Inovação é uma das palavras frequentemente usadas para descrever a cozinha de Diego Muñoz. Outra é ousadia (um ceviche de maçã é suficiente como exemplo? E merengues de anchovas? Bolachas com camarão?). Mas aquilo que o chef peruano vai trazer para o Bairro do Avillez é a tradição — o verdadeiro espírito de uma Cantina Peruana.
Passou 15 anos a correr mundo e entrou em algumas das melhores cozinhas: em Paris, no Le Grand Véfour; em Espanha, no Mugaritz e no el bulli de Ferran Adrià, aquele que será uma das suas maiores influências (e onde ficou amigo de José Avillez); na Austrália, já a chefiar a cozinha do Bilson’s (e nomeado melhor chef do ano 2011). Até que, entre 2012 e 2016, parou em casa e tomou as rédeas do Astrid & Gastón, que há muito era famoso, mas que durante esse tempo saltou do 42.º para o 14.º lugar da lista World’s 50 Best Restaurants e se tornou no melhor restaurante de toda a América Latina.
Já no Astrid & Gastón o que Diego Muñoz gostava de fazer era olhar para o país e servi-lo à mesa. Usando os produtos, claro, mas também histórias. Por exemplo, fez um menu sobre a imigração de um italiano da Ligúria para Lima. Outro sobre memórias, que tinha como ponto de partida a campainha da escola a anunciar o final das aulas, passando pelos doces com que as crianças se deliciavam antes de chegar a casa e pelas comidas que as avós as obrigavam a engolir.
Talvez tenha sido alguma inquietação — ou apenas o seu espírito livre — que levou Muñoz a sair novamente de Lima em 2016, mas desta vez condensando num único ano viagens a 20 países, da Europa à Ásia, passando pelo Médio Oriente. “Levámos o Peru — a nossa herança e os nossos produtos — para um castelo na Áustria, um congresso nórdico na Noruega, uma refeição para refugiados na Alemanha, um novo estrela Michelin no coração de Genebra, e outros restaurantes em Viena, Lisboa [com Avillez], Copenhaga, Barcelona, Nova Iorque, Panamá, Helsínquia, Moscovo, Miami, Macau, Zuhai e Telavive, desafiando a ameaça do jet-lag e contando apenas com a linguagem da cozinha quando as outras formas de comunicação não eram fiáveis”, escreveu. O New York Times apontou-o então como um dos quatro chefs nómadas que devíamos seguir.
Este ano tomou a decisão de abrandar, mas mesmo assim abriu o 1111 Peruvian Bistro, em Miami; tornou-se chef executivo do comboio de luxo sul-americano Belmond Andean Explorer e agora abriu a Cantina Peruana no Bairro do Avillez.
É lá que nos encontramos, primeiro numa conversa à mesa, bem ordenada, depois numa volta pela cozinha no meio da azáfama que é uma cozinha, a seguir à mesa novamente, com alguns pratos e a companhia do seu “grande amigo José”. Bate tudo certo, porque como o próprio Muñoz começa por explicar “o conceito de cantina é este: um lugar onde as pessoas se reúnem para conversar e onde se resgatam e degustam receitas tradicionais”.
Ao longo da entrevista serão várias as vezes em que o chef fala de tradição, porque o que pretendeu foi precisamente trazê-la para a sua Cantina Peruana. “Mas demos-lhes o nosso estilo, com o José [Avillez] e o Yuri Errera, chef de cozinha, que está comigo desde 2009.”
Traz para Portugal um “respeito pelas origens, sem mudar muito, mas aperfeiçoando a técnica com um grande produto português, que é um luxo ter à mão”. “O José abriu as portas da sua casa e também de Lisboa, entregou-nos as chaves da cidade, e partilhou isso: o grande produto português.” Facilita estar num Bairro onde a máquina está montada. “É um luxo porque nos cruzamos com muitas operações de êxito aqui. Permite-nos ver como manipulam os produtos portugueses, e aprender a expressar a gastronomia peruana dentro deste mundo gastronómico português, do José... O mar português é muito bom. Mas também teremos o porco ibérico, os vegetais, as frutas.”
Algumas coisas virão mesmo do Peru. “Criámos uma logística para conseguirmos trazer produtos peruanos frescos. O mais importante são os ajís [pimentos picantes], que é o mais sensível. Encontrámos vários distribuidores na Europa e temos a sorte de ter ajís frescos.” Alguns são mais fáceis de transportar porque são secos ao sol, como o ají panca (encarnado) e o mirasol (amarelo), que “é a coluna vertebral da gastronomia peruana”.
Não basta trazer ajís
Nos últimos anos têm-se multiplicado os restaurantes de comida peruana em todo o mundo — em parte porque a estratégia do Peru de “vender” a sua gastronomia passa por apoiar os seus “embaixadores”, neste caso, os chefs. “A gastronomia peruana é fácil de entender, é muito saborosa”, explica Muñoz.
