui e a que os locais chamam o “camarão marreco”.
O mergulhador salta do barco e mostra o que conseguiu apanhar: um balde com percebes enormes — “só se conseguem grandes na apanha com mergulho, quem fica na pedra tira os pequenos” —, uns quatro ou cinco pepinos do mar, espécie de lesmas gigantes muito apreciadas pelos chineses, uma boa quantidade de mexilhões e uma dúzia de ouriços-do-mar. “Dos pepinos só se aproveita a tripa”, diz João Rodrigues, pegando num dos animais para exemplificar como se faz.
Joel e o sócio, Tiago, são desde há alguns meses os fornecedores de todo o peixe e marisco que João Rodrigues está a usar no Feitoria — e que está no centro do novo menu “Matéria”, que criou para marcar a reabertura do restaurante, no dia 26 de Janeiro.
Vamos a Peniche na véspera da reabertura do Feitoria e os percebes que acabam de chegar vão estar no menu. O grande problema destes, vai explicando o mergulhador, é que são cada vez menos nos locais da costa portuguesa onde antigamente existiam em grandes quantidades.
“Somos 45 apanhadores, a lei permite 20 quilos a cada um, o que, se todos apanharem, faz uns 900 quilos por dia.” A isto soma-se a apanha não autorizada e a falta de fiscalização da forma como os percebes são apanhados. Quem vai para as rochas apanha os mais pequenos e não dá tempo para eles crescerem. “Eles até crescem rápido. Se parassem toda a apanha no Baleal, num ano aquilo ficava um jardim.”
Mas João Rodrigues não veio apenas pelos percebes. Seguimos para o armazém de Joel e Tiago para ver o que eles reservaram para o chef. Joel tira de uma caixa com gelo uma lula gigante, apanhada nas Berlengas. João fotografa um goraz belíssimo e avalia um linguado. “Ficas com as bruxas?”, pergunta-lhe Tiago.
Sim, as bruxas vão seguir para Lisboa, mas antes disso, para as podermos fotografar melhor, Tiago tira-as do balde e coloca-as no chão. De um aquário tira um lavagante e uma santola e traz também várias sapateiras. A sessão fotográfica é vista pelos animais como uma oportunidade de fuga e cada um começa a tentar escapar-se para um lado diferente. Joel apanha a santola e Tiago vai atrás das sapateiras.
João está encantado com a qualidade do que vai comprar. As bruxas seguem, assim como as tais gambas que são novas por aqui. O linguado também vai. Passamos ainda pela lota que está a abrir às quatro da tarde. Tiago prepara-se para passar ali longas horas até conseguir comprar o peixe que pretende — tudo depende do horário de chegada dos barcos dos pescadores, os grandes arrastões e os mais pequenos.
Nas bancadas da lota estão já muitos compradores a ver desfilar as caixas cor-de-laranja cheias de peixes e a carregar no botão de cada vez que querem fazer uma compra. São horas e horas e é preciso estar atento para se ser mais rápido do que os outros e comprar o melhor. Lá fora, junto ao cais, está a chegar um barco pequeno com dois pescadores. Trazem douradas e um robalo das Berlengas. “Ainda lá ficou gente?”, pergunta Tiago. Já não, foram o último barco a vir, o dia não rendeu muito a ninguém, mas os próximos prometem ser ainda piores, com o tempo a impedir os pescadores de irem para o mar.
Trazer realidade para a mesa
No dia seguinte, à tarde, encontramo-nos com João Rodrigues na cozinha do Feitoria. Em cima da bancada, em caixas, estão já as bruxas que tínhamos conhecido em Peniche e que ainda continuam a tentar escapar a um destino que, a esta hora, já parece bastante inevitável. O que João pretende com o menu “Matéria” — um passo importante naquilo que tem sido a evolução da filosofia de cozinha do Feitoria — é passar para as mesas do restaurante tudo aquilo que viu e sentiu num dia como o que passámos em Peniche.
Qual a melhor forma de respeitar o produto? É tentando mostrar ao cliente que ele tem uma história, que vem de um lugar específico, que um peixe de profundidade é diferente de um de superfície, que não é fácil apanhar percebes em dias de correntes fortes. É isso que o “Matéria” se propõe fazer.
“Quando as pessoas vêm ao restaurante e comem um prato ficam muito entusiasmadas com o aspecto estético, mas nunca sabem ao certo de onde vem o produto, qual o seu ciclo de vida”, diz. “Pensei que mostrar o produto que existe na nossa costa pode ajudar as pessoas a não se desligarem da matéria, despertar-lhes admiração pelo produto e a vontade de o seu habitat e as condições, por vezes difíceis, que é preciso enfrentar para o ter. Queria trazer essas sensações para um restaurante que está inserido num hotel, num ambiente urbano.”
E como fazer isso? A aproximação de João a esta filosofia de cozinha faz lembrar os haikus, os muito pequenos poemas japoneses, de apenas três linhas, que se libertam de tudo o que é supérfluo para captar apenas a essência da ideia que querem transmitir. É precisamente isso que o chef do Feitoria está a dizer: “Dei por mim a pensar na cozinha de um ponto de vista estético e técnico, mas chegou uma altura em que isso deixou de fazer sentido. Agora estou no processo oposto: como é que podemos simplificar? Como é que podemos deixar só a essência?”.
Inspirou-se nas cervejarias tradicionais onde vamos para comer marisco na sua forma mais simples. Começou a criar pratos com não mais do que três ingredientes, para não “mascarar” o produto. É trazer a realidade para a mesa.
