O que fazem os cozinheiros quando lhes propõem regressar ao básico? O desafio lançado a um grupo de chefs pelo festival Sangue na Guelra — cujos resultados foram apresentados no dia 6 num simpósio nu Hub Criativo do Beato, em Lisboa — foi o de mergulharem no mais simples: o pão, o sal, o sangue, a fritura.
Três ingredientes, uma técnica, o que fazer? Divididos em quatro grupos, cada um ocupou-se de um destes temas. E quando se tem pouco, vai-se mais longe e mais fundo. Qual o papel do sangue na cozinha portuguesa? De que formas é utilizado? Porque é que tanto é desperdiçado? Até que ponto continua a haver um tabu em relação a ele?
O desafio deu-lhes a oportunidade de estudarem cada um destes assuntos. O pão, por exemplo, é o alimento mais básico. E o sal, sem o qual todos os sabores seriam diferentes? Os chefs andavam a precisar de um momento assim, que lhes permitisse pensar em conjunto, conhecerem-se melhor, trocar ideias, aprender uns com os outros. E, afinal, o que saiu daqui?
O sangue
Quando soube que tinha ficado com o grupo do sangue, Henrique Sá Pessoa teve algumas dúvidas. “Sou um rapaz da cidade, ou como se costuma dizer um ‘menino da Linha’, não tenho ligação ao campo, às matanças.” A primeira coisa que ocorreu a todos — além de Sá Pessoa (Alma), Milton Anes (Lab by Sergi Arola), Pedro Pena Bastos (Esporão) e Tiago Bonito (Casa da Calçada) — foram os enchidos de sangue e as cabidelas.
Havia no grupo — que subiu ao palco com as jalecas manchadas de sangue — pelo menos um membro, Tiago Bonito, que tinha a experiência oposta da de Sá Pessoa. “Já matei porcos, patos, frangos. Matamos sempre leitão em casa”, contou, recordando as tradições da matança e o aproveitamento do sangue, logo misturado com vinho para não coalhar.
Mas precisavam de uma ideia diferente. Foi então que Sá Pessoa se lembrou do Tulicreme. A pasta de barrar, lançada pela primeira vez em Portugal em 1964, não era exactamente famosa entre os cozinheiros mais novos, mais familiarizados com a Nutella, mas a ideia agradou. Pedro Pena Bastos explica que o assunto o interessou sobretudo pelo lado de aproveitamento de todos os produtos animais, dado que o sangue é em grande parte desperdiçado e não muito fácil de obter nos talhos.
Tiveram, então, que perceber como trabalhar o sangue para conseguir a consistência, textura e sabor certos. O resultado, que deram a provar aos participantes no simpósio do Sangue na Guelra, foram dois produtos: aquele a que chamaram Tulisangue, em que o sabor do cacau e das avelãs dominava o do sangue, o que o tornava potencialmente fácil de dar a crianças; e outro com queijo, que foi considerado demasiado salgado.
“Não é fácil arranjar sangue”, explicou Sá Pessoa. “E o que conseguimos tinha uma quantidade de sal exagerada.” Outro problema é que é preciso evitar que coagule rapidamente. Mas, no final, e depois de outras experiências como uma versão tipo manteiga de amendoim, chegaram à fórmula que lhes permitiu apresentar, com orgulho, um verdadeiro Tulisangue.
Fritura
“Queríamos fazer um óleo pensado por cozinheiros”, explicou Alexandre Silva (Loco), que liderou o grupo dedicado aos fritos. Há uma ligação importante entre a cozinha portuguesa e a fritura (basta pensarmos nos célebres peixinhos da horta que, segundo se diz, inspiraram os japoneses a criar a tempura). E foi isso que quiseram explorar Alexandre, Hugo Brito (Boi Cavalo), Tiago Feio (Leopold) e Rodrigo Castelo (Taberna Ó Balcão).
Ao contrário do que aconteceu com os outros grupos, que tinham que trabalhar um produto, aqui partia-se de uma técnica. Havia várias formas de pegar no tema. E eles avançaram por esses diferentes caminhos. Um deles foi o óleo. “Antigamente os óleos não tinham sabor”, disse Alexandre. Na experiência que fizeram, inocularam cereais com miolo de noz e sementes de girassol fermentados e fizeram uma extracção a frio. O resultado foi um óleo “muito mais complexo, com um aroma muito mais profundo”.
Outro caminho que seguiram foi o do design, neste caso partindo de uma peça de metal com motivos florais que, mergulhada num polme, serve para fazer filhoses doces — as filhós de flor. Em colaboração com o designer Manuel Neto, criaram uma peça semelhante mas estilizada. “Queríamos uma simplificação de formas”, explicou Hugo, “mas com a máxima exposição de superfície para maior crocância.”
Foram precisas várias tentativas para conseguir o que pretendiam, mas no Sangue na Guelra serviram os fritos daí resultantes, recheados com peixe frito (no óleo por eles criado) sobre um puré de escabeche, no qual o óleo serviu também para a preservação do peixe.
Pão
Do grupo do pão, a imagem mais marcante foi talvez a de José Avillez a cortar um pão que encostou ao peito, a faca a avançar a caminho do coração — uma forma que algumas pessoas têm de cortar o pão que surgiu aqui como um símbolo da ligação directa entre este alimento e a vida.
