Quando Bela Gil era pequena, o pai, o músico brasileiro Gilberto Gil, comia de forma diferente do resto da família. “Ele foi macrobiótico bem estrito nos anos 70 quando morava em Londres”, conta Bela numa conversa com a Fugas durante uma visita a Portugal em que veio lançar o seu livro Bela Cozinha (Casa das Letras). “A gente cresceu vendo o meu pai comer arroz integral, tofu, feijão azuki. Mas tinha a comida dele e a nossa, ele sempre foi muito respeitoso em relação às nossas vontades.”
No entanto, o exemplo do pai acabou por ter influência em Bela quando ela cresceu. “Tinha 15 anos quando comecei a praticar ioga e o meu corpo foi naturalmente rejeitando vários alimentos. Senti que eliminando o açúcar refinado, a carne vermelha, os produtos muito industrializados, o meu corpo melhorou muito, tanto física como mentalmente.”
Na escola, era vista como diferente. Porque é que a Bela não come isto?, perguntavam os colegas. “Naquele tempo não havia tanta gente a praticar esse tipo de alimentação no Brasil, mas eu tinha uma referência em casa e por isso não achava que fosse assim tão diferente.”
Aos 18 anos foi viver para Nova Iorque e, sabendo que era o único membro da família sem jeito para a música — assume que é totalmente desafinada — descobriu aí que se apaixonou pela culinária. “Não nasci com o dom da cozinha. Mas em Nova Iorque comecei a cozinhar por necessidade.” Fez o curso de Culinária Natural do Natural Gourmet Institute e em Nutrição e Ciência dos Alimentos do Hunter College e começou a dar pequenos cursos em casa, para os amigos.
Foi fácil, por isso, pensar num programa de televisão quando a oportunidade surgiu a partir de um convite do canal GMT. “Sempre fui muito tímida, nunca pensei trabalhar como comunicadora. Nem a minha família. Eles falam ‘Nossa, a Bela é um ser humano que precisa de ser estudado, a gente jamais imaginaria que ela estaria onde está hoje’.”
E onde está é com um programa de sucesso no GNT, pelo qual passaram já todas as celebridades brasileiras, desde músicos como Caetano Veloso, Gal Costa ou, naturalmente, Gilberto Gil, a chefs como o britânico Jamie Oliver ou o brasileiro Alex Atala. E, mais recentemente, um reality show, Vida Mais Bela, no qual partilha o seu dia-a-dia, com a família — o marido, João Paulo Demasi, e os filhos, Flor e Nino, mas também outros com a sua irmã, a cantora Preta Gil — enquanto vai falando sobre alimentação saudável e cozinhando várias receitas.
Quando o Bela Cozinha começou, em 2014, os brasileiros ainda não estavam muito despertos para estas questões. Mas isso foi mudando. “Dei a sorte de ter um programa em que falava sobre algo que as pessoas estavam querendo ouvir naquele momento.”
E, aproveitando o interesse que começava a crescer, Bela fez um programa que vai muito para além das receitas. “Eu costumo falar que dá para mudar o mundo através da nossa alimentação. Ela está interconectada com tudo. A primeira coisa que muda quando a gente altera a nossa alimentação é o nosso corpo, a gente passa a entender o que é bom e o que não é para nós. Muita gente diz ‘Bela, comecei a seguir as suas receitas e o meu sono melhorou, perdi 15 quilos, a minha mãe deixou de tomar remédio para a pressão.”
A saúde é a primeira preocupação. “E a estética, porque brasileiro é muito ligado em estética. Nossa! Se eu vendesse a minha alimentação dizendo que as pessoas iam emagrecer, estaria milionária.” Mas depois a coisa torna-se mais política — e para Bela este é um aspecto muito importante. “A gente tem que comer não só pelo nosso corpo mas pelo meio ambiente, pelo respeito à terra, ao produtor.”
