Fugas - restaurantes e bares

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Estes bares "espelham a cultura lisboeta"

Por Mara Gonçalves

Está-se em muitos deles como em casa e isso, acreditam, é meio segredo para a longevidade. A maioria nasceu na euforia do pós 25 de Abril, outros antes disso. São casas de afectos, bares e discotecas que vêem Lisboa passar de geração em geração para se transformarem em parte do património vivo da cidade.

Tocamos à campainha. Não se ouve nem se vê vivalma, apenas o ténue reflexo das luzes acesas no interior contra o vidro da porta. Uma trepadeira sobe a fachada pitoresca, o chafariz mantém-se como “uma saudação que enternece o maior malvado”, como descreveu José Cardoso Pires no seu Lisboa: Livro de Bordo. Não há qualquer letreiro a indicar que estamos no sítio certo — sabemo-lo porque não é uma estreia. Será que ainda não abriu? Começamos a duvidar quando Luís nos recebe de sorriso cordial, colete sobre camisa branca, papillon. Ao final de tarde de uma sexta-feira, o Procópio ainda está quase vazio, mas não tardará a encher. As conversas inundam a sala ao ritmo da campainha — e ela não pára de tocar.

O Procópio foi o primeiro bar inaugurado por Luís Pinto Coelho, o decorador e gestor hoteleiro que mais tarde abriria A Paródia, o Foxtrot e o Pavilhão Chinês, imprimindo o seu cunho no conceito de uma mão cheia de outros. Estávamos em 1972 e aqui convergiam políticos, empresários, juristas, diplomatas, artistas, espiões, jornalistas. “A revolução praticamente aconteceu aqui. Era tudo a conspirar”, recorda Alice Pinto Coelho, que fundou o Procópio com o marido e gere-o desde 1974, ano em que se separaram. Jornalistas portugueses e estrangeiros, conta, faziam fila junto ao telefone para informarem as redacções do que aqui se debatia, se planeava, se segredava. Tornou-se bar de culto, uns dos primeiros espaços nocturnos em Lisboa “onde as mulheres podiam entrar”. “Vinham ao final da tarde, para beber chá, comer torradas e olhar para o bar”, recorda. Alice tem hoje 79 anos e terão sido poucas as noites em que não se sentou no último banco junto ao balcão. “Até me custa não vir cá.”

Grande parte da “fauna de mescla pouco provável” que ao longo das décadas se juntava no Procópio reunia-se em volta de uma única mesa: a Dois, escreve o antigo embaixador Francisco Seixas da Costa no livro sobre a história do Procópio, publicado em 2007. A esta hora, a segunda mesa a contar do canto diagonalmente oposto à porta (se as coordenadas não forem suficientemente precisas, pergunte ao Luís, figura de cordialidade icónica, há 20 anos na casa) está completamente cheia. Mas o grupo é bem diferente. Estão entre os 25 e os 35 anos, trabalham numa start-up portuguesa e conversam todos em inglês para que o colega lituano, director de tecnologia da empresa, os compreenda. Foi Pedro, 26 anos, que trouxe a equipa da Chic by Choice. Os pais vinham cá quando tinham a idade dele; ele veio pela primeira vez há dois meses. “Tinha gostado muito. É muito peculiar”, conta entre golos de cerveja belga. A Tadas, 30 anos, o ambiente “acolhedor” e o estilo da decoração — madeiras escuras, veludos vermelhos, candeeiros art nouveau sobre as mesas — lembram-lhe os bares antigos que frequentava em Berlim, onde viveu cinco anos. E o Foxtrot, junto à Praça das Flores, onde já tinha ido há uns tempos. Passamos por lá mais logo, pode ser? Agora subimos a Campo de Ourique para um copo n’A Paródia.

[Quando, horas mais tarde, voltarmos ao Procópio para falar com Alice, já a Mesa Dois recuperou parte do seu histórico legado, reunindo elementos do Partido Socialista, cuja sede fica a dois passos, no Largo do Rato.]

Casas de afectos

É inesperada a caixilharia vermelha que Luís Pinto Coelho escolheu para cobrir a montra d’A Paródia. Dá um ar asiático à fachada, quando o interior não podia ser mais português. Espalhadas pelas paredes da primeira sala, convivem capas da última revista lançada por Rafael Bordalo Pinheiro, que dá nome ao espaço, e dezenas de caricaturas de outra publicação satírica do início do século XX, Varões Assinalados. Quando Luís Pinto Coelho deixa o Procópio, passa a receber parte do elenco conspirativo na sua loja de antiguidades. Chamavam-lhe “o bar da PIDE”, ainda antes de ser bar, por ser “muito frequentado por elementos da polícia política que eram secretamente a favor da revolução”, conta Filipa Carlos, actual proprietária. A inauguração oficial d’A Paródia acontecia dois dias depois do 25 de Abril.

