As paredes estão pintadas de cor-de-rosa e azul-bebé e foram descascadas pelo tempo. A estrada é interminável e cravejada de solavancos onde se escondem homens com espadas do comprimento de um braço, mulheres que equilibram na cabeça bacias com toneladas de roupa garrida e crianças que saem debaixo das pedras. Há peixes com asas, serpentes lentas e tímidas e cavalos brancos que saltam para a Boca do Inferno e saem a mais de quatro mil quilómetros de distância. Prova-se o melhor chocolate do mundo, pescase à linha, inventam-se brinquedos e dança-se como se não houvesse amanhã. São Tomé podia ser uma história de Lewis Carroll, um país das maravilhas. É tão pequeno que há quem diga que não existe.
Para encontrar São Tomé no mapa também é preciso optar entre dois comprimidos (Mephaquine ou Malarone, venha o diabo e escolha), encolher para passar por uma toca (aeroporto?) e seguir as dicas de um local, que só não é um coelho branco porque em São Tomé os ponteiros dos relógios não saem disparados. Em São Tomé os relógios, como tudo, arrastam-se ao sabor das altas temperaturas. Se à chegada estranhamos a expressão “leve-leve”, horas depois ela passa a fazer parte do nosso ritmo e dos nossos poros.
Leve-leve não se explica. Leve-leve é ir fazendo. É rachar um cacau maduro (como a faixa amarela da bandeira nacional) e sorver os seus gomos com sabor a iogurte, é montar uma espada de pirata com três peças de bambu, é passar na ribeira Afonso e parar, é fazer piruetas e mortais encarpados na areia escura da praia das Sete Ondas (esconde conchas que são verdadeiras peças de ourives), é ter um “cumprimento longo” e secreto com o Albertino e aprender que o número sete é mágico. Se o país, a ilha, o pontinho, aparecessem no globo terrestre, lá estariam sete distritos, sete cidades e sete qualidades de banana. “É um bom número para um jogador de futebol”.
País valioso
São Tomé é o país imaginário onde chove sempre à hora marcada (às cinco em ponto), onde os lugares mais inóspitos têm nomes de sentimentos (Fraternidade, Esperança, Perseverança, Solidariedade, Ilusão, Caridade e Saudade), as pessoas têm nomes de descobridores, os frutos não têm nomes de frutos e as plantas, com nomes de coisas, têm que vir com o respectivo manual de instruções.
O país é como a sala de cinema que ganhou o nome do poeta Marcelo da Veiga: é único e só funciona às vezes e à velocidade do arranca-não-arranca. Leve-leve. É como um maço de dobras (moeda local) que ameaça desintegrar-se de tão velho e cansado. É um país tão valioso e tão abandonado como as peças que compõem o museu da Fortaleza de S. Sebastião, a ventoinha manual, o serviço inglês, o Rafael Bordallo Pinheiro, os instrumentos de vudu...
Como em qualquer conto de fadas, também São Tomé tem as suas pragas medonhas. Uma é a malária, que vitima indiscriminadamente e afasta do arquipélago investidores e turistas. A outra é a sida, para a qual, como antídoto, não há mais do que algumas pinturas murais e preservativos gratuitos nos locais mais civilizados da ilha. A terceira é a corrupção, que delapida os recursos de todos em nome de uns poucos.
Na Roça Rio do Ouro, José Francisco “Equador”, de Miguel Sousa Tavares, bem preso debaixo do braço enquanto recorda as visitas de estudo da Mocidade Portuguesa descreve a sua terra como “um verde muito complicado”, um santuário que os portugueses descobriram (ao que se julga) inabitado em 1470-71 e que só largaram a 12 de Julho de 1975, após uma longa história de colonização. José Francisco é um dos muitos que encolhe os ombros quando se fala de São Tomé na sua versão galinha dos ovos de ouro: fértil primeiro; depois esventrada.
À vista, destapadas, ficaram as roças, autênticos castelos com vista privilegiada sobre o Atlântico, assim como a resistente língua portuguesa e a arquitectura colonial, maltratada como uma bola de trapos, como os destroços na baía a que foi dado o nome da fazendeira Ana Chaves.
Descobrir São Tomé ainda é perderse em São Tomé. Na floresta primitiva Obô, nos cheiros intensos do mercado, na fervilhante postura de táxis ferrugentos e amarelos ou no Estádio Municipal 12 de Julho durante um delirante Sporting Praia Cruz-Oquel del Rei. Desconcentramo-nos à sombra de um castanheiro da Índia com uma cerveja Crioula à mão e nas vielas escuras que conduzem à discoteca Dolores, “local de diversão, não de confusão” onde reinam os ritmos parados da “tarraxinha” (“nem ar circula”) e os mais frenéticos kuduristas (é perguntar pelo Márcio Vera Cruz).