Democratizar a alimentação saudável
Essa é uma mensagem um pouco mais difícil de passar. “As pessoas gostam da culinária como entretenimento. Eu uso uma ferramenta para falar de outros valores que a comida tem, a importância do biológico, falo da comida local, tradicional, regional, da forma como ela valoriza a nossa cultura, o nosso país, o nosso povo. E de como é um investimento na conquista da nossa independência em relação à indústria.”
Quem não sabe cozinhar, afirma Bela, “fica à mercê do que a indústria coloca na sua mesa, seja uma pizza que compra à noite quando vai para casa, seja uma lasagna congelada que esquenta no micro-ondas.” Fala com crescente entusiasmo: “Comer de maneira saudável é um acto político. Mas de uma forma global, tem que ser holisticamente saudável, uma comida que faz bem para tudo e para todos.”
No Brasil, toda a conversa sobre alimentação levanta várias outras questões. “Comer como um acto político é muito importante mas a comida só se torna um acto político quando a gente tem oportunidade de escolher o que comer. Infelizmente, no Brasil não são todas as pessoas que podem escolher o que comer. O meu trabalho é para democratizar a alimentação saudável e para que todos possam escolher o que colocar no prato. Assim a comida torna-se um acto político.”
Um exemplo de como se pode mudar o mundo através do que se come é a utilização de alguns ingredientes especiais. No livro que acaba de lançar em Portugal, Bela tem, por exemplo, uma receita de bolachas feitas com farinha de jatobá e castanhas-de-baru. No texto que a acompanha, ela explica: “Muito valorizado pelos índios, o jatobá é uma árvore do Cerrado que tem sofrido um acelerado processo de fragmentação devido à expansão urbana, agropecuária e criação de gado. […] A castanha-de-baru foi outra descoberta incrível. Típica do Cerrado, tem um sabor agradável, que lembra um pouco o do amendoim.”
Por paradoxal que pareça, consumir estes alimentos é fazer com que eles continuem a existir. “Há uma cooperativa de mulheres que quebram a castanha-de-baru, são chamadas de quebradeiras. Consumindo essa castanha, a gente ajuda a que elas possam permanecer no campo de maneira justa.”
Bela é muitas vezes acusada de “fazer comida para a elite”. Mas ela vê as coisas de outra maneira: “A gente está precisamente tentando democratizar, para que todo o mundo tenha acesso. Na roça come-se bem, mas as pessoas mais tradicionais chegam na cidade e param de comer aipim, mandioca, fubá de milho e passam a comer o pão francês da padaria e a beber refrigerantes. É uma maneira de dizer ‘Eu não sou mais aquela pessoa da roça’.”
Mas, sublinha, “comida não é só o que está na prateleira do supermercado, é muito mais”. O grande problema é que “a indústria joga duro, é desleal, é muito covarde na maneira como impõe os seus produtos na mesa dos brasileiros”. Muita coisa começou já a mudar, mas “só vão mudar mesmo quando tiver uma imposição de política pública, quando for proibido vender refrigerante na escola, quando for proibido dar produtos com excesso de açúcar para menores de 18 anos”.
Acredita que muitas vezes a elite pode ajudar. “Agora houve uma onda de interesse pela tapioca no Brasil. Achei isso muito bom porque as pessoas olham para outras, que acham mais refinadas, e vêem-nas a comer tapioca e pensam ‘Também vou comer’”.
É isso também que a motiva a expor a sua vida, apesar das polémicas que isso por vezes provoca. A mais recente foi desencadeada por uma foto que colocou no Instagram, onde tem um milhão de seguidores, na qual aparece em top less, de costas, abraçada à filha, Flor. Na legenda, escreveu: “Vantagem de ir à praia na Europa”. A foto teve 37 mil likes e 200 comentários.
“Para a gente é supernormal”, diz, com um grande sorriso. “A minha vida profissional e pessoal estão interligadas. Não me restrinjo muito e não me sinto invadida. Quando você é feliz e quer o bem do outro, quando a sua experiência é muito positiva, você quer partilhar. Partilho porque quero um mundo melhor. Não vou parar de fazer isso.”