A sueca Terese Cedergren, fundadora do Foodfolder, site dedicado a gastronomia e vinhos, nunca tinha estado em Portugal. Por isso, antes de vir falou com amigos que já conheciam o país para saber o que iria encontrar. Disseram-lhe que ia experimentar óptimos produtos mas que tivesse cuidado porque “os portugueses afogam tudo em azeite”. Teresa só chegou há dois dias, mas já se ri do conselho. Até agora tem gostado muito do que provou e ainda não viu nada “afogado em azeite”.
Veio conhecer o Alentejo durante quatro dias, integrada num grupo de jornalistas — com a polaca Olga Badowska, da revista online Mlask, e Georges Desrues, francês a viver no Norte de Itália e que trabalha como freelance também na área de gastronomia e vinhos — acompanhados pelo chef português Nuno Mendes, que se tornou famoso em Londres com o restaurante O Viajante e que em 2015 abriu a portuguesa Taberna do Mercado, em Spitafields. A Fugas juntou-se a eles durante um dia.
Encontramo-nos a meio da manhã na herdade de São Lourenço do Barrocal, perto de Reguengos. Estacionamos o carro e vemos, logo à entrada, José Júlio Vintém, o chef consultor do restaurante do Barrocal, a apanhar beldroegas para o nosso almoço. Quer mostrar aos recém-chegados o que é a cozinha alentejana e a forma como integra as ervas e plantas da região.
Mas antes disso temos uma prova de vinhos. A mesa está já montada junto ao antigo forno comunitário do Barrocal, que foi no passado, antes de ser transformada em hotel de cinco estrelas (mas que continua a parecer um monte rural), uma herdade enorme, com muitos dos trabalhadores a viver aqui.
Ocupada depois do 25 de Abril, foi mais tarde devolvida à família proprietária, mas, entretanto, a produção agrícola entrara em declínio e o projecto turístico surgiu como o mais natural. Quiseram, contudo, recuperar a produção de vinho — e é o resultado desse trabalho, com a enóloga Susana Esteban, que vamos conhecer.
Explicam-nos que aqui é feita a pisa a pé, dentro de lagares, e Georgess, o jornalista francês, quer perceber melhor como é o processo. Os vinhos são, para já, um branco, um tinto e um reserva, com mistura de castas portuguesas e estrangeiras. Mas iniciaram também já a produção de um espumante rosé e vão apostar em alguns monovarietais, trabalhando separadamente as diferentes castas.
O pão de centeio artesanal que é feito na aldeia vizinha do Baldio encanta os jornalistas estrangeiros e Nuno Mendes, que não se cansa de elogiar este sabor à antiga. Prova-se pão com azeite e azeitonas locais e fala-se de vinhos. Maria Amélia Vaz da Silva, da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana, explica que a casta Alicante Bouschet “foi trazida para a região há uns 200 anos e tornou-se uma das mais usadas, ao contrário do que acontece hoje em França, onde quase não se encontra”. Nuno nota o “toque de azeitona” que encontra nesta casta que integra os tintos do Barrocal.
Olga, a jornalista polaca, diz que no seu país só recentemente as pessoas começaram a provar vinho e que “ainda são bastante tímidas” nas escolhas que fazem — “têm medo dos vinhos franceses e procuram mais os do Novo Mundo”. Do que se faz em Portugal conhecem muito pouco, embora o grupo Jerónimo Martins, com a sua cadeia de distribuição na Polónia, a Biedronka, ajude a despertar mais o interesse pelos vinhos portugueses.
Na adega do Barrocal há também uma talha, para uma experiência com este tipo de vinho feito à moda antiga — esse vai ser, aliás, um dos temas deste dia no programa de Nuno Mendes e dos jornalistas estrangeiros. Ainda se há-de aprender muito sobre o vinho de talha feito no Alentejo. Mas, para já, é hora de visitar a horta com José Júlio Vintém e saber o que há para o almoço.
São Lourenço do Barrocal só abriu como hotel há cerca de um ano, por isso a horta ainda está em crescimento. No entanto, há já muitos produtos, cuidadosamente organizados em talhões onde cada tipo de legume está identificado por uma placa. Há, primeiro, um pomar com diversas árvores de fruto, entre figueiras, pereiras, macieiras, pessegueiros, todas ainda pequenas. Ao fundo, dizem-nos, será um galinheiro, para que a herdade tenha a sua própria produção de ovos.
