Fugas - restaurantes e bares

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O alimento que é gesto e poesia

Por Alexandra Prado Coelho

Ver Patrícia Gabriel cozinhar é beneficiarmos de um tempo suspenso. Os alimentos são transformados, essa transformação é um processo e um processo é tempo.

A cozinha da casa de Patrícia, em Lisboa, fica numa cave, mas a luz do sol entra exuberante (é uma das palavras que ela gosta de usar) pela enorme janela, semifiltrada pelas plantas que crescem no pequeno jardim. De vez em quando, ela sai até lá fora e volta com folhas de cheiros, também eles exuberantes, florais, adocicados, verdes, picantes.

Deixamos o tempo passar e ela vai construindo os pratos, como se houvesse algures uma ordem natural das coisas e só fosse preciso deixar que cada peça, cada alimento, encontre o seu lugar entre os outros, um lugar que só ele pode preencher.

A cozinha é isto, no fundo: equilíbrios. Patrícia cozinha, mas faz mais do que isso, mostra-nos a poesia que há na criação de numa refeição. É difícil explicar o que ela faz porque não se encaixa em nada que conheçamos. É um espaço novo que ela vai criando.

workshops (de cozinha tradicional portuguesa) e jantares para quatro pessoas (da cozinha dela) nesta casa-na-cave-com-jardim (para saber mais informações haverá em breve uma página online chamada Alimento). Houve uma tese do mestrado de Ciências Gastronómicas que assumiu a forma de um jantar n’O Apartamento, em Lisboa, para o qual fez até um disco de vinil de chocolate que tocava Amália. E houve uma passagem por Lyon para uma instalação gastronómica no Festival Nuits Sonores.

Mais recentemente, mostrou o seu trabalho numa performance gastronómica na Galeria Monumental, à volta do caldo verde e do pão com manteiga. E fez uma residência em Castelo Novo (Fundão) integrada no Festival de Música Antiga que se materializou numa taberna e no trabalho com produtores locais.

“O que é importante é criar um contacto, estar em contacto com as coisas”, diz, enquanto prepara um almoço na sua casa. “É estar em contacto com o que estás a comer, através da minha história.” Mas sem demasiadas explicações. “Não gosto de chegar a uma galeria de arte e de me dizerem o que tenho que ver.” Esse deve ser um processo de descoberta para cada um.

O alimento transformado pode ter a forma de um coração de filigrana feita de refogado de cebola desidratado, ou pode vir em esferas de água que capturam aromas e sabores das quatro estações; pode ser apenas água retirada de uma bilha de barro e servida num copo cuja margem foi percorrida por funcho; ou pode ser um momento, como aconteceu no jantar-tese, inspirado “pela história efémera da ilha açoriana Sabrina que, quatro meses depois de ter sido colonizada, desapareceu” (o prato era composto por pedra vulcânica, inhame, banana, manteiga fermentada, chá verde Gorreana, azeite, pipoca e caviar de pimenta da terra).

Patrícia nasceu em 1976, na Covilhã, a mãe (que pintou o quadro que se vê na fotografia) morreu quando ela tinha 14 anos, mas até essa altura deixava-a cozinhar e cozinhava ela própria muito bem. Estudou matemática, viveu nos Açores, passou pela América do Sul, e um dia, com o namorado de então, chegou à Índia, a uma casa colonial com um grande jardim, junto a um centro de ioga. Aí, sem grandes planos, começou a cozinhar para quem vinha fazer ioga. Durante dois anos usou os melhores ingredientes que conseguia encontrar e conquistou clientes fiéis.

Há nove anos regressou a Portugal e começou à procura de um caminho que passava já não pela matemática mas pela cozinha – curso na Escola de Hotelaria do Estoril, mestrado de Ciências Gastronómicas, uma passagem pelas cozinhas dos cruzeiros de luxo – que foi uma experiência de “escravatura moderna” – mais algumas viagens, um estágio em São Paulo e, sobretudo, muitas ideias e, apesar da timidez que diz ter, “uma energia aqui dentro, uma vontade de fazer tudo”.

Retira as batatas-doces que cozeu sem água numa panela de pedra-sabão e começa a combiná-las com outros elementos. “Há muita nobreza na cozinha de família, de casa, muita honra, muita dignidade. É esse contacto que gosto de transmitir.” Na Galeria Monumental, os visitantes eram recebidos por uma roda de folhas de couve no chão e, suspensas sobre elas, a bata e a faca com que a avó de Patrícia faz o caldo verde.

“Tenho um fascínio pelo gesto”, explica. “Precisamos dele para dar dignidade às coisas.” As pessoas eram depois convidadas a usar uma máquina para cortar a couve e fazerem o caldo verde. “Vemos as coisas a transformar-se, vemos a passagem do tempo. Hoje em dia não nos permitimos isso. Fazemos auto-estradas para que o caminho seja mais rápido, para termos mais tempo, mas vamos integrando cada vez mais coisas em cada momento que ficou livre.”

Aqui é preciso parar, olhar, ouvir, cheirar, provar, sentir. À sua instalação na Monumental, Patrícia chamou Partage du Sensible. “Gosto que haja alguma magia. Por isso não gosto de prefácios.” Basta estar em contacto. Algures num tempo suspenso.

Três perguntas rápidas

Há uma poesia no que comemos?

Acho que, quase sempre, a poesia é o corolário da verdade. Já viste o que é dar um golo num copo de água gelada e sentir cada curva que nos percorre cá dentro? Só pode ser poesia.

O que sonhas capturar num prato?

Diria o sonho, sou uma daydreamer. Adoro o olhar pela primeira vez, a surpresa, os impossíveis. Mas depois é uma pertença que desagua em nós. 

És tu quem transforma os alimentos ou são eles que te transformam a ti?

Acredito que somos ambos alimento.

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