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  • Corallo em Lisboa.
    Corallo em Lisboa. Dário Cruz
  • Bettina na loja Corallo de Lisboa
    Bettina na loja Corallo de Lisboa Dário Cruz
  • Dário Cruz

Provar o verdadeiro sabor do chocolate de São Tomé e Príncipe

Por Vanessa Rato

Vanessa Rato provou pela primeira vez um chocolate 100% e, apesar dos avisos, não estava preparada para a experiência. Foi na fábrica Corallo, em São Tomé, onde reconstituiu o ciclo completo do chocolate. Meses depois, já em Lisboa, na loja da mesma família, recordou ao que sabe um de flor de sal e pimenta.

De facto, recebemos um aviso prévio, mas, mesmo assim, não estamos preparados para o que acontece quando o pequeno quadrado castanho-escuro que Niccolò nos estende com uma espátula se começa a desfazer na nossa boca.

Nos primeiros segundos, não é bom nem mau, apenas fortíssimo - uma reviravolta absolutamente inesperada dos sentidos. Os olhos dizem-nos que estamos a comer chocolate, as papilas gustativas, porém, atiram-nos para o território completamente desconhecido de uma pasta densa e vagamente adstringente que nos enche completamente a boca, nem doce nem amarga, uma neutralidade bizarra, com bouquets pontuais de aromas a abrir ao fundo. Este é o verdadeiro sabor do chocolate - um chocolate 100%, cacau puro, fermentado sem qualquer adição de açúcar ou elementos como a baunilha e a lecitina de soja, que constituem grande percentagem dos chocolates comerciais. É toda uma experiência, e Niccolò sorri quando, com a boca e a língua empastadas, pedimos um copo de água.

Estamos na fábrica da família Corallo em São Tomé. É Novembro, a faltar pouco mais de um mês para o Natal. Lá fora, o calor e a humidade abafam. Pela janela, vê-se o mar, o azul da Baía de Ana Chaves a brilhar ao sol, com os seus milhafres a voar alto em círculos e a sua dúzia de navios antigos a apodrecer parados como monumentos de ferrugem e sal.

A vivenda dos Corallo fica na marginal. Vindos do centro, a caminho do aeroporto, é avançar pelo passeio marítimo, sempre a contornar os buracos que se abrem no chão, aos nossos pés, e os enormes troncos de árvores que, desde o período colonial, se foram tornando colossais e ganhando terreno contra a cidade. Agigantaram-se, lançaram raízes ao ar e, agora, espalham à volta sombras portentosas, pequenos oásis no meio da canícula, mas também começaram a comer tudo: o betão, a calçada, o asfalto... Isto, de um lado da marginal. Do outro, aparece agora uma vivenda de muro vermelho-sangue tornada centro de aluguer de carros e motas para turistas. O muro da vivenda seguinte é azul vivo, e, depois, surge o amarelo pálido da discreta casa dos Corallo, com sebe verde, portão trancado e cão a ladrar. Niccolò aparece atrás, de t-shirt, calções de ganga e chinelos de enfiar no dedo. A fábrica fica ao fundo do pequeno jardim, apenas dois pequenos módulos rectangulares de madeira crua. É preciso descalçarmo-nos para entrar.

No total, entre as plantações e a fábrica, os chocolates e cafés Corallo empregam hoje 400 pessoas, famílias inteiras, por vezes. O engenheiro agrónomo italiano Claudio Corallo, o pai, está à frente da plantação principal, na ilha do Príncipe. Bettina, a mãe, portuguesa, responsável de marketing da marca, está normalmente na loja do Príncipe Real, em Lisboa. Aos 22 anos, Niccolò, o segundo de três filhos - os outros são Ricciarda e Amedeo -, tem assumido a liderança da pequena fábrica onde agora nos está a dar a provar as variantes mais especiais dos chocolates artesanais feitos à nossa volta por uma dúzia de mulheres de touca e bata branca que nos observam discretamente, sorriem e voltam a baixar os olhos para o que estão a fazer.

São muito raras as marcas a fabricar hoje chocolates 100%. Não é, necessariamente, um produto para comercializar à mesma escala dos restantes. Segundo Niccolò, é sobretudo para especialistas - para poderem avaliar a qualidade das favas de cacau produzido e, ao mesmo tempo, de todo o processo posterior de secagem, moagem e fermentação a que são sujeitas.

