Uma árvore isolada, estendendo os braços numa aba larga que ensombreia uma dúzia de metros quadrados no meio da seara. Um bosque bem tratado, com árvores a espaços regulares, o ritmo dos troncos sublinhado pelos diferentes tons da casca, sinal do tempo passado desde a última retirada de cortiça. Colinas suaves que se estendem a perder de vista e onde as azinheiras convivem com os sobreiros, e também com os inúmeros porcos pretos que catam as bolotas. Ecossistemas complexos e ricos, onde estão presentes muitas espécies raras apesar de forte presença humana.
Não há um só tipo de montado - há quase tantos tipos de montado como há diferentes tipos de paisagem no Portugal de influência mediterrânica. Assim como há montados na vertente sul da serra do Gerês, tal como os encontramos nos planaltos de Mirandela. Ou à beira das estradas que sobem de Portimão para a serra de Monchique. Há montados de sobro (compostos unicamente por sobreiros) na rica lezíria do Tejo, tal como há montados de azinho (apenas com as mais rústicas azinheiras) nas terras escalavradas que fazem fronteira com Espanha além Guadiana.
Mesmo assim, a Entidade Regional de Turismo (ERT) do Alentejo quer candidatar o montado à classificação, pela UNESCO, de Património da Humanidade. Para quê? Para valorizar o que é realmente um ecossistema "único no mundo" e, por arrastamento, promover o turismo na região. Faltará o mais importante - assegurar a preservação do montado, ameaçada pela perda de rentabilidade económica e pela decadência de muitas áreas de sobreiral e azinheiral -, mas o pretexto surgiu: que tal partir à descoberta do montado alentejano?
O desafio parece fácil mas comportou uma dificuldade inicial: a da escolha. Afinal, onde é que se podem apreciar os melhores trechos desta paisagem natural? A Fugas dá-lhe quatro sugestões. Todas elas associadas a programas que permitam associar bonitos passeios em áreas de montado com outras actividades.
Pelos caminhos da lezíria
Por onde começar? Talvez pelo óbvio, pelo maior montado de sobro em mancha contínua. Até porque este enorme montado - 6500 hectares - fica às portas de Lisboa, a apenas uma meia hora de viagem.
O ponto de encontro pode ser na Ermida de São José, pouco antes de chegarmos a Porto Alto, depois de cruzarmos o Tejo vindos de Vila Franca. A pequena construção, erguida à beira da estrada - ou soerguida, pois a capela como que assenta numa base sobrelevada para evitar os danos de eventuais cheias - foi construída em meados do século XVIII, mais ou menos ao mesmo tempo que a outra ermida da Lezíria Grande, a de Alcamé, esta mais imponente e sede de uma importante romaria. E se este último nome vem do termo árabe al-khameh, termo que indiciaria a abundância de cereais, a verdade é que caminhamos por terras que nesses séculos eram designadas por al-jazirâ, nome que designa "a ilha" ou "a península" e que o correr do tempo transformou em "lezíria". O tempo, porém, não apagou ainda os traços da "ilha", pois estes terrenos chãos, imaculadamente planos, da Lezíria Grande são ainda hoje limitados pelos braços do Tejo e do Sorraia.
Temos pois de, no final da recta do Cabo, transpor uma vala e, já em Porto Alto, virar à direita, em direcção a Alcochete para, logo a seguir, tomar um caminho à esquerda em direcção à coudelaria da Companhia das Lezírias. Mal o fazemos, entramos num montado muito cuidado onde é fácil distinguir os números que, pintados no tronco das árvores, registam o ano em que foi tirada a cortiça. Vemos muitos "noves" (de 2009) pintados em troncos escuros mas o que procuramos são os "zeros" (de 2010) que assinalam a passagem recente dos tiradores e nos assinalariam o descortiçamento recente. Encontrá-los-emos já perto da Baracha, numa zona onde a presença de manadas de cavalos lusitanos nos assinala a proximidade da coudelaria.