Mas não basta trazer os ajís e a quinoa. “É preciso uma adaptação. Desde o sal! Em todos os países o sal é diferente. Vocês usam o sal marinho, nós o sal de mina ou sal-gema. Temos uma salina muito famosa em Cuzco, um lugar sagrado dos incas, onde há oito mil anos já o colhiam. Vem do fundo da montanha e é seco em talhos ao sol na época seca. Eu corro por esse sal! É bastante sulfúrico, não tem tanto iodo, como o de mar. Muito pouca gente presta atenção ao sal, mas é muito importante.” Conta um episódio passado em 2016 em Zuhai (território chinês que faz fronteira com Macau). “Incluí o sal na minha lista de pedidos. Demoraram três dias a perceber o que eu queria e a conseguir trazer. Ali ninguém cozinha com sal, usam soja fermentada, ou glutamato... Mas lá conseguiram. Só que quando não se está habituado, a sensação é muito intensa!”
Sal, acidez e picante é uma trilogia quase sagrada na gastronomia peruana, embora coexista “de forma muito equilibrada”. Mas, ainda assim, terá de sofrer reajustes quando se pisa outro chão. “Fui com o José Avillez a um monte de restaurantes em Lima e ele dizia-me: ‘Este ceviche é demasiado ácido para o público português’, ou ‘Este é muito picante’. Fizemos muitas provas nos últimos dois meses para encontrar o equilíbrio certo. A gastronomia tem que conversar com o público. Um cozinheiro não pode chegar e dizer: ‘Vou cozinhar como eu acho que as coisas são e as pessoas têm que me entender’. É ao contrário. Temos que compreender o público e levá-lo para o nosso território.”
A fusão — mais ou menos acentuada — faz parte do ADN de muitas gastronomias. Mas no caso peruano é mesmo uma das suas principais características. “Há uma cultura de muitos anos do Peru antigo, que dominava sobretudo as montanhas, até chegarem os espanhóis com a sua influência árabe, que se infiltraram, e houve um encontro cultural que revolucionou a gastronomia”, conta Muñoz. “A seguir chegaram os africanos, que também deram o seu contributo, os japoneses, os chineses, os italianos. A gastronomia latino-americana é muito original, milenar, mas com muitas referências de outros locais, que não se separaram nem sectorizaram, mas antes se misturaram.”
Um exemplo? “As gastronomias da montanha e do mar são diferenciadas mas juntam-se. Um ceviche, que para ti poderia ser um prato tipicamente da costa, também é feito na serra, com a mesma base, a mesma quantidade de acidez, mas com um feijão seco, o tarwi [em vez de peixe]. É muito amargo porque tem muita saponina, que é uma defesa natural contra os insectos, e as pessoas deixam-no a lavar no rio durante duas semanas.”
Então o que é um ceviche? A definição vem realmente com peixe, apesar das variações possíveis: “O ceviche antigo peruano era apenas sal, peixe fresco e ají; chegaram os espanhóis e acrescentaram o sumo de lima, ou limão, e cebola. Um ceviche purista só tem estes cinco ingredientes e muito amor, porque estes cinco ingredientes têm que ser o que de melhor existe.”
A ideia de trazer a gastronomia peruana para o Bairro “fez parte do projecto inicial, mas depois quisemos abrir e ver como tudo corria antes de decidir”, conta Avillez. “Gosto de pensar que temos no andar de baixo uma representação do melhor que há na cozinha portuguesa, num estilo mais criativo: desde a taberna com petiscos e pequenos pratos a um olhar para o início do século passado, ali no Beco”, afirma.
Há alguns pontos de contacto entre as duas gastronomias: “É uma cozinha que se compara com a nossa pelo sabor intenso e uma simplicidade dos produtos e das confecções. O lombo salteado é parecido com o nosso pica-pau. Mesmo as empanadas [são parecidas com] as nossas empadas, com técnicas de confecção diferentes porque as empanadas são fritas, mas reconhecem-se sabores. Usamos muito os coentros, que na cozinha peruana são utilizados de maneira um bocadinho diferente: estão na base de muitas preparações do leite de tigre, nós usamos mais para finalizar.”
Mas não é tanto pelas semelhanças que a Cantina se instalou no Bairro. “Achei que deveria haver um olhar sobre o mundo, e, neste caso, sobre o mundo peruano. O Peru é um dos países que tem ele próprio essas influências todas.”
Para além da gastronomia pré-colonização, e do que esta depois transformou, há uma forte influência trazida pela vaga de imigração chinesa e japonesa de finais do século XIX e início do século XX, criando as cozinhas chifa e nikkei, respectivamente.
A carta foi dividida como “uma miniviagem através do país, geográfica e culturalmente”, que termina na “costa, serra e selva” com as sobremesas criadas pela confluência entre as culturas inca e espanhola (há, por exemplo, um gelado de lúcuma, um fruto dos Andes, e um torrão de anona).