Foi à volta do grande simbolismo do pão que andaram Avillez, David Jesus (Belcanto) e o pasteleiro Carlos Fernandes (Loco), depois de Kiko Martins (O Talho, A Cevicheria, O Asiático), que tinha feito parte do grupo inicialmente, ter partido para filmagens de um programa televisivo.
“Tal como o sal, o pão está todos os dias connosco, o que torna mais difícil pensá-lo”, disse Avillez. Contou como o avô o usava como talher, para ajudar a fazer chegar a comida ao garfo. E, claro, pensaram em todas as utilizações que tem como ingrediente na gastronomia portuguesa, das açordas às migas, dos ensopados às sopas secas.
Foram, aliás, as sopas secas de Penafiel que inspiraram Carlos Fernandes, que as trouxe ao Sangue na Guelra mudando-lhes apenas a apresentação, mas mantendo a ideia base: pão embebido em caldo de carnes gordas, com açúcar, canela e hortelã, um desses pratos que cruzam o doce com o salgado e que se encontram também, por exemplo, no Norte de África.
Em Portugal, como em todo o mundo, o pão está muito ligado à ideia de partilha. Aqui, a partilha com o público do festival não aconteceu com estas sopas mas sim, no final da apresentação, com outro produto, se possível ainda mais básico do que o pão: a massa mãe nele usada.
Os três chefs despediram-se do palco distribuindo pela assistência pedacinhos de massa mãe de centeio, começada há dois meses e meio e que cada um dos presentes levou para casa, prometendo tratar dela como se a sua vida dependesse disso.
Sal
Primeira constatação que João Rodrigues (Feitoria) partilhou com o público: “O sal é o ingrediente mais usado na cozinha mas nunca é olhado como um ingrediente em si mesmo.” Está lá sempre para realçar o gosto dos outros. No entanto, nunca passa despercebido — quando está em excesso nota-se logo, quando é pouco, sentimos-lhe a falta.
O mais importante para este grupo — que incluía Hugo Brito (Boi-Cavalo), Luís Barradas (Tago’s), Manuel Maldonado (Ostraria) e Leandro Carreira (Londrino, Londres) — foi a possibilidade de “sair para a rua, viajar um pouco pelo país e conhecer pessoas que fazem um trabalho fantástico”. Foram perceber, primeiro, que tipos de sal artesanal existem em Portugal e, para isso, visitaram as salinas onde, pela acção do sol, se produz o “sal do mar”, e as minas de onde se extrai o “sal da terra” a partir da rocha — a única que existe em Portugal fica no Algarve, em Loulé; o sal de Rio Maior também vem da rocha, mas chega a nós trazido pela água que passa por ela.
Estudaram as características de cada um e dissociaram-no nos dois componentes essenciais: cloro e sódio. E, depois do trabalho de campo, juntaram-se na cozinha a desenvolver ideias. Leandro dedicou-se a ver como resultava a cura em sal de diferentes frutos. “A textura da pera ao fim de um mês e meio em sal é fascinante.” Também na mandarina, a técnica resultou numa “profundidade de sabor fantástica”.
Por seu lado, Hugo Brito tentou “curar abacaxi como se cura peixe”, numa espécie de gravlax, técnica usada por exemplo no salmão. A banana da Madeira foi igualmente objecto de experiências e surgiu a ideia de fazer uma massa deste fruto à semelhança da massa de pimentão.
Manuel Maldonado e Luís Barradas voltaram-se para outro aspecto do sal e procuraram a vida que existe no riquíssimo ecossistema que rodeia as salinas, tanto a fauna (que inclui as artémias, “muito saborosas, da família do camarão, com as quais se pode fazer uma pasta de camarão fermentada à semelhança do que se faz na Ásia), como a flora.
E, no universo da flora, Luís Barradas reencontrou muitas das coisas que sempre se habituou a ver (e comer) na sua infância em Setúbal, como o chamado funcho do mar, a salicórnia (que foi apresentada inteira e em pó) ou as salgadeiras, tudo plantas halófitas, que absorvem o sal do mar e podem ser usadas como substituto mais suave dele.
João Rodrigues trabalhou mais a cura de peixe através das algas. “Conseguem-se texturas completamente diferentes”, explicou. “Mas a minha ideia era também perceber os sabores secundários que íamos obter aqui.” Sublinhou depois como tinha sido uma experiência enriquecedora trabalhar em grupo e serem obrigados a sair das respectivas zonas de conforto.
E se já tínhamos guardado um pedaço de massa mãe como uma espécie de promessa de futuro, também o grupo do sal quis deixar um projecto a decorrer até à próxima edição do Sangue na Guelra. Por isso, e totalmente a propósito, pegaram numa guelra gigante de peixe e colocaram-na com sal numa ânfora para que fermente e se transforme em garum, o molho de vísceras de peixe que os romanos adoravam e que em Portugal se produzia em grandes quantidades, muito dele em Tróia, onde ainda se podem ver os antigos tanques onde as vísceras secavam ao sol.
Para o final, o grupo deixou um recado: se todos reduzirmos em um por cento o consumo de sal industrial e o substituirmos por sal artesanal, isso significaria 47% de aumento de vendas para quem continua a produzir este sal, muito melhor para a saúde.