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A paixão borbulhante de Cristina Gonçalves

Por Andreia Marques Pereira

Foi uma das primeira mulheres cervejeiras em Portugal. Há dez anos, saiu da empresa de sempre, a Unicer, mas neste regresso com a Fugas até parece que nunca a deixou. Cristina Gonçalves hesita em considerar-se uma pioneira, mas a paixão pela cerveja não é hesitante.

Passou toda a sua vida profissional aqui, neste complexo que tem a sua recepção num edifício “forrado” a borbulhas — de cerveja, dizemos, já que é dourada a fachada. Dez anos depois de ter saído, na recepção faz o mesmo que nós, identificar-se para receber o cartão de visitante. É aí que nos conhecemos, ouvido o nome.

Cristina Gonçalves, 38 anos passados na Unicer, aqui em Leça do Balio, onde se tornou a primeira mulher cervejeira do grupo — ou seja, chefe de produção da cerveja — e uma das primeiras, se não a primeira, mulheres em Portugal a ostentar tal título. Foi pelo menos a primeira mulher portuguesa a trabalhar em Portugal a frequentar o curso de especialização na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, uma espécie de meca da indústria cervejeira.

Saberemos mais tarde, por acaso, que foi também a primeira mulher na direcção e na administração. Cristina não faz disso um cartão-de-visita — esse é a paixão com que fala do seu percurso profissional, onde, há-de reconhecer, a passagem pela produção foi a que lhe “deixou mais marcas”. “Fiquei sempre deslumbrada.” Foi, aliás, a única vez em que não pediu para sair para outras funções, confessa. Mas outras funções lhe foram oferecidas e os desafios também a atraíam — atraem, atrevemo-nos. Tem 70 anos (“Não envelheceu um ano”, dizem colegas com quem se cruza; “É da cerveja”, brinca), diz que agora é avó, mas há um brilho intenso no olhar que não engana — e afinal, duas ou três viagens longas por ano, por exemplo, fazem parte da sua rotina actual.

Longe vão os tempos em que esta rotina incluía uma série de copos de cerveja, logo pelas 9h30, alinhados na sua secretária. Os dias começavam com provas de amostras dos tanques. Recorda esse período quando fazemos um desvio pelos laboratórios da Unicer. Era tradição do chefe de produção e Cristina, já chefe de produção, já mestre cervejeira, “gostava dessa fase”. “Se existe algum defeito é aí que se detecta e se pode ajustar. A decisão era do master brewer, era uma responsabilidade enorme. Agora já há separação.” Sem provas diárias, continua, porém, a beber cerveja todos os dias. Ela que provou cerveja pela primeira vez com 20 anos, “durante a Queima das Fitas”, na esplanada que a Companhia União Fabril Portuense (CUFP, o embrião da Unicer) tinha na Rua de Júlio Dinis, com um grupo de colegas da Faculdade de Engenharia. Não imaginava que aí estava o seu futuro — profissional e pessoal. “O meu marido era um desses colegas”, sorri. A partir daí, passou a associar sempre a cerveja ao convívio.

Não precisamos de fazer nenhuma pergunta para Cristina Gonçalves começar a falar. Enquanto nos deslocamos até à Casa da Cerveja, passando inúmeros edifícios que fazem parte deste complexo inaugurado em 1964, confessa que continua “ligada sentimentalmente” à Unicer. “Passei aqui muitos e muito bons anos.” Não conheceu outra empresa: foi recrutada quatro dias depois de terminar a licenciatura em Farmácia na Universidade do Porto, em 1969. Não hesitou — tinha feito uma visita de estudo uns anos antes. “Esta fábrica era um luxo, a melhor do país a nível de indústria alimentar.”

Foi contratada para fazer parte de uma equipa de investigação para um projecto de dois anos, a ser apresentado na EBC do Estoril em 1971. Na entrevista com o director de laboratório percebeu que queriam homens, recorda. “Perguntou-me se era casada ou solteira. Eu pensei que queriam alguém com maturidade, responsabilidade e disse, muito depressa, sou solteira mas vou já casar.” Não era a resposta que queriam: “‘E se tiver um filho? Não poderá acompanhar o projecto’, disse-me. Eu garanti-lhe que não queria filhos nos próximos tempos.” Então, recebeu um projecto para fazer em três semanas, queriam ver como o desenvolvia. “Entreguei o relatório e contrataram-me.”

Durante esses dois anos ajudou a dar vida à “grande visão” do engenheiro João Talone (na altura presidente do Conselho de Administração) de transformação tecnológica da fábrica: a transição entre o processo de fermentação clássico para o futuro. Durante dois anos realizaram-se ensaios e estudos até encontrarem a “geometria de tanques óptima” para desenvolver uma fermentação que não se distinguisse da do processo clássico e que se aplicaria na ampliação prevista da fábrica. A cilindro-cónica foi a escolhida e a CUFP tornou-se uma das pioneiras no processo, mesmo entre os grandes grupos internacionais. 