Hoje, continua a ser uma “capelinha modesta”, como a descreveu Cardoso Pires em 1997, com as suas dez mesinhas redondas comprimidas em duas pequenas salas. Sobre o balcão com tampo de mármore pousa ainda o cinzeiro que o escritor monopolizava quando ali passava. “Só podia ser usado por ele porque no final da noite gostava de saber quantos cigarros tinha fumado. E não eram poucos.” Em volta, as paredes forram-se de caixas de fósforos, que os clientes mais antigos tinham a tradição de usar como mealheiro. “Muitos deles guardavam moedas para quando lhes faltassem trocos”, conta Filipa. Quando a noite está calma, Filipa gosta de ir de mesa em mesa, dando voz aos pequenos pormenores que tecem a mística do espaço. O “génio” que foi Luís Pinto Coelho, as peripécias ali vividas, a história dos cocktails clássicos que preenchem grande parte da carta.

“Adoro este sítio. É um daqueles lugares em que instantaneamente te sentes em casa”, diz Malcom, enquanto percorre o olhar pela sala. Há dois anos, a “família portuguesa” trouxe-o à Paródia pela primeira vez. “Fiquei maravilhado”, recorda o inglês, actualmente a viver em Espanha. Desde então, sempre que vem a Portugal, “quatro ou cinco vezes por ano”, faz questão de voltar. A mesa de quatro — pai e filho britânicos, uma filipina e uma portuguesa — vai desfilando elogios ao espaço. Não tem televisão nem música alta que impeça a fruição da conversa, mantém a decoração e a qualidade dos cocktails. Desde os anos 1980 que Isobel, 58 anos, acaba sempre por pedir um Alexander. Nunca saiu defraudada. Para a portuguesa, o espaço faz parte da identidade do bairro que deixou há 20 anos. “É o meu Campo de Ourique. Sem A Paródia não tinha piada nenhuma.”

São casas de afectos. O apego que se sente à frente e atrás do balcão será característica transversal aos sete dos mais antigos espaços nocturnos de Lisboa que visitaremos. Para Filipa Carlos, é parte do segredo para a longevidade. “Nós tentamos arranjar formas para que o espírito continue, mas é o carinho que as pessoas têm pelo espaço que faz com ele se perpetue”, afirma. Para muitos clientes “não é só um bar”, é “um bocadinho uma casa”. Alguns conheceram-se ali e ali começaram a namorar, ficaram noivos, contaram ao marido que iam ser pais. Até que o filho, anos mais tarde, repete o ciclo. Por vezes, as histórias de amor começam numa mesa e acabam atrás do balcão. Como a de Filipa Carlos e Pedro Baptista, que se conheceram n’A Paródia. “Passado alguns meses começámos a namorar e muito pouco tempo depois comecei a trabalhar aqui também.” Já lá vão doze anos. Hoje, a filha mais velha do casal, de quatro anos, já vai pedindo para ir ao bar. “No outro dia, passei por cá com ela às 21h e ela ouviu a campainha, foi à porta receber uns senhores estrangeiros, levou-os até à mesa e perguntou-lhes se queriam uma água”, ri-se Filipa.

No Foxtrot, Francisco Gonçalves, 66, viu um dos filhos casar-se em pleno bar, há quatro anos. “Veio aqui a conservadora do registo civil. Foi maravilhoso, lindo”, recorda. O outro filho é desde 2009 o barman principal do espaço. “Trabalhei dez anos num banco, mas a seguir à crise de 2008 decidi vir ajudar o meu pai”, conta Hugo Gonçalves, 38 anos. O pai trabalha no Foxtrot desde 1988, é proprietário há dez anos. Hugo era ainda miúdo quando ali entrou pela primeira vez. “Lembro-me que era tudo gigante, lembro-me dos cheiros do bar, das pessoas a falar... vestiam-se melhor, as senhoras com decotes, tudo muito formal mas com um certo glamour.”

