Fugas - Viagens

Luís Maio

Ilha dos Cães, mais um paradoxo da cidade de Londres

Por Luís Maio

Há uma quinta com ovelhas e cavalos, um castelo de arranha-céus, mais um bairro operário cheio de projectos arrojados, prestes a irem para o galheiro. A milhas da Londres tradicional, a Ilha dos Cães é o epítome do jogo de contrastes que definem a capital inglesa no século XXI. Luís Maio quis saber para onde sopram os ventos da regeneração urbana à beira do Tamisa

A Ilha dos Cães (Isle of the Dogs) é uma das zonas mais paradoxais de Londres e, por isso mesmo, mais reveladoras do caos organizado para que caminha a capital inglesa. Tem, logo para começar, um nome esquisito que já suscitou muita especulação, sendo a explicação mais provável que o "dogs" resulte da corrupção do flamengo "dijk" (dique). Era, isso sem dúvida, uma península pantanosa onde nada crescia, até que, em finais do século XVIII, a actividade portuária se tornou tão congestionada no centro de Londres que a cidade decidiu desviá-la para jusante. 

A Ilha dos Cães veio justamente ocupar o centro nevrálgico destas Docklands, quando a península foi convertida em ilha pela construção de um canal, que criou a primeira área de docas fechadas da cidade. Daí em diante as Docklands conheceram altos e baixos, mas nunca foram um caso bem resolvido em termos urbanísticos. Finalmente a revolução dos contentores, nos anos 60, transferiu o grosso da actividade portuária para Tilbury, na foz do Tamisa. As últimas duas grandes docas da cidade, a das Índias Ocidentais e a de Millwall, ambas na ilha dos Cães, encerraram definitivamente, no início dos anos 80. 

Na mesma década nasceu o ambicioso projecto de requalificação das docas das Índias Ocidentais, doravante designadas de Canary Wharf. Foi um dos estandartes dos anos de governação de Margaret Thatcher (1979-90), sendo ainda hoje motivo de discussão pelas conotações ideológicas subjacentes. Já antes disso tinha havido ensaios de regeneração urbana em torno do outro cais da ilha, o de Millwall, mas que não resultaram numa estratégia concertada, muito menos consensual. Dependente das constantes flutuações dos mercados financeiros, o próprio avanço de Canary Wharf sofreu derrapagens e mudanças de orientação ao longo dos últimos 30 anos.

A Ilha dos Cães é hoje um enclave onde convivem cintilantes torres de escritórios e cinzentos bairros sociais, antigos armazéns convertidos em "flats" milionários e pólos industriais transformados em fantasmagóricos "não lugares". E em pleno coração deste insólito palco de contraste há ainda outra coisa completamente diferente, que é Mudchute Farm & Park. 

Burros com arranha-céus ao fundo 

A maior parte dos visitantes vai a Canary Wharf apanhar o comboio ligeiro das Docklands em direcção ao Observatório e Museus de Greenwich. Quem decidir divergir do expediente turístico e sair em Mudchute (três paragens antes de Greenwich) entra, porém, noutro mundo, em tudo igual ao das paisagens rurais inglesas. É certo que não se trata de um exemplar único, uma vez que há mais onze quintas abertas ao público na capital inglesa. A diferença é que esta cobre uma superfície de 13 hectares, é a mais agrícola da cidade e uma das maiores quintas urbanas da Europa. 

A paisagem é campestre, mas a sua origem é artificial e a própria história do lugar não é menos extraordinária. Nas vizinhanças fica a antiga doca de Millwall, cuja construção implicou a remoção de grandes quantidades de terra pantanosa, que justamente vieram a ser depositadas em Mudchute. Ninguém lhe voltou a pegar durante mais de um século, de modo que a natureza pode despontar selvagem sobre o antigo depósito. Até que, em 1974, as autoridades camarárias aprovaram uma urbanização de torres altas para o local, decisão que indignou a população local. Acabaram por ganhar a guerra e organizar-se para a criação da actual quinta e parque. 

A propriedade ocupa uma planície com leves colinas onduladas, cobertas de prados e pequenos pomares. Nos seus limites pastam livremente duas dezenas de cavalos, um par de vacas e um rebanho de ovelhas. Depois há zonas mais restritas de criação de porcos, aves e pequenos quintais, alguns dos quais particulares. Funciona como escola de equitação, quinta pedagógica e espaço de lazer, serviços complementados por um restaurante de comida caseira (chamam-lhe "cozinha"), à base de produtos frescos e orgânicos, alguns colhidos na mesma propriedade. 

Mudchute oferece vistas panorâmicas sobre Greenwich do outro lado do rio, mas mais espantosos são os quadros que compõe a norte com as ovelhas e o resto dos animais da quinta a contracenar com os arranha-céus de Canary Wharf ao fundo. Se esta última for Manhattan transplantada para Londres, então Mudchute será uma versão rural de Central Park. 

Torres envidraçadas "versus" árvores envasadas

Arranha-céus de vidro e aço rivalizam entre si, na altura e na imponência monolítica. Concorrem por sua vez com as torres que se elevam na City, o centro tradicional das finanças de Londres, de que constituem uma espécie de derivação. Meia dúzia de velhos armazéns georgianos foram poupados à razia, para serem convertidos em bares e restaurantes chiques. Contracenam com um centro comercial de cúpula transparente, cortado a meio pela estação principal de uma linha de metro aéreo, onde circulam o que mais parecem comboios-brinquedo.