Vamos caminhando pelos bastidores, que Cristina Gonçalves vai reconhecendo. Uma área que era “toda de engenharia” e agora alberga o call center; uma das linhas de enchimento (eram três, agora são seis); o antigo gabinete, quando já era chefe de produção, que agora é uma antessala da Casa da Cerveja.

Antes de aí chegar, e tendo sido convidada a ficar na empresa terminado o projecto inicial, andou dez anos entre laboratórios, na qualidade e investigação — “quando dividiram o departamento provisoriamente dirigi o controlo de qualidade”. Até que sentiu que precisava de mudar. Perguntaram-lhe para onde queria ir: para a produção. “Talvez por ser açoriana [de São Miguel], não gosto de meios pequenos. Na produção teria grandes volumes, grande dimensão, grande equipa.” A direcção estava com certo receio de a apresentar, ia chefiar um grupo de cerca de 50 homens e era das mais jovens. “Fui falar com o chefe do sector de produção de mosto. Perguntei-lhe: ‘O que me diz de ter uma chefe mulher?’ Ele, muito diplomático, responde: ‘Senhora doutora, acho que estava muito bem na qualidade’. E porquê? ‘As mulheres são um bocadinho mais ‘miudinhas’. Vamos ver, disse-lhe.” “Foram excepcionais”, conclui.

Nos laboratórios, agora todos reunidos no mesmo edifício, detém-se diante da instalação-piloto, onde se testam novos produtos e processos de fabrico. Através da parede de vidro descreve o que vê como se nunca daqui tivesse saído. As saudações são constantes. Muitos começaram a trabalhar com ela. Uns falam-lhe do laboratório, “agora muito diferente”, outros do facto de haver “muitas mulheres agora”.

Finalmente entramos na Casa da Cerveja, espaço que reconstrói a história da Unicer e do seu produto mais emblemático. No hall, as matérias-primas expostas — destaque para a cascata de água — levam Cristina a recordar-se de um projecto emblemático da sua passagem pela administração executiva, a sua “quarta fase” na empresa. O desafio era criar uma rede com universidades e produtores para desenvolver e produzir uma cevada dística pura nacional, que melhor se adequasse à produção cervejeira e dinamizasse o mercado nacional. O projecto Cevalte foi o seleccionado e acabou por levar à instalação de uma minimalteria aqui em Leça do Balio, para testes, por onde passa a visita da Casa da Cerveja. Cristina deslumbra-se com a sala “dourada”, feita de garrafas Super Bock fundidas; contudo, são as fotografias, as medalhas, os documentos que verdadeiramente a interessam. Nada, porém, como a antiga sala de fabrico, caldeiras de cobre em sala envidraçada com vista para a Via Norte. “Esta era a minha sala. Só falta a central de comandos.”

Já era a chefe de produção, tinha-se tornado mestre cervejeira. Passou por Copenhaga em 1982 para fazer um curso de master brewer. Eram só homens. “Quando cheguei, tinham ofertas: uma gravata e um isqueiro. Achei piada. Eles desculparam-se.” Porém, o destino quase obrigatório era Louvain, “era a escola daqui” — aliás, anualmente, vinha um professor de topo dessa universidade para consultoria. E também aí os homens eram a regra: no seu grupo, em 1983/84, além dela estavam duas chinesas, também da área produção, mas como ela enviadas por uma fábrica, e uma belga. “O professor disse-lhe: ‘O que está aqui a fazer? Não vai ter nada na fábrica’”.

Ainda hoje, diz, na Bélgica, há fábricas onde não entram mulheres, sobretudo as que estão ligadas a mosteiros. Por tudo isto, diz que “Portugal às vezes surpreende”, embora reconheça a sorte de ter “encontrado pessoas abertas, capazes de apostar”. O que não evitou ter sentido sempre que tinha de fazer mais. “Cheguei a estar 36 horas seguidas na fábrica. É preciso, se não for assim não nos aceitam.” Hoje em dia tudo mudou, “há muitas mulheres na produção”. Quem diria que até ao século XIV a cerveja era fabricada por mulheres? “A mulher fazia o pão e este e a cerveja andavam a par. Tinham a mesma matéria-prima, os cereais.” Na Noruega, aliás, ainda é tradição as mulheres fazerem as suas cervejas.

“Todos os cervejeiros pensam em fazer a sua cerveja. Quando saí...”. O bichinho da cerveja continuava, mas Cristina sempre achou que devia qualquer coisa à sua filha (também tem um filho, mais novo). “Acompanhei-a sempre, mas achei que se calhar não lhe tinha dado toda a disponibilidade. Por isso, pensava, quando ela tiver filhos, vou compensá-la.” Assim fez. “Felizmente já era crescidinha”, brinca.