O tipo de clientes é o aspecto que mais tem mudado, conta Francisco Gonçalves. No Foxtrot, no Procópio, n’A Paródia. A faixa etária baixou muito. As classes altas que os frequentavam foram envelhecendo, afastando-se da vida nocturna. Outrora bares de eleição, os três espaços iam sendo preteridos pela movida do Bairro Alto, das Docas, de Santos, do Cais do Sodré. A noite expandiu-se e dispersou a clientela. Os mais novos procuravam o rock, a música electrónica, as drogas. Os veludos e os bibelots dos anos 1920 eram coisas de velhos. Hoje, as redes sociais dão uma ajuda, inovaram-se algumas bebidas, incluíram-se outros petiscos. A porta fechada “é meio caminho andando para a segurança” numa Lisboa “mais perigosa” e atraem cada vez mais jovens à procura de um sítio calmo onde começar a noite ou uma alternativa à confusão e à música aos berros. É fim-de-semana e os três estão apinhados. Um casal aqui, outro acolá, grupos de amigos, colegas de trabalho.

O cenário é semelhante no Cockpit, entre Roma e o Campo Pequeno. Foi clube privado dos trabalhadores da TAP até abrir-se ao público, no final dos anos 1970. Entretanto, começou a ver a vida nocturna da Alta de Lisboa descer para outros bairros, durante anos o movimento chegava para as mãos de Pedro Maurício. A esplanada veio trazer mais do dobro do lugares que se distribuem no minúsculo espaço, comprimido em cave, corredor e mezanino. Hoje trabalham ali mais quatro pessoas — e não têm mãos a medir. Uns servem às mesas, outro cozinha tapas, outro prepara bebidas. Há cinco anos “transformou-se num bar de gin” e tem mais de 100 referências penduradas em prateleiras no tecto. Quem vem aqui parar? Os que querem “fugir dos sítios mais modernos” ou procuram um “sítio mais recatado”, “muitas vezes para não serem incomodados”. Visitamos o Cockpit uma quinta e está cheio, voltamos numa sexta e entre mesas ocupadas e reservadas não cabe mais ninguém. “Volte a ligar dez minutos ou um quarto de hora antes de vir, pode ser?”

Mudar e ficar na mesma

Parar é morte certa. Mudar é desvirtuar e enterrar a história. Talvez esteja no ténue equilíbrio entre os dois o maior segredo para que a maioria nunca tenha fechado a porta. Dos sete por onde passámos, apenas o Americano esteve dois anos encerrado. José Carlos Barbosa devolveu-o ao Cais do Sodré em 2001. “É uma casa histórica. Passar aqui à porta e ver que tinha acabado era uma tristeza para muita gente. Quis tentar levantar a casa”, recorda. Aos 15 anos começou a trabalhar nos espaços geridos pela sociedade do pai, seguindo-lhe as pisadas. Em 1992 servia pequenos-almoços no British Bar, ficou muitos anos no restaurante Porto Novo. Até que veio para aqui, pela primeira vez por conta própria. “Ninguém vinha para o Cais do Sodré. Tinham medo, diziam que era perigoso.” Havia muita prostituição, de vez em quando a noite acabava em assaltos ou pancadaria.

Curiosamente, foi uma altura em que “trabalhou muito bem”. “Melhor do que agora”, quando o Cais do Sodré está mais em voga do que nunca. “São números, é gente na rua, mas eu vivo com as que estão dentro do estabelecimento.” A moda afugentou parte da clientela, gente dos teatros, do cinema, dos jornais. Quando havia karaoke, ainda não tinham entrado e já pediam a José Carlos para “cantar o Corazón Partío”, ri-se. Entretanto, um vizinho começou a queixar-se do barulho e o karaoke acabou. Hoje a noite ainda está calma. É quase 1h quando ZeTatas pega na guitarra para um concerto de covers, de Green Day a Bob Marley. As quatro mesas estão ocupadas, junto ao balcão um grupo bebe um shot ao som de Three Little Birds. Antes do concerto, Carla M., a Poeta Maldita, levanta-se de tempos a tempos para escolher a música. “A primeira vez que fui DJ foi aqui”, conta. Hoje é a familiaridade com o pessoal da casa que lhe dá acesso aos comandos da banda sonora. Começou a vir com mais frequência há cerca de três anos, pouco depois de Elvira liderar as hostes atrás do balcão. O carisma, a personalidade, a forma como a ucraniana trata os clientes são hoje cartão principal de visita do espaço. “O Americano é a Elvira”, diz convicta. E como se o destino quisesse corroborar a afirmação, um rapaz faz uma entrada triunfante, chamando por ela. “Elviiiiiraa.”