Aqui o montado pouco tem de comum com a imagem clássica das árvores espalhadas numa paisagem ondulada. O bosque é relativamente denso e, sobretudo, nada parece perturbar uma planura que por aqui ainda prolonga a lezíria. O toque de magia é-nos dados pelos matizes dos troncos, que variam conforme a antiguidade do descortiçamento e que, quando este ocorreu há poucas semanas ou meses, tomam cores entre o vermelho e o alaranjado que são pinceladas vibrantes num ambiente dominado pelos tons do verde-acinzentado das folhas ou amarelo-esmaecido de uma vegetação que, no final do Verão, está irremediavelmente seca.
Vale a pena percorrer devagar os caminhos que se afastam da fita de alcatrão que leva até à Coudelaria do Braço de Prata e uma boa forma de o fazer é... a cavalo. Isto é, tirando partido de uma das ofertas daquilo a que a Companhia das Lezírias chama "turismo equino". Com uma vantagem: no picadeiro encontraremos os elegantes cavalos lusitanos, expoentes modernos de uma raça que já Plínio, o Velho, celebrou como vivendo nas imensas estepes do vale do Tejo. Isto porque os cavalos lusitanos descendem da raça que tomou o nome do rio que por aqui se espraia, o Sorraia. Ou seja, estes são os descendentes daquela estirpe de equídeos cujas éguas tinham crias tão ágeis que os árabes acreditavam ser fecundadas pelo vento. Voltaremos a encontrá-los nesta nossa viagem ao montado.Em redor do Cabeção
Viemos para ver sobreiros e azinheiras mas reunimo-nos à mesa do restaurante A Palmeira. O nome não nos atrai, o modesto exterior também não, quando entramos até podemos desconfiar. Mas quando nos sentamos à mesa e passamos os olhos pela lista, as dúvidas dissipam-se: estamos mesmo num local onde tudo roda em torno na gastronomia alentejana e, nesta, coloca em lugar de honra as muitas formas de cozinhar o porco. Incluindo o muito mais saboroso porco preto. Com um prato de migas de espargos pela frente, depois de uns saborosos torresmos, voltamos a hesitar: ou temos tino naquilo a que nos abalançamos, ou as generosas doses de A Palmeira inutilizarão a tarde.
Passear em redor do Cabeção, pelos montes que se estendem entre Mora e as barragens de Montargil e do Maranhão, por terras que vão até Ponte de Sor, é passear por uma das regiões onde o montado é bem tratado e se desenvolve sobre tudo em extensos bosques. O sobreiro ainda domina, se bem que a azinheira já apareça com alguma frequência, o que é normal conforme caminhamos para o interior do país. Os solos já não têm a riqueza úbera dos terrenos da beira-Tejo, as colinas são mais marcadas e as rochas afloram à superfície com frequência.
Por estes montes compreendemos melhor o que quis dizer Vieira Natividade, o grande estudioso do sobreiro português, quando disse que este é "sóbrio, rústico, complacente, bonacheirão, vegeta em toda parte e sujeita-se, com singular e impressionante humildade, às condições mais diversas, por vezes as mais pobres". Mas isso apenas na sua área geográfica de distribuição, quase limitada à Península Ibérica. Longe destes terrenos, mesmo em condições semelhantes de solo e de clima, o sobreiro dá-se quase sempre mal, talvez por falta daquilo que aqui o rodeia: as cegonhas que avistamos ao longe, as águias e os peneireiros que por vezes nos deixam aproximar, os porcos que aproveitam cada bolota que deixam cair, talvez até destas vacas "com certificação de origem" que levaram os proprietários a vedar os terrenos e tornar mais difícil o nosso acto de deambular.
Vale a pena ir treinando o olho para aprender a distinguir os sobreiros das azinheiras, o que até é bastante fácil graças à inconfundível presença da cortiça. As duas árvores são, em tudo o resto, muito parecidas, se bem que a azinheira não atinja, por regra, portes tão majestosos como alguns sobreiros centenários. A casca da azinheira é mais escura e, se compararmos as folhas, verificamos que as tem ligeiramente mais pequenas e ainda melhor protegidas contra a perda de água durante os longos estios alentejanos. É por isso que a azinheira substitui o sobreiro nas zonas mais ásperas e onde o Verão é mais inclemente, oferecendo ao agricultor, por troca com a inexistente cortiça, uma bolota que dizem mais doce e é mais apreciada pelos porcos pretos.
