"Na casa do meu avô [José Vicente Jorge], éramos mais de 20 à mesa, e não era inusitado o número subir para mais de 30, uma vez que era comum ter visitas."
A mesa, e tudo o que gira à volta dela, terá sido o que mais marcou a infância de Graça Pacheco Jorge em Macau, onde as receitas definem a casa de onde saem: "Cada família tem os seus segredos". Mas, com as tradições a morrerem rapidamente, decidiu que já era tempo de os segredos deixarem de os ser e pegou em tudo o que a mãe e as tias lhe ensinaram e compilou em livro, Cozinha de Macau na Casa do Meu Avô (edições Instituto Cultural de Macau, 1992). E, até 31 de Março, esses mesmos segredos podem ser provados durante a Semana Gastronómica de Macau no restaurante Bistrô & Tapas, no hotel Tryp Lisboa Oriente, no Parque das Nações.
A ideia, que conta com o alto patrocínio do Turismo de Macau, nasceu da "relação privilegiada" entre Graça Pacheco Jorge e o chef Paulo Anastácio, que coloca toda a sua técnica e experiência ao serviço das receitas exclusivas da autora. Já a experiência é reservada a quem ocupa as mesas (aconselha-se reserva), no caso da Fugas com direito a cereja: as histórias que vão sendo relatadas pela autora deste menu.
"A cozinha macaense é o resultado de muitas influências", explica a nossa anfitriã, "mas tem a particularidade de variar de família para família". Pelos portugueses, ainda no tempo das Descobertas, chegaram até Macau muitas receitas, mas já alteradas por aquilo que iam apanhando pelo caminho, sobretudo na Índia e até na Malásia. No fundo, acabaria por nascer em Macau uma cozinha de fusão séculos antes desta palavra (e conceito) entrar no dicionário gastronómico mundial.
A sua própria família, do lado materno, também é testemunha desse legado indo-português: "Antes do meu pai, o sangue português já estava diluído". O sangue, sim; mas a língua permanecia a de Camões: "Em casa do meu avô era obrigatório falar em português." Foi em casa do avô que viveu até aos 10 anos, altura em que o pai foi recolocado em Moçambique e ela obrigada a seguir o caminho da família: "Fiquei tão zangada!" Talvez por isso mantenha com Macau uma ligação tão afectiva, mesmo depois dos casinos terem invadido o pequeno território: "Está tudo totalmente diferente."
Enquanto a autora vai recuperando as memórias de uma Macau ainda sob a autoridade portuguesa, à mesa vai chegando uma amostra deste território que se espraia por apenas 30 km2 e, em simultâneo, de toda a rota dos navegadores: as entradas (3,50€, cada) incluem sopa de ovo com sagu, arroz chau-chau ("que nada tem a ver com o chinês") e chintoi aberto, uma bolinha de massa envolta em sementes de sésamo que surpreende pelo sabor aromático, ainda que discreto.
Segue-se uma amostra dos pratos de peixe, entre os quais se evidencia a cor amarela do açafrão: chutney de bacalhau, caril de peixe e camarão, gambas panadas. Qualquer uma rica em sabor e parca em picante. "A comida macaense não recorre ao picante." As propostas de peixe completam-se com um peixe mandarim e com a caldeirada à moda de Macau.
Na carne, evidencia-se a preparação dos alimentos absorvida da cultura chinesa, com pedacinhos pequeninos. A razão é simples: "A faca é um elemento agressivo para ter à mesa; em casa do meu avô eram colocadas quando havia visitas." E estas chegavam ao palacete da Rua da Penha com muita frequência. Eram coleccionadores, diplomatas, artistas, escritores atraídos sobretudo pela colecção de arte chinesa de mais de dez mil peças que o chefe da Repartição do Expediente Sínico fazia crescer a pensar na Exposição do Mundo Português.
Enquanto Graça Pacheco Jorge nos fala da colecção do avô, desfilam à nossa frente três propostas: uma tenra e doce carne de porco com ananás, carne de vaca abrilhantada por pimentos e minchi com cogumelos orelhas de rato. Para outros gostos, há ainda a galinha excelente e a cabidela de adê (pato).
Hoje, 145 anos após o nascimento do avô, já não há nem colecção nem palacete para receber visitas. E, actualmente, Graça Pacheco Jorge só regressa a Macau para matar saudades. Mas acabou por trazer Macau consigo para Portugal e agora partilha esse bocadinho cheio de sabores e aromas orientais.