E perdemo-nos com as pessoas, as verdadeiras atracções de São Tomé, os miúdos com pose de estrelas de cinema (não pode haver um genérico sem o nome Eliseu Burindá), os adeptos apaixonados, o táxi do Vává, os tecidos da Nery, o safu assado da Preciosa, as teorias do Moisés Lima e do Américo, as preces de Nancy (30 Ave-Marias para o sol não desaparecer), a técnica apurada de Adeler Euclides (o mais ágil a abrir amêndoas e a comer compota açucarinha) e a lábia de Moreno Simpático Zeferino, 17 anos, surfista, cozinheiro, caçador, futebolista, 12 palmadas aos seis anos no primeiro dia de aulas por andar atrás das meninas e uma vontade gigante de ser o futuro primeiro ministro de São Tomé.
São Tomé é como o vinho de palma a fermentar numa garrafa de plástico cravada numa palmeira: de manhã é doce, agora é forte. É como a relva, curta e fofa. É como o Palácio do Orgulho, como a grade das sanzalas a anunciar as roças. É um puzzle tão grande como o dos quilos de roupa a corar na berma da estrada. É como percorrer as prateleiras do supermercado à luz de uma lanterna.
É como envergonhar a folha “não me toques” ou descobrir o segredo da árvore das patacas. É confundir as flores com as cortinas rosa choque das barracas. São as fontes a cada cem metros, as petisqueiras a cada cinquenta, os caçadores de macacos e morcegos e a lagoa que engoliu a Amélia, perdida de amores. É negociar uma moto vermelha cromada e estimada para dar a volta à ilha (“400 mil, 300 mil, ok agora a sério”), reabastecer nas Almas e traçar o percurso Loja das Maravilhas-Pneus de Ocasião-Quinta Amor ao Trabalho. É descer a Avenida das Nações Unidas, virar à esquerda na Independência e espreguiçar-se na praia do Micondo. É terminar o dia sem saber bem o que significa “stress kê kuá”. E despedir-se do Albertino com um cumprimento longo e secreto.
Jardim botânico: Enciclopédia temática
Há ramos que transpiram canela, folhas amareladas de eucalipto que cheiram a limão verde e troncos de árvore apelidados de “quebra machado”. São Tomé conta cerca de 800 plantas recenseadas 120 das quais endémicas e o Jardim Botânico da ilha, que é o verdadeiro jardim botânico, é uma enciclopédia temática, uma farmácia, uma galeria de arte. A rosa de porcelana, as begónias gigantes e os bicos de papagaio (macho ou fêmea?) são as mais vistosas, mas o jardim vive sobretudo dos segredos, das mezinhas, das receitas caseiras de matabala e das portas secretas, da pose pavão da bananeira leque, do dentífrico macabali, do pão de sangue, do pau sabão, do rabo-de-gato e dos jardins suspenso de orquídeas.
Como ir
A TAP tem um voo semanal Lisboa-São Tomé à quinta-feira (23h35-05h35) e o regresso à sexta (07h05-13h05). O valor da viagem é de 815 euros, já com taxas.
A Soltrópico sugere vários pacotes promocionais para oito dias que incluem seguro, transporte aeroporto/hotel/aeroporto e estadia (sete noites) em hotéis de duas (preços a rondar os mil euros) a cinco estrelas (cerca de 1400 euros por pessoa em quarto duplo).
Onde ficar
A personalidade do Miramar levou o realizador angolano Orlando Fortunato a escolher este hotel no centro do bairro diplomático como um dos cenários de “Bátepa”, filme em rodagem que retrata o massacre de 1953.. A uns minutos de distância, a piscina panorâmica do Pestana São Tomé, o único cinco estrelas da ilha, confunde-se com o Atlântico e é por isso mesmo um excelente sítio para pernoitar.
Antes de decidir, não esquecer: espreitar um ou dois quartos do Omali Lodge. Se o orçamento não der para tanto, há o hotel Phenicia, o Avenida e o Bigodes. Se estiver disposto a prescindir de algum conforto, a ilha é grande mas sem ar condicionado e muitas vezes sem electricidade. Rota um, interior: passa-se em Trindade, descansa-se na Roça Monte Café e na cascata de São Nicolau antes de chegar à Roça Bombaim (casa senhorial com cinco quartos sem casa de banho).