À frente temos as alfaces, as ervilhas, as cenouras, as couves, o alho-francês, os nabos, os espinafres. José Júlio apanha umas ervilhas muito jovens e dá-nos a provar. “Vens aqui todos os dias buscar coisas?”, pergunta Nuno, enquanto arranca do solo uma pequena cenoura, que limpa e trinca. Mas o que mais entusiasma toda a gente são as ervas selvagens, que José Júlio vai identificando e oferecendo a quem quiser provar — espargos das silvas, urtigas, azedas, cardos. Nuno entusiasma-se com os sabores amargos e ácidos das ervas que lhe trazem memórias de infância.
Nuno Mendes escreve sobre Portugal
Esta viagem é para o chef português baseado em Londres ao mesmo tempo o final de um projecto e o início de outro. No dia 5 de Outubro vai lançar o livro em que trabalhou nos últimos tempos, uma centena de receitas e várias histórias sobre a cozinha de Lisboa. Esse trabalho fê-lo viajar até Portugal muitas vezes e revisitar a sua infância e juventude, os cozinhados da avó, os cheiros vindos da cozinha quando se preparava o almoço ou o jantar. Diz que, a cada vez, vem aberto à descoberta e numa viagem como esta prefere até colocar-se na posição dos seus companheiros, como se visse tudo pela primeira vez.
O projecto seguinte é ainda mais ambicioso: será outro livro, mas desta vez sobre todo o Portugal. E estes dias longe da azáfama constante que é a sua vida em Londres servem precisamente para parar um pouco e fazer com que as memórias regressem. Mais à frente, Nuno pára junto a uma amendoeira e aconselha-nos a provar as amêndoas verdes. É preciso trincar o exterior, mas quando se chega ao interior é uma surpresa porque a amêndoa é ainda translúcida e gelatinosa, concentrando nesse corpo frágil um sabor muito especial.
“Vou cozinhar-vos uma sopa de peixe do rio com poejo e preparar-vos um prato de beldroegas”, anuncia José Júlio. Avançamos para o restaurante enquanto Terese nos explica como Portugal é “muito pouco conhecido” na Suécia e como o vinho português tem dificuldade em destacar-se. Conta que tinha estado numa prova cega no seu país e que tinha pontuado muito bem um vinho que veio a saber depois que era do Esporão, a herdade que o grupo visitara na véspera e onde Terese ficou impressionada também com a cozinha do chef Pedro Pena Bastos, “que parece muito simples mas na realidade não é”.
O dia de hoje é para uma experiência diferente. José Júlio quer mostrar a cozinha alentejana tradicional, mas tornando-a o mais fresca e o menos pesada possível, “um Alentejo não intrusivo”, como explica durante o almoço. Vem a tal sopa de peixe do rio com poejo, favinhas jovens com morangos, farinheira e hortelã, salada de beldroegas com queijo de Niza ralado, salada de agrião com laranja, carpaccio feito com a carne das vitelas da herdade, porco preto alentejano e uns deliciosos pastéis de massa tenra.
114 ânforas de vinho
Ninguém quer ir embora e deixar a belíssima paisagem do Barrocal, mas já estamos muito atrasados para o encontro seguinte, na Adega José de Sousa, em Reguengos. E aí também nos espera uma surpresa: o conceito de vinho de talha adquire toda uma outra expressão quando, entrando numa das adegas deste projecto que vem de 1878 e que desde 1986 pertence a José Maria da Fonseca, nos deparamos com 114 enormes ânforas de barro (a maior tem capacidade para 2100 litros) que datam do século XIX e que nunca deixaram de ser usadas.
A tradição de fazer vinho de talha foi desaparecendo dos países em que existia — é uma tradição que já vem pelo menos do tempo dos romanos —, mantendo-se viva apenas na Geórgia e no Alentejo. Agora, com o interesse que existe pelos vinhos naturais, assiste-se a um regresso da talha. O que a CVR do Alentejo — que começou a certificar vinho da talha desde 2011 — pretende quando mostra aos jornalistas estrangeiros locais como a adega José de Sousa é explicar que nesta região a talha é algo que nunca foi abandonado.