Quase em frente, o British Bar navega entre o rock de Aerosmith ou Nothing But Thieves e, quando os ânimos de um grupo britânico se agitam mais, os Of Monsters and Men sobem às colunas e ao ecrã da TV para “acalmar”. Se o Americano quase passa despercebido, entalado entre o Cais Pimenta Rosa e uma Telepizza, o British brilha de neóns e montras rasgadas para a rotunda do Cais do Sodré. A explicação, conta-se, vem do tempo em que aqui ancoravam tripulações de navios mercantes. O British “era para os marinheiros” e, por isso, as largas janelas permitiam “saber o que estavam a fazer lá dentro”. O Americano, mais escuro e recatado, era para os comandantes “virem com uma namorada ou fazer negócios”, conta José Carlos. “Não se conseguia ver quem estava cá dentro”. Ainda hoje é difícil.

Foi em 2014 que os pais de José Carlos e de Luís Manuel Bergana, os actuais proprietários do British, os deixaram “com o menino nas mãos”. O histórico bar, inaugurado em 1919, estava a ficar “muito decadente, a precisar de obras”. Fizeram uma renovação quase completa, do espaço à equipa, para “puxar o lustro à casa”. Mas sem lhe mudarem o ADN. “Nunca pensei em fazê-lo, nem posso, nem quero e, por último, os clientes matavam-me.” São “muito exigentes” — “isto é a casa deles”, diz. Há quem ainda se lembre de em miúdo ir com o avô à Rua do Arsenal buscar bacalhau e parar ali para o avô tomar uma ginger beer, que ainda hoje é feita na casa por José Francisco, funcionário ali há 45 anos. “Isto é património da cidade de Lisboa”, defende José Carlos. Foi para tentar salvaguardá-lo que candidatou os dois espaços ao programa municipal Lojas Com História. O British integrou a lista na primeira edição, o Americano entrou agora. “Tinha de tentar protegê-los antes que chegasse aqui um fundo e comprasse isto tudo. Esquecem-se que há aqui famílias e que isto tem história. E a história não se apaga com dinheiro.”

No entanto, há que ir inovando, “para o cliente ver que não queremos parar, que queremos estar sempre a evoluir”. Para todos é determinante não ficar cristalizado no tempo e ir acompanhando as tendências que façam sentido em cada conceito. Novas tapas no Cockpit, fins de tarde com concertos de saxofone no British, uma nova carta de cocktails n’A Paródia, um novo espectáculo no Finalmente. É lá que terminamos a noite.

A discoteca nasceu em 1976, seguindo os passos de outras casas de transformismo que abriram em Lisboa no pós 25 de Abril. Hoje é o único espaço de Lisboa com espectáculos de travestismo a subir ao palco 365 dias por ano. São quase 4h quando os cortinados vermelhos se abrem e o show começa. “Ya llegó el Carnaval, vamos a bailar.” Estamos em vésperas de Entrudo e hoje o espectáculo é especial para assinalar a época. Cinco artistas travesti e um bailarino vão cantando em play back vários clássicos carnavalescos. Sambam lantejoulas, saias de folhos, purpurinas e sorrisos rasgados. No final, os seis sobem a palco para entoar “Bananas, bananas”, com um cacho à Carmen Miranda sobre a cabeça das cinco transformistas. A auto-ironia e a comédia à revista portuguesa continuam enquanto Deborah Kristal, cabeça-de-cartaz desde 2000, chama a palco as melhores máscaras da noite entre a plateia.

A sala está completamente apinhada e, apesar de pequena, tem espaço para tudo. “Digo sempre que esta é a casa mais difícil de trabalhar”, conta Fernando Santos (Deborah Kristal), director artístico e estrela principal do espectáculo. Desde o início que “recebe todo o tipo de público”, do “miúdo de Chelas que vem pela primeira vez ao ministro que cá vem todos os anos”. O espectáculo muda de tempos a tempos para continuar a cativar quem cá vem com frequência, mas a linha mantém-se. “Quero que os mais novos tenham hoje a possibilidade de ver um espectáculo como os que se faziam há 20 ou 30 anos.” Mas não é fácil agradar a todos e hoje a plateia está especialmente apática. “Tudo a bater palmas, suas bichas, vá, com mais força!”

Estes sete bares por onde andámos são hoje espaços míticos da cidade, todos eles abertos há mais de 40 anos, e ajudam a contar parte da história da capital portuguesa, de como a cultura, a noite e a sociedade foram mudando. Definia às tantas Hugo Gonçalves: “São lugares que espelham a cultura lisboeta”.

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