Rota dois, costa: direcção Santana, visita à Roça Água Izé, fotografias na Boca do Inferno, mergulho na Praia das Sete Ondas e chegada a São João dos Angolares, a segunda maior cidade da ilha e base da Roça de São João (serão recebidos e devidamente mimados por João Carlos Silva). Obrigatória é uma visita ao Ilhéu das Rolas, monopólio do hotel Pestana Equador a 60 quilómetros de São Tomé (com centro de mergulho, de pesca e observação de baleias de Agosto a Dezembro). Consta que nesse paraíso não há nada para fazer. A não ser seguir o rasto da flor de noiva e da flor amor-de-um-dia até à linha que separa o hemisfério Norte do hemisfério Sul. A não ser boiar na Praia Café à espera dos petiscos do Simpático (peixe vermelho e voador assado na brasa com lima e piripiri, fruta pão e carambola).
A não ser conhecer a trupe do Ratinho (estágio de dança intensivo atado às costas da mãe + treino de kuduro e de kizomba diário na areia da praia = dançarino invejável), da Canequinha e do Michael Jackson, dar uns passos de “semba” e “funaná” e concordar... “é bem fácil”.
Onde comer
Façam o favor de cozinhar em qualquer lugar. E de comer em qualquer lugar. A comida de São Tomé, como costuma dizer o cozinheiro João Carlos Silva, “é simples e barata para alimentar todo o mundo”. É bom comer no mato, é bom comer na praia, é bom comer junto à placa caída Anambô, é bom comer na cascata São Nicolau.
Façam o favor de inventar. Há meia dúzia de privilegiados que podem atracar em São João dos Angolares, jantar na “roça com os tachos” à luz de vela e saborear um qualquer prato com uma “lágrima de limão” e ingredientes especiais (“um sorriso e um beijo”). Cá vai há muito mais, mas não somos cruéis. Entradas: bocadinhos de atum frito com molho de beringela, morcela frita com abacaxi, peixinhos da horta com gengibre e quadradinhos de frango com molho de café. Pratos principais: o calulu do João, as pataniscas de atum, o peixe fumado com óleo de palma e a salada rosa. Pode repetir. Façam o favor de voar mais longe. Há peixe fumado no Restaurante Filomar e calulu de frango no Paraíso dos Grelhados. Há barracuda no remodelado Celvas (Celeste e Vasco fazem as honras da casa e convidam a pernoitar; já agora, perguntem pelo Faustino) e um sumo de sapsap no Café e Companhia, o espaço mais cosmopolita da ilha (gerido pelo português Francisco Vassalo), uma antiga torrefacção de café onde há snack internacional, animação cultural nas noites de quinta-feira e até “wireless” (sempre que há luz).
É indispensável lamber os dedos depois de um almoço clandestino na Praia Café (Ilhéu das Rolas) e riscar as sete qualidades de banana (preta, ouro, roxa, Gros Michel, maçã, pão e anã). Outras especialidades no templo perdido: macaco, morcego e papagaio (sem cabeça).
Informações
A vacina da febre-amarela deixou de ser obrigatória para os cidadãos europeus , anunciou esta semana o governo são-tomense, mas aconselháveis são a consulta do viajante e a profilaxia da malária, por muitos pesadelos e contra-indicações que isso possa arrastar. Água só engarrafada. Gelo, saladas e fruta já cortada pesarão na consciência de cada um.
O passaporte (com validade superior a seis meses) é obrigatório. A embaixada de São Tomé em Portugal pede uma fotografia tipo passe e emite o visto em quatro dias úteis (39 euros) ou em 24 horas (49 euros).
Da bagagem devem constar o repelente de insectos, o protector solar ou bronzeador (dependendo dos objectivos), uma máquina fotográfica e uma lanterna para aventuras noctívagas e idas ao supermercado. Há cortes de electricidade quase diários sem aviso prévio.
O clima é equatorial, quente e húmido, com temperaturas médias anuais que variam entre os 22 e os 30 graus (água tipo chá morno regulada pelos 28 graus). As tempestades tropicais acontecem entre Outubro e Maio, mas qualquer altura é uma boa altura para visitar este paraíso.
O periclitante governo são-tomense ameaça adoptar uma moeda estável, mas para já vigora a dobra (1 euro equivale a 20 mil dobras).
O grupo Pestana e restantes operadores disponibilizam uma completa rede de transportes na ilha e inter-ilhas. Se decidir avançar por conta própria, alugue um jipe, o melhor antídoto contra as estradas que sobreviveram à independência.
Aventure-se num táxi. Regateie o aluguer de uma moto. Embarque num "dongo". Alugue uma bicicleta na plana São Tomé.
Diz o provérbio local "bom coração dá dor de coração". Ignorar alguns dos anteriores avisos.
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A Fugas viajou a convite da Soltrópico