Paulo Amaral, o enólogo, apresenta os vinhos da casa — o José de Sousa, o José de Sousa Mayor e o novo Puro Talha, que tira partido, precisamente, das ânforas seculares e retoma a produção de um vinho 100% de talha, que já não se fazia desde 1998 (geralmente o vinho proveniente da talha é usado para blends e passa depois períodos, mais ou menos longos, em barricas de carvalho).
Georgess, o jornalista francês, está muito interessado no tema e confessa-nos mais tarde que não imaginava sequer que no Alentejo se produzisse vinho de talha. Bombardeia o enólogo com perguntas e tira notas sobre os detalhes do processo. “A talha dá aos vinhos uma mineralidade”, diz Paulo. “Vejam a cor do branco, é mais amarelada. A microporosidade da talha permite ao vinho uma evolução que o torna diferente.”
Na realidade, das 114 ânforas, só 50 estão em condições de serem usadas. E de 12 em 12 anos precisam de levar no interior um tratamento feito à base de cera de abelha e ervas. Cada uma delas está identificada com a assinatura do fabricante. “Esta foi feita na Aldeia do Mato, em São Pedro do Corval”, diz Paulo Amaral, explicando que a produção de ânforas começou a desaparecer por volta da década de 50 do século XX. Para vedar o vinho no interior é ainda usado um método antigo que consiste em colocar por cima azeite, que isola de forma natural, antes de a boca da ânfora ser coberta por plástico.
A adega do “senhor engenheiro”
Mas para que não se pense que o uso das ânforas é algo que existe apenas numa adega-museu, o dia acaba num dos espaços mais emblemáticos de Mourão, o restaurante Adega Velha, cujo proprietário, conhecido como “engenheiro Joaquim Bação”, faz questão de nos dar a provar o vinho de duas das suas ânforas.
“Vamos beber primeiro o da 11 e depois o da 18”, anuncia, sempre de copo na mão, enquanto, junto à nossa mesa, vai contando histórias que envolvem uma antiga namorada polaca nos anos da sua juventude, que eram também tempos de “incomensurável boémia” em Lisboa.
Estamos rodeados por ânforas da antiga taberna que aqui funcionava, e que pertenceu ao pai de Joaquim Bação, antes de este engenheiro agrónomo começar a explorar o restaurante. Na cozinha, D. Maria anda à volta de grandes tachos a preparar-nos o cozido de grão. Mas, antes disso, vem para a mesa queijo de cabra, ovos mexidos com espargos e perdiz de escabeche.
Olga conta-nos que já tinha visitado Lisboa e Sintra mas que nunca tinha estado no Alentejo e não sabia o que iria encontrar. “Diziam-me que era uma espécie de Toscana por descobrir, uma área muito grande e ainda muito autêntica.” Gostou dos queijos que provou e acha os vinhos “divertidos e fáceis de beber”, mas confessa que, até agora, quando pensava em vinhos portugueses, a região que lhe vinha imediatamente à cabeça era o Douro.
Tal como Terese, ficou entusiasmada com o trabalho de Pedro Pena Bastos no Esporão. “Gostei da simplicidade dele. Não é nada exibicionista e tem uma abordagem com grande maturidade e uma cozinha que conseguimos compreender mesmo não sendo portugueses. Tem um sentido dos sabores… e explica-nos as coisas, não nos deixa sozinhos perante a comida.” Além disso, acrescenta, “o Esporão é uma experiência completa, todo aquele espaço à volta é um cesto cheio de ideias a explorar”.
Chega à mesa o cozido de grão, primeiro apenas os legumes e o grão e por fim o prato das carnes e enchidos, que é recebido com entusiasmo por todos. Georges fica fascinado com o uso da hortelã. “É genial!”, exclama. “Faz toda a diferença.” E Nuno Mendes abana a cabeça, concordando.
O engenheiro regressa à nossa mesa e, numa animada mistura de inglês e francês, continua a contar histórias. Georges levanta-se para ir fotografar D. Maria na cozinha e ela volta para agradecer os nossos elogios. Um chef que está com um grupo brasileiro na mesa do lado reconhece Nuno Mendes e cumprimenta-o efusivamente. Já todos se riem, bem-dispostos, e sai mais uma rodada de vinho da talha. Pode ser da ânfora 11 ou da 18, não importa, senhor engenheiro.