Toulouse é feita de tijolo e o seu tom pode variar, mas nunca em excesso. Afinal toda a cidade é laranja, vermelha, rosa, e é essa a grande imagem que levamos daqui. Não será por acaso que lhe chamam La Ville Rose (Cidade Rosa). É a principal metrópole da região dos Pirenéus Médios, no sudoeste de França, mesmo encostada a Espanha.
Aqui não há pedra. Há o rio Garona e dele sai a matéria-prima para todos estes tijolos. É o que contam aos turistas. Mas a Ville Rose nem sempre assumiu a sua cor com orgulho. Taparam-se e destaparam-se fachadas, até se demoliram edifícios - e nisso já não se pôde voltar atrás.
No século XIX quiseram fazê-la "respirar" e construíram jardins, alargaram avenidas. Na rua d"Alsace-Lorraine até há um cheirinho a Paris - os edifícios são em pedra clara, numa tentativa de imitar a opulência e o requinte dos da capital. Mas Toulouse não é uma rua. Mal partimos à descoberta de outros lugares, regressamos ao tijolo, às ruas escuras - em Toulouse, há muita luz nas praças, nos jardins, nas avenidas mais largas. Mas os tijolos matam a claridade nas ruas mais estreitas.
Esta também é a cidade das violetas. Em Fevereiro há um festival dedicado a estas flores - Les Journées Violette. Durante o resto do ano, é possível visitar o barco Maison de la Violette: um barco-casa no Canal du Midi de cor violeta. No interior há exposições e uma loja com as tais lembranças feitas com (ou sobre) esta planta.
No mercado Victor Hugo
Mas Toulouse e os Pirenéus Médios não são apenas isto, e calcorrear a cidade e visitar os seus museus pode tornar-se redutor quando queremos conhecer uma cidade. "É impensável viajar sem ir ver o que são aqueles mercados e aquelas cores, sem viajar através dos sabores e dos produtos de uma cultura", diz a especialista em gastronomia cultural Maria Proença, autora do livro Sabores do Mundo, publicado pelo Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural. "Dá-nos a oportunidade de conhecer melhor os produtos, os queijos, os temperos" - nota Maria Proença - e é "também importante para perceber as práticas e os hábitos daquelas pessoas, as relações entre quem compra e quem vende".
Foi para conhecer Toulouse no seu quotidiano mais genuíno que escolhemos fazer um roteiro através dos seus mercados, para conhecer a base da sua gastronomia, cientes de que se trata de uma das regiões mais marcantes neste domínio - é a terra do foie gras e do cassoulet.
7h45. É manhã de domingo e o tempo está fresco para o que se esperava de um dia de Verão. Caminhamos em direcção ao mercado Victor Hugo, o mais reputado de Toulouse, que fica numa praça com o mesmo nome. E, mal dobramos a esquina, vemos que não é feito de tijolo. Existe há mais de um século, mas foi remodelado no final dos anos 1950, quando passou a parque de estacionamento em altura, mantendo-se o mercado no rés-do-chão. É diferente de tudo o que é a cidade, e choca mesmo no meio de tantos edifícios tradicionais. De um lado, é redondo, com vários pisos em espiral abertos. Do outro, é rectangular e tem bicos na fachada. A cor dominante é o cinzento.
À entrada, ainda há homens que descarregam fruta de uma carrinha e a dispõem em cestos de vime. Vendem-na mesmo aqui, junto à entrada. E há mais à volta do mercado. Nenhuma fruta custa menos do que três euros por quilo. O espaço interior está reservado para os talhos, as charcutarias, as peixarias, as queijarias, as padarias, as pastelarias, as chocolatarias - para tudo o que não for fruta e vegetais. Não se vem a este mercado pelos frescos. O peixe e o marisco são os produtos que mais gente atrai.
Entramos. E descobrimos que há todo um mundo fervilhante dentro do edifício cinzento. Joseph Vincent anda numa correria. Vai de uma ponta à outra do mercado, de bandeja na mão. É um dos empregados dos cafés no interior. Servem águas, cafés... Se ficarmos cinco ou dez minutos parados numa das artérias centrais do mercado, vemo-los passar várias vezes. Sempre apressados, sempre sorridentes. Cumprimentam este e aquele, sorriem-nos, mas sempre naquele corre-corre. Servem o pequeno-almoço aos clientes, que são os empregados ou proprietários das lojas. E são mesmo lojas, onde tudo está disposto com o cuidado e o requinte que nos habituamos a ver neste país.
8h00. Por esta hora, ainda há muita gente a chegar. O mercado já abriu há quase duas horas, mas as luzes continuam a acender-se em muitas lojas. Perto de uma das entradas há um talho - um dos mais pequenos que vemos por daqui -, que passa despercebido até olharmos para o nome: Boucherie António Martins. É português? "Os meus pais, sim". De repente, o homem que corta um cordeiro em pedaços e os vai expondo passa a ter ar de português. Explica-nos que o mercado "é sempre muito movimentado, mas especialmente aos sábados".