Começamos pelo princípio: “Com a costa vem o mundo frio, com toda a versão de ceviches e tiraditos [peixe cru fatiado].” O peixe é preparado na sala, à vista de todos. Há um “ceviche de gambas da costa” onde fica bem clara a tal valorização dos produtos do mar português de que falava Muñoz.
Entramos na cozinha para seguir viagem. “Aqui temos o mundo das brasas: das ruas de Lima vem uma confecção com influência africana que se tornou um prato de nocturno. As senhoras assavam coração de boi, com molho de ají panca, em fogo de lenha. Com esta inspiração fizemos um frango com influência japonesa, polvo, e porco ibérico.”
Depois, com o próprio conceito de cantina vem o mundo das frituras. “Incluímos alguns produtos do mar, para além de batata recheada com rabo de boi, e as empanadas, muito típicas também.” Segue-se para a montanha, ou seja, para o mundo andino, “que deixou produtos muito importantes para a humanidade, como as batatas e a quinoa. Com um milho de grão gigante que é muito popular fiz um prato que lembra a viagem de comboio pela serra: quando vamos de Cuzco a Machu Picchu aparecem sempre senhoras a oferecer este milho com queijo. Aqui fazemos com queijo português.”
Yuri Errera está junto ao wok, que tem água a correr à volta dos bicos para que a bancada não fique quente de mais. Ainda assim, soltam-se chamas bem altas quando junta a gordura ao lombo de vaca que está a fritar. “Tem que ser muito rápido. A carne é muito delicada e o fogo está muito forte. O importante é o smokiness — põe um pouco mais de azeite, Yuri. Temos aqui cebola roxa, tomate fresco e amarillo fresco. Molho de soja, molho de ostra — põe um pouco mais — e caldo de carne. Agora reduz, texturiza com farinha de milho diluída em água e termina com coentros frescos e spring onion. Tradicionalmente servimos com batatas fritas e arroz. Aqui também.” Este lombo salteado do mundo do wok é o prato mais caro da carta (dez euros). “Isto encontras em qualquer restaurante peruano do mundo. Vamos para a mesa?”
O glossário de Diego Muñoz
Aeropuerto
Receita que envolve uma combinação tradicional de arroz chaufa (arroz frito) e noodles salteados no wok. Segundo a tradição crioula, diz-se de um arroz “onde tudo pode aterrar”.
Anticucho
Diz-se de uma espetada ou tapa original dos Andes, que era tradicionalmente preparada pelos escravos africanos, que utilizavam as miudezas de carne bovina deixadas pelos fazendeiros espanhóis. O clássico das ruas da costa faz-se com o coração de boi, em grelhas improvisadas, com carvão vegetal.
Ají de galinha
Prato típico da costa peruana, que consiste numa base cremosa de ají amarelo, frango desfiado, pão e leite, entre outros ingredientes.
Chaufa
Arroz frito chinês, característico dos Tusán, com influências peruanas.
Char siu
Prato de porco assado, ao estilo cantonês, de cor vermelha característica resultante dos condimentos utilizados. Aqui [na Cantina Peruana], usamos pancetta cozinhada a vácuo e depois caramelizada com especiarias em forno quente.
Ceviche
Prato típico dos países latino-americanos do litoral continental e que é património cultural do Peru. A base geralmente consiste em peixe fresco “cozido” em limão. Antes da chegada dos espanhóis, os antigos peruanos comiam o peixe com sal e ají. Com a miscigenação cultural, foram introduzidas a cebola roxa e a lima. Antigamente, o peixe era deixado a macerar toda a noite, agora, é servido logo após ter entrado em contacto com o limão.
Empanada
Massa de pão ou folhada, recheada com carne ou preparados doces, frita ou cozinhada no forno, típica dos países de herança espanhola.
Manjar Blanco
Doce tradicional popularizado durante o período do Vice-Reino do Peru (divisão administrativa da Espanha na América do Sul), com variantes regionais dentro da América do Sul como o doce de leite ou o arequipe (a variante colombiana).
Leite de tigre
É o sumo resultante do ceviche, ao qual se atribuem propriedades energéticas. Pode servir-se como preparação final, numa taça ou copo, com pedaços de peixe.
Molho anticuchera
Molho tradicional peruano que consiste numa marinada ácida com vinagre, ají panca e orégãos.
Molho chalaca
Picado crioulo (designado como molho), feito com um tipo de corte específico, usado para cobrir o mexilhão servido na sua concha, um prato chamado choritos a la chalaca.
Molho criolla
Cebola, tomate, ají gota-de-limão, vinagre e limão, picados com um tipo de corte tradicional, dando a forma de penas aos ingredientes.
Molho huancaína
Molho de queijo fresco, ají amarelo e leite fresco, típico de Lima.
Tiradito
Prato claramente resultante da influência japonesa no ceviche peruano, em que o peixe é cortado em fatias finas, tal como no sashimi. Normalmente, o peixe é disposto no prato e coberto com leite de tigre (há muitas variedades).