Executivos apressados cruzam-se em todos os sentidos às horas de marcar o ponto, parando apenas nos sítios da moda, nos intervalos de almoço. Gente de mais baixa condição passeia no centro comercial, sobretudo aos fins-de-semana, que é quando o pessoal dos subúrbios mais gosta de peregrinar à Meca dos ricos. Excursões de famílias inteiras de asiáticos, boa parte com a prole já nascida em Inglaterra, vem também para fazer turismo ao ar livre, posando para a fotografia à beira de fontes triunfais e avenidas de árvores graúdas, apertadas dentro de vasos gigantes. 

É mais ou menos assim Canary Wharf, o parque de escritórios instalado no antigo cais das Índias Ocidentais (e de bananas da Canárias, memória que retém na designação actual). O governo de Margaret Thatcher deu luz verde, no início dos anos 80, para o que basicamente era um empreendimento norte-americano, desde os dinheiros até às empreitadas, passando pelo plano director a cargo do colectivo Skidmore, Owings & Merrill (mais conhecido por SOM) de Chicago. As primeiras torres e a linha de metro aéreo inauguraram em 1991, justamente quando eclodiu uma recessão, que hipotecou os projectos em curso. Um par de anos bastou, no entanto, para os especuladores americanos voltarem à carga e darem início à chamada segunda fase de construção, que ainda está em curso. 

A Torre Canary Wharf, também chamada One Canada Square, é a obra mais emblemática da primeira fase, até mesmo de todo o complexo. Um arranha-céus de 235 metros de altura e 50 andares é ainda hoje o prédio comercial mais alto do Reino Unido. O que lhe sobra em altura falta-lhe, porém, em fantasia, nomeadamente em comparação com torres mais recentes, como o famoso Pepino da City. De resto, o One Canada Square é uma réplica do nova-iorquino Three World Financial Centre, assinado pelo mesmo arquitecto Cesar Pelli. Da sua autoria há edifícios bem mais interessantes em Canary Wharf, em particular um conjunto de torres mais baixas ao estilo das cidades norte-americanas dos anos 50. 

Para quem não aprecia o género, que realmente conhece poucos entusiastas, Canary Wharf não passa de uma Gotham City em solo londrino. Mas se a urbanização continua bastante exangue de graça e de orgânica, não é menos certo que tem procurado mudar de fisionomia. As torres cavernosas na primeira fase deram lugar a prédios envidraçados e luminosos, enquanto as crises financeiras favoreceram o acesso aos blocos residenciais de uma população menos aperaltada e mais colorida. 

Casbah eduardiano

Antes de construírem Canary Wharf já havia gente a viver e a trabalhar ali mesmo ao lado, na freguesia de Poplar. Foi a área residencial que cresceu em torno do cais de Millwall, do qual ainda são visíveis segmentos dos altos muros defensivos em tijolo vermelho. Particularmente castigada pelas bombas nazis, Poplar viu cerca de um quarto da sua área construída reduzida a escombros no final da Segunda Grande Guerra. Havia então que proporcionar novos alojamentos para o que sempre fora uma população operária, ou seja, construir novos bairros sociais. 

Foi aí que entraram as novas filosofias da arquitectura de inspiração modernista, sendo aprovada a construção da Balfron Tower de 37 andares, da autoria do arquitecto húngaro Erno Golfinger (nome de família depois usado por Ian Fleming para um dos mais famosos 007). É hoje ainda um objecto alienígena, que parece ter sido desenhado de propósito para torturar os residentes e já na altura ninguém gostava dele, tirando o próprio Goldfinger que escolheu lá viver. Entretanto os arquitectos ingleses procuravam soluções alternativas de construção social e assim nasceu o movimento New Town, ensaiado pelo ideólogo Frederick Gibberd em Poplar, com uma espécie de anexo ao Festival of Britain de 1951.

Em vez de construir em altura, Gibberd propôs criar uma urbanização auto-suficiente, incluindo tudo aquilo que requer uma comunidade, desde escolas a zonas comerciais, passando por pubs, em figurinos de compromisso com a arquitectura tradicional inglesa. Hoje a urbanização designada de Landbury Estate continua a parecer mais um laboratório que um lugar para viver, sobretudo a praça bordejada de vivendas eduardinas, plantadas sobre arcadas típicas de um mercado magrebino. Quem julgar que isto é o máximo em termos de experimentalismo residencial deve, contudo, dar um salto aos Robin Hood Gardens, meia dúzia de quarteiros mais à frente. A proposta do casal Alison e Peter Smithson de construir "ruas no céu" soava porventura apelativa em 1972, mas hoje lembra um pesadelo esquisito de Le Corbusier, até porque os longos corredores de betão à vista são sobretudo habitados por Bengalis, que os recriaram à imagem dos subúrbios asiáticos. 

Estes elefantes brancos terão os dias contados, a começar pelos Robin Hood Gardens, condenado à demolição, inclusive pela mesquita local. Não deixam, porém, de constituir uma montra única da arquitectura modernista, sobretudo quando convivem com igrejas Neo-Renascentistas, piscinas Arte Nova e, mais recente, um centro cultural todo envidraçado do mesmo David Adjaye que tem um Centro de Arte Africana prometido para Lisboa. Equacione-se a alucinante diversidade arquitectónica de Poplar com as torres orwelianas de Canary Wharf e as pastagens de Mudchute, cruzem-se os executivos do parque de escritórios, os bengalis dos bairros sociais, mais os jovens agricultores da quinta à beira do Tamisa e imagine-se o que poderá ser o futuro da Ilha dos Cães.

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