Horas depois da conversa na cozinha estamos sentados a uma das mesas do Feitoria para ver como é que as ideias do chef se traduzem num menu de vários pratos. Os snacks iniciais incluem um crocante negro de grão-de-bico e uma brincadeira com a máxima de que “não se deve misturar alhos com bugalhos” — neste caso, um “bugalho” recheado com alho negro.
Chegam depois duas conchas, uma com sumo de maçã verde e pele de galinha crocante e a outra com um dashi. Os animais que habitaram as conchas — um berbigão bicudo e uma bomboca — vêm à parte, para que nada interfira com a experiência de os comer com todo o seu sabor a mar.
O prato seguinte traz-nos a bruxas que tínhamos conhecido, ainda vivas, em duas ocasiões anteriores. Agora surgem apenas salteadas sobre uma grande pedra de sal e, à parte, um molho feito com as cabeças. Mas o mergulho mais profundo no mar acontece a seguir, com os percebes cuja história também tínhamos acompanhado, cozidos ao vapor sobre algas, dando a sensação de os estarmos a comer directamente da pedra da qual foram arrancados.
Os carabineiros do Algarve foram servidos com uma pequena encenação, usando a prensa de pato do Feitoria para extrair os sucos das cabeças. E eis que chega o linguado em todo o seu esplendor, ainda cru, numa travessa que um dos empregados nos apresenta. João Rodrigues quer contrariar a lógica dos pratos perfeitos em que o peixe aparece num filete que não tem qualquer relação visual com o animal que foi. Há quase um lado didáctico neste esforço, como que a dizer “um linguado é assim, é diferente de um goraz, de um pregado ou de um robalo”.
O empregado retira-se e quando regressa é já com o prato pronto, o (agora sim) filete de linguado acompanhado pela gamba quase crua, tupinambo e um jus de carne, numa confecção que faz toda a justiça ao belo peixe que nos tinha sido mostrado. Com a carne, a preocupação em mostrar que há uma história mantém-se e, por isso, o prato que se segue evoca a matança do porco, com a carne a vir acompanhada de um coração de alface cozinhado com enchidos. O último prato do menu é novilho com puré de batata, ovo de codorniz e cogumelos.
A sobremesa leva-nos para a serra da Estrela e transforma-nos por momentos em abomináveis homens das neves (não vamos revelar mais nada para não estragar o momento) e, por fim, faz-nos entrar no fascinante universo dos citrinos (estes vindos do Lugar do Olhar Feliz, no Alentejo) trabalhados de diversas maneiras.
A essência do produto
Quando um chef de cozinha diz que a sua principal preocupação é mostrar os ingredientes como eles são e, em certos casos, servi-los mesmo ao natural, a pergunta surge inevitavelmente: qual o papel do seu trabalho, como transformador de alimentos, neste processo? “Tudo isto é cozinhado e em tudo há uma conjugação de sabores. Pode-se dizer que todos os cozinheiros dão importância ao produto. Mas isso passa por fazer o quê? Pô-lo no prato com quinze ingredientes diferentes? Isso é valorizá-lo? Se calhar, valorizá-lo é pegar numa beterraba e cozinhá-la da maneira que entenderes para mostrares como ela realmente é.”
Este é um trabalho que começa antes da cozinha — e longe dela. Começa, por exemplo, numa ida de João Rodrigues a Peniche para falar com o apanhador de percebes e saber de onde eles vieram, a que profundidade foram apanhados, quantos mergulhos foram necessários para os trazer até nós.
Ou pode começar numa ida à nova horta biológica que o Feitoria começou a ter há uns meses e onde estão a ser produzidos os legumes que se vão usar no restaurante. Por enquanto são poucos, mas João e a sua equipa já planearam o que será plantado ou semeado, em que altura e que produtos terão disponíveis para ir introduzindo, na devida época, no menu “Matéria”.
Também com a carne estão a ter um trabalho semelhante, ajudados por um fornecedor que “visita vários produtores de gado e selecciona animais premium” de várias raças autóctones portuguesas. Não é tão fácil fazer a diferença por aqui, explica João Rodrigues. “Portugal está na Europa, não há um exotismo que nos permita ser muito diferentes, como acontece com o Brasil, por exemplo. Temos carne como outros têm carne. Temos é que mostrar que aqui existe carne boa e que esta é de uma das nossas raças.”
Quando um restaurante já conquistou uma estrela Michelin, como é o caso do Feitoria, pode, explica João, optar entre ser um serviço de alta qualidade com pratos que se repetem um pouco por todo o lado, ou ser “uma experiência”. O caminho a seguir tem que ser o do aprofundamento cada vez maior de uma linguagem própria, acredita o chef. “O que me entusiasma é pegar numa maneira de pensar e transportá-la para um prato.” Mas esta ideia de transmitir a essência do produto, mostrando-o o mais possível em bruto e depois transformado, é “um desafio que está a começar agora”.
Desde que João Rodrigues assumiu a chefia da cozinha, há quatro anos, tem vindo a percorrer, de forma gradual, esse caminho na busca de uma linguagem diferente e única. Agora, que acaba de ser considerado o melhor chef e de ver o Feitoria reconhecido como o melhor restaurante de Portugal pelo júri dos Prémios Mesa Marcada, João sente que é o momento de dar um passo mais arriscado. “O Feitoria tem vindo a reinventar-se a cada etapa. Chegou a altura de dizer ‘este é o meu caminho’.”
E os clientes irão compreender? Espera que sim. Espera, no fundo, que quando o prato de percebes chegar à mesa cada pessoa possa ver o pequeno barco a lutar contra as ondas do mar de Peniche e o mergulhador, a três ou quatro metros de profundidade, a tentar chegar à pedra para, com o ferro que segura nas mãos, arrancar da rocha aqueles animais que ali cresceram, entre as algas e os peixes.