No entanto, o marido sentiu que precisava de qualquer coisa e até surgiu um projecto de uma brasserie nos Açores e ela foi fazer contactos, visitar micro-brewers. O projecto não avançou. Assim, a única cerveja que fez fora da Unicer foi com um livro que o marido lhe trouxe de Londres, com kit e tudo. Uma brincadeira: “Não sabia à minha cerveja.”

A sua cerveja é a Super Bock, é nela que pensa quando se fala em cerveja, e foi coordenadora do projecto da Stout, ainda que já não estivesse na produção. Quando aí esteve apanhou o grande ciclo de modernização tecnológica e de aumento da procura — “tivemos que lidar com isso”. Quando saiu, para a direção de serviços técnicos, viu-se no processo de grande reorganização da Unicer, com a aglutinação de fábricas — “queríamos produzir a mesma cerveja em diferentes unidades” – enquanto a produção começava com as novas cervejas.

Não considera que haja segredos na produção da cerveja. Há é “uma boa selecção de matérias-primas, um bom processo de maltagem e a selecção de leveduras é fundamental. A Unicer tem um banco vasto e é tratado com o maior carinho”. E há um processo adequado para cada tipo. Estuda-se e ensina-se. Experimenta-se e prova-se. “Muitas vezes é a partir de uma cerveja que desenvolvemos outra. Um dos exames na Bélgica foi a partir de uma prova, reconstituir todo o processo.” Ou seja, o tipo de malte, o amargor, a espuma, o aroma, a levedura, o tipo de água.

Quando se fala de estilos de cerveja menciona a Weiss (branca), “é um tipo muito significativo, bom para aperitivo, para calor”, mas para refeições, por exemplo, prefere a clássica. “Há estilos de cerveja para várias ocasiões. E eu gosto muito de testar, dá-me muito prazer.” Fez parte do grupo de provadores da Unicer e agora prova em viagem — afinal, a cerveja antes reproduzia um local. E, então, é normal que uma cerveja na China ou na América do Sul não seja igual às da Europa, o contexto é diferente.

Quando lhe perguntamos se se sente uma pioneira, hesita. “Pioneira? No sentido de que abri caminho na Unicer a outras mulheres que desenvolveram a sua actividade na indústria cervejeira, sim. O facto de ter sido a primeira chefe de produção, de ter sido aceite pelo grupo, empenhada, com grande disponibilidade, permitiu a outras mulheres ocupar esse lugar.” O actual responsável pelos “novos líquidos” pede-lhe para ela ir provar uma nova cerveja, em preparação. Os olhos brilham. “Acho que isto foi uma grande paixão”.

À mesa com harmonizações

“Fico muito satisfeita, durante muitos anos não havia preocupação com harmonização”, nota Cristina Gonçalves quando nos sentamos à mesa na Casa da Cerveja. À nossa espera está uma refeição com harmonizações de cervejas da responsabilidade de Marta Fraga, a sommelier da casa há cerca de um ano e meio.

“Estou mais ligada ao público do que ao produto”, explica. Nos bastidores, porém, o produto também lhe enche os dias — de outra forma, como conseguiria harmonizar, orientar provas? Essas são partes importantes do seu trabalho, onde também procura “valorizar a cerveja como produto cultural milenar” à medida que faz as visitas guiadas e explica os diversos passos da produção de cervejas.

Mas, então, o menu: entrada com polvo confitado com batata doce acompanhado da Super Bock original; seguido de vitela arouquesa com arroz caldoso e espargos a combinar com Super Bock Stout; e para sobremesa crumble de maçã com requeijão e uma 1927 Bengal Amber IPA – a Selecção 1927 (o ano em que nasceu a Super Bock) é uma das várias edições limitadas que vão sendo lançadas. Provaremos ainda a 1927 Dunkel Munich com “telhas de dreches” (um subproduto da produção de cerveja, rico em fibras), um crocante finíssimo criado aqui. A ideia de Marta, afirma, “é fugir ao óbvio, ser menos convencional” e, ao mesmo tempo, fazer com que ambos os elementos “se possam elevar mutuamente”.

Super Bock: 90 anos

A 3 de Março de 1927 foi feito o pedido de registo, a 9 de Novembro foi registada: nascia a Super Bock. O aniversário da cerveja portuguesa mais vendida vai invadir o país em várias iniciativas publicitárias, mas nada melhor do que celebrá-lo com uma nova cerveja.

Será uma edição comemorativa que irá reflectir os momentos mais importantes da história da Super Bock. A saber: a garrafa será serigrafada e uma réplica da da década de 1970 (a de maior crescimento e de início da internacionalização); o slogan “sabor autêntico” estará gravado na garrafa; e esse sabor será o de uma receita nova que inclui a levedura de sempre, lúpulos especiais e uma fermentação mais prolongada.

O resultado? Dizem que “um sabor intenso de amargo suave e espuma cremosa”. Enquanto não o podemos (com)provar, fica o convite: nos próximos dias 3, 4 e 5 de Março, a Casa da Cerveja tem entrada gratuita (sujeita a marcação prévia).

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