Mas se fizemos do Cabeção o nosso ponto de partida, façamos também o nosso ponto de chegada e, antes de partirmos - é só uma sugestão... -, vamos até ao vizinho Fluviário de Mora, construído junto a um açude na Ribeira da Raia. É uma espécie de Oceanário em ponto pequeno e centrado na fauna dos rios, nele sendo possível observar as diferentes espécies que surgem em meio fluvial desde a nascente até à foz. Deambular por entre esturjões, trutas, sargos, raias e lontras é um bom programa - tão bom como, em alternativa, ir dar um passeio de caiaque na pequena albufeira da ribeira.
Azaruja: uma ermida, muitas fábricas
Entre Évora e Evoramonte, a velha estrada nacional corre, por vezes, quase a par com a nova auto-estrada. São duas fitas de alcatrão que serpenteiam por entre montes suaves onde a forte presença de sobreiros e azinheiros, as mais das vezes isolados, quebra a monotonia das searas que se estendem até perder de vista.
Esta é paisagem alentejana de bilhete-postal: aqui uma extensa plantação de cereal que ainda espera ser colhido, além um retalho de terra revolvida pelas máquinas, mais adiante um terreno de pousio onde avistamos ovelhas, tudo em tons de amarelo e castanho neste fim de Verão que só autoriza o verde nas árvores isoladas, de largas copas e generosas sombras, essas árvores que tantas vezes parecem preferir a dobra dos montes para nos mostrarem apenas o seu perfil, recortado contra o céu.
É isto o "montado alentejano"? Para sermos rigorosos, não. As zonas de produção de cortiça, onde domina o sobreiro, ou de pastoreio das varas de porcos, onde domina a azinheira, tendem a ser mais densamente povoadas. Nelas a produção cerealífera é secundária, ao contrário do que sucede nos montes que avistamos da estrada que nos leva até Azaruja.
Em tempos ainda não muito remotos, a Azaruja funcionava como um dos principais entrepostos de recolha e primeiro tratamento da cortiça - mas basta lá chegar para perceber que os tempos gloriosos pertencem ao passado. Ao longo da estrada que conduz ao centro da povoação alinham-se as fábricas e, nos seus pátios, acumula-se a cortiça colhida no último ano. Mas não em todas. Nalgumas - poucas - unidades, a boa arrumação da cortiça e o aprumo da pintura indicam uma actividade ainda rentável; noutras a pintura já escama nas paredes e nos muros e noutras ainda percebe-se o abandono total. Das mais de 15 unidades industriais que aqui existiram, só metade ainda funciona regularmente. O resto foi fechando, sintoma de uma decadência que alguns produtores têm associado a uma baixa dramática no preço pela cortiça.
Mas não foi para deambular entre fábricas semi-abandonadas que viemos até à Azaruja. Foi para irmos até à Ermida de Nossa Senhora do Carmo, hoje centro de um pequeno e simpático hotel rural que aproveitou as construções erguidas para acolher os peregrinos de outros tempos.
O pequeno templo barroco foi construído em redor de uma pedra pintada com a imagem da Senhora do Carmo e, por fora, é elegante sem ser especialmente notável. O segredo está lá dentro, pois guarda a maior colecção de ex-votos da Península, mais de dois mil, a maioria dos séculos XVIII e XIX, pintados sobre tela, cabedal, vidro e folha da Flandres, e que a par de outros objectos de devoção testemunham a crença antiga de que aquela especial Senhora do Carmo tinha poderosos poderes de protecção dos seus fiéis. Crença antiga e moderna: todos os anos, pelo 10 de Junho, os antigos combatentes da Azaruja juntam-se aqui para uma missa, pois a Guerra Colonial não cobrou nenhuma vida na povoação.
Os ex-votos cobrem por completo as paredes do pequeno tempo e, quando nos abrem as portas dos seus bastidores, descobrimos que o hábito das promessas se mantém, agora corporizado por fitas coloridas e, sobretudo, por velas antropomórficas. Tal como encontramos tranças de cabelo humano cortado na esperança de um milagre da "senhora", um tipo de doação cuja exposição é sempre tocante e perturbadora.
Visitada a ermida, acomodados num dos confortáveis quartos, talvez apeteça então seguir até à piscina biológica para nos espreguiçarmos numa cadeira enquanto esperamos pela última luz do dia. Com chaparros ao fundo.
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Montado, património da Humanidade?