Foi uma imagem incomum: a atravessar o Mercado dos Lavradores, já a tarde estava a dar lugar à noite, grupos com trajes mais ou menos formais (apesar do “casual” do convite). As bancas ainda mantinham algum do colorido exótico que continua a deslumbrar quem o visita mas chegava-se ao fundo e a Praça do Peixe “pedia” ingresso. “Não me pode arranjar um bilhete?”, brinca uma das vendedoras, com a cumplicidade sorridente de uma compradora.
Durante o dia se calhar escapara-lhes, mas vários chefs, alguns estrelas Michelin, já tinham andado a circular entre as bancas, a descobrir ou a redescobrir os produtos do terroir madeirense. Afinal, eles seriam a matéria-prima deste Madeira Terroir, o evento que marcou o início de mais uma Rota das Estrelas. E, então, eis que a noite chegava e a Praça do Peixe do Mercado dos Lavradores se iluminava numa constelação de estrelas. “O terroir... as cozinhas começam aí, com produtos fortes. E daí vem o mercado, é o coração de tudo”, diz Benoît Sinthon (Il Gallo d’ Oro, do hotel The Cliff Bay, Funchal, duas estrelas Michelin), um dos co-anfitriões da noite.
E este coração tem batidas ainda surpreendentes para alguns. “Encontrámos aqui muitos produtos que desconhecíamos, frutas e vegetais, sobretudo. E as pessoas por detrás, muito carinhosas”, confessa o chef Javier Olleros, do galego Culler de Pau (uma estrela Michelin), que tem precisamente “um conceito de natureza e proximidade orgânica” que o fez sentir-se “muito cómodo” no mercado. Da Madeira, saltaram para uma pequena esfera de vidro atum e os ingredientes do molho (coentros, alcaparras), num conjunto verde e vermelho escuro (do atum) e no topo uma flor. Outro galego, outra estrela Michelin, outra estreia, a mesma surpresa de Pepe Solla (Casa Solla). “As verduras e frutas são incríveis. Não imaginava a qualidade e variedade da ilha”, diz, enquanto vai abrindo as ostras que comprou nessa manhã — “entrou atum hoje no hotel, mas já não tive tempo” —, a que se juntam depois aguachile, coentros, milho, cebolinho e maracujá.
Claro que já entrámos no coração da cozinha, no coração do Funchal, onde 36 “destinos” gastronómicos estavam à espera de serem descobertos. Mais de 20 chefs (vindos de Portugal, Espanha, França e Brasil), mais pasteleiros, sommeliers, produtores de vinho, barmen, charcutaria italiana, pão francês, ervas aromáticas, chocolates, champanhe, chá e infusões, café — e não enumeramos tudo. As bancas de mármore mais habituadas a peixe estão agora decoradas por estátuas de gelo e cobertas de toalhas brancas onde se alinham os recipientes mais ou menos originais das propostas gastronómicas, ou mesmo fogões — já lá iremos —, os ingredientes, os talheres. Ainda temos tempo de ver algumas preparações: Vítor Matos (Antiqvvm, uma estrela Michelin, Porto) mostra-nos a flor de sabugueiro (cheiro intenso), a enguia fumada já cortada, os pinhões tostados, a espuma de beterraba que se irão juntar num foie gras com Vinho da Madeira (um Malvasia, cinco anos), o único produto do terroir local que trouxe.
Mais à frente, Olivier Barbarin (Château d’ Audrieu, França) já tem na banca várias taças, está na fase do empratamento da sua “jóia”. Chegou à espera de atum, conta, mas “o Benoît disse que nesta altura ainda não há muito”. O pargo foi eleito, mas, entretanto, chegou atum fresco. “Então misturei.” O resultado é um tártaro com várias ervas, creme de alho “muito suave” e estaladiço em cima: um “anel” de pasteleiro em cima, pepino fresco dentro e uma flor no topo. “Tem de ser divertido.”
Foi Paulo Morais (Rabo d’ Pêxe, Lisboa) e a sua equipa quem desmanchou o atum de 120 quilos que chegou inesperadamente, “o primeiro da época”. “Seccionámos e de certa maneira preparámos para toda a gente”, diz o sushiman, já com um prato preparado montado de várias peças de sashimi, nigiris e sushi. Não há-de sobrar nada. Foi um dos produtos madeirenses mais utilizados, juntamente com as ervas aromáticas e a fruta (na pastelaria). Mas houve quem trouxesse carabineiro (Diego Guerrero, do Dstage, em Madrid, fez um ceviche adaptado — folha de bananeira como suporte), ou gamba da costa (Henrique Sá Pessoa, do Alma, Lisboa).
Até um dos anfitriões, Luís Pestana (do William, o restaurante do Belmond Reid’s Palace, Funchal), teve um convidado de fora, o salmão norueguês. “Tudo o resto é madeirense”: as ovas de espada apresentadas como caviar e “produtos mais banais”, como o inhame, a batata-doce (que fazia uma espécie de bolacha-base) e o maracujá (gel). Já Benoît Sinthon decidiu deixar o Inverno para trás para apresentar um “prato Primavera”, cheio de cor e elegante. Truta crocante, caviar, molho de agrião, “porque há muito aqui”, creme quase espuma com funcho e pepino “para refrescar”.
Quente foi o prato que uma das estreantes apresentou, pedido especial de Benoît. Noélia (do Noélia & Jerónimo, Tavira) confessou-se “surpreendida e muito feliz” pelo convite. “O Benoît esteve no restaurante, gostou muito e disse-me ‘És muito boa a cozinhar, tem de ser algo com sabor’”, conta. Então, escolheu um pargo para uma cataplana (“Não podia deixar o Algarve para trás” — também trouxe salicórnia) com batata-doce e amêijoas. Receio (infundado, provar-se-ia depois): “As cataplanas são muito sensíveis e o fogo é muito alto”.
À volta dos tachos também esteve Paula Peliteiro (Srª. Peliteiro, Esposende), também ela chef de um restaurante “familiar”, segunda presença na rota, primeira a solo. “Falaram-me no polvo quentinho.” Então veio o prato premium do restaurante (receita da mãe), desta feita com laranja e a batata mínima com casca. “Perfeito para a Madeira, terra e mar.”
O programa prometia performances e elas apareceram — até uma banda de swing deu música. Um começo suave para a “surpresa” que havia de encerrar a noite, com o casal (sempre irreverente) David e Noelle (do Aphrodite, Nice). Uma cortina negra a subir, música a acompanhar (Heads Will Roll, Yeah Yeah Yeahs versão remix) e estamos quase num club, onde os DJ são os chefs, acompanhados por Benoît. Na mesa de misturas, recipientes de nitrogénio líquido libertavam fumo bastante cénico: neles se mergulhavam os coulis de maracujá. No prato, como um suspiro, um golpe de colher abria a casca que se formava — e, então, derramava-se o líquido doce. E quantas variedades de maracujá há na Madeira? Terroir mais terroir (quase) não há.
A Fugas viajou a convite da Rota das Estrelas