Vamos até ao fundo de um dos corredores. Há várias bancadas repletas de peixe e de crustáceos. Na Marée Toulousaine são bastante compridas, mas os animais são tantos que parecem não caber. Os aspersores espalhados pelas bancadas borrifam regularmente água, para manter a frescura dos peixes e mariscos. Muitos ainda estão vivos. O cheiro é intenso. Só de ostras há nove espécies, de búzios quatro ou cinco. E há o peixe fresco, o congelado e o cozinhado. Tudo na mesma loja.
Os empregados vestem aventais amarelos impermeáveis e atendem os clientes, que começam a acumular-se à medida que o dia avança, mas ainda assim nunca chegam a ser tantos como ao sábado. Paul Williams é um dos empregados, ruivo, filho de uma escocesa e de um francês, mas também nascido cá. Entre o proprietário da Marée Toulousaine e os seus funcionários, Paul é o único que percebe inglês. Costuma haver turistas por aqui? "Sim. E gostam muito, mas como estão em hotéis, nunca compram nada", lamenta.
9h00. Também há as charcutarias, outro sector forte deste mercado, onde a cassoulet em frascos está sempre bem à vista. É um prato típico daqui - uma mistura de feijão, pato e salsicha -, que se vende pré-cozinhado e que basta aquecer. As salsichas de Toulouse também nunca faltam. Um empregado da Maison Garcia, uma das mais conhecidas, prepara uma travessa com presunto e vários tipos de enchidos às rodelas. São quatro ou cinco tons de vermelho. Passamos por lá meia hora depois e o mesmo empregado continua a preparar a mesma travessa.
Por esta hora, já todas as lojas abriram. Nos talhos vende-se de tudo, mesmo aquilo que não é da região, como bife de cavalo, coração ou cérebro de outros animais. E galinhas e perus, que se expõem inteiros. Há até uma regra que todos cumprem: a cabeça da ave é colocada por baixo da asa. E há pato, claro. As pessoas desta região dos Pirinéus dizem que aqui se comem todas as partes dele, como com o porco, em Portugal.
Neste mercado, tudo é bem cuidado e alinhado, correspondendo àquela imagem bem característica das lojas francesas. É algo agradavelmente estranho para quem não está habituado.
9h30. À medida que percorremos os corredores, percebemos que não faltam portugueses, de diferentes gerações, no mercado Victor Hugo. Na Casa Portuguesa, que descobrimos por acaso, porque fica escondida num dos cantos, vende-se bacalhau, feijão enlatado da Compal e cereais Estrelitas. A loja é do próprio casal que atende os clientes. Ambos nascidos em França, mas com nomes portugueses: Clemente Neves e Ana Paula Ferreira.
Pão com assinatura biológica
Jean-Marc Couffignal é proprietário de uma padaria e pastelaria neste mercado e de outra no Les Carmes, que a Fugas visitara na véspera. Nesse, trabalha a mãe. Este mercado é parecido com o Victor Hugo, mas consideravelmente mais pequeno. Existe outro ainda menor: o Cristal-Palace, na avenida de Strasbourg, de fruta e vegetais, que se diz oferecer bons preços.
Na boulangerie de Jean-Marc, uma das prateleiras está reservada a chocolates e bombons de várias formas, arrumados como numa loja gourmet. Croustade aux pommes é um doce de maçã típico de Toulouse e uma das especialidades desta casa que o proprietário garante ter fabrico próprio. Numa pequena montra há vários tipos de pão: "Este tem mel, o mais escuro tem figos", explica Jean-Marc, apontando os diferentes pães. Qual é o que vende mais? "A baguete parisiense, claro". Mas aqui vende-se também pão biológico. Esses têm um grande "B" desenhado com farinha. Ao fundo, na parede, está colado um grande símbolo verde AB, de Agriculture Biologique.
Para produtos biológicos, existe o mercado que há aos sábados na praça do Capitólio, em frente ao Capitole, o edifício onde estão os serviços administrativos municipais e a ópera. Aqui, o preço é o mesmo que o da fruta não biológica no mercado Victor Hugo.
Ainda no grande mercado há várias lojas de queijos. Uma das mais famosas é a Xavier et Betty. O balcão de vários metros de comprimento está repleto deles. Uns maiores, outros mais pequenos, mas todos diferentes - ou não fosse a França "a terra dos mil queijos". Tantos que o mais difícil é mesmo escolher, principalmente para quem não os distingue. Esta cadeia de lojas tem outra mesmo ao lado, numa das ruas em torno da praça de Victor Hugo. É à volta dela que se encontra o maior número de lojas gourmetem Toulouse.
O que há de diferente nestes mercados é que neles encontramos gente de todas as idades a fazer compras: dos mais velhos aos jovens. Toulouse é, aliás, uma cidade jovem - tem uma comunidade universitária importante. Isso percebe-se pelas lojinhas com produtos alternativos ou vintage, pela quantidade de livrarias - muitas delas especializadas, por exemplo, em banda desenhada -, de lojas de discos usados e de espaços como um salão de chá chinês, onde também há aulas de mandarim e se vendem bules, que nos aparecem em cada porta e em cada esquina.
Toulouse cumpre assim o seu lema: uma cidade que alia a tradição à modernidade.
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A saber...
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Nos mercados gourmet da Cidade Rosa de Toulouse