Quando, à partida, o processo de secagem é mal executado, as favas de cacau acabam por guardar humidade, criando mofo, que obriga à torrefacção a temperaturas mais altas ou tempos de torrefacção mais prolongados. Isto dá ao chocolate um sabor amargo. O que exige, como camuflagem, a desodorização, o processo conhecido como conchage, que tira os maus sabores, mas, infelizmente, também os melhores, homogeneizando o chocolate, a que, assim, depois têm que ser acrescentados perfumes doces, como o da baunilha. O processo de secagem da Corallo aproxima-se dos processos antigos, com pequenas inovações. Devido aos altos níveis de humidade do ar ao longo de todo o ano em São Tomé, as favas de cacau são aquecidas em grandes tabuleiros abertos sobre grandes fornos de lenha. Mas, antes disso, as próprias favas são especiais, de plantas antigas, recuperadas por Cláudio.

São raras, hoje, as marcas que assumem todo o processo, da plantação à comercialização, passando pela feitura e a embalagem. Cláudio deu ainda um passo adicional. Tanto do cacau como do café, optou por recuperar variedades antigas de plantas, em vez de trabalhar com híbridos modernos, geneticamente modificados, que se tornaram omnipresentes ao longo dos últimos 50 anos. São descendentes das primeiras plantas de cacau a chegar a África, por ordem de D. João VI, por volta de 1819, e variedades antigas de café Arábica, que pontua vários dos chocolates Corallo. Produzem avassaladoramente menos, claro: por exemplo, enquanto uma plantação de híbridos modernos de arábicas chega a produzir entre quatro a seis mil quilos por hectare por colheita, as plantas antigas de Arábica produzem apenas cerca de 100 quilos por hectare por colheita. Isto, sabendo que, se do cacau se faz apenas uma colheita por ano - Julho a Março -, do café fazem-se duas - Setembro a Maio - e, sobre a linha do Equador, onde fica São Tomé, uma mesma planta tem sempre flores, cerejas verdes e cerejas vermelhas, ou seja, maduras.


Em percentagens


Niccolò explica-nos isto. Haverá também de explicar que, para quem experimenta um 100% pela primeira vez, seria necessário um intervalo de um minuto até nova prova e mais um minuto até que, numa terceira tentativa conseguíssemos, talvez, por fim, sentir o perfume que os especialistas detectam à primeira: uma textura cremosa - e não pastosa - e uma explosão de aromas que nos escapa por completo. Entretanto, prepara-se para nos dar a provar uma versão suavizada do 100%, um 80%. Ou seja, 80% de cacau com 20% de açúcar.

A norma, para os 80% de outras marcas, é que o açúcar dos restantes 20% de composição seja moído. Nos chocolates Corallo o açúcar é usado inteiro, em cristal. Assim, os sabores sentem-se por separado, primeiro o cacau e, depois, o açúcar, apenas quando trincamos os cristais e estes rebentam, misturando-se com a base do chocolate num sabor único apenas no fim.

Niccolò volta a limpar a tábua de madeira para o corte de uma terceira experiência, a mais comercial - ou seja, a variante a que os leigos aderem com mais facilidade: o 73 ½%, com 26% ½% de açúcar. E ainda haveremos de viajar ao princípio de tudo, ou seja, ao cacau fresco.

Não chegamos a visitar a plantação dos Corallo no Príncipe, a maior e principal. Dia após dia, os voos de ligação entre São Tomé e o Príncipe estão cheios e os navios de carga que transportam passageiros não são especialmente seguros nem conhecidos por garantirem trazer turistas de volta a São Tomé a tempo das suas viagens de regresso a casa. Assim, acabamos por conhecer apenas a plantação da Nova Moca e Terreiro Velho, a noroeste da cidade de São Tomé.

De carro, a ilha inteira são umas quantas horas circulares, uma única estrada, espécie de circunvalação em modo equatorial, um anel incompleto com pedaços a desaparecer sob o caudal de pequenos rios mal chove, asfalto interrompido por calçada, crianças com torres de loiça à cabeça a avançar entre aldeias pelas bermas, adolescentes a pedalar arduamente em bicicletas de madeira e duas únicas constantes: o mar azul de um lado e uma muralha de verde do outro.

Palmeiras, coqueiros, bananeiras, mangueiras, fruta-pão, jacas, tudo junto, a subir ao céu numa malha apertada, entretecida por fetos, lianas, musgo. E cá em baixo, mais perto do chão e ao nível dos nossos olhos, mal começamos a virar para o centro da ilha, cacaueiros e cafeeiros.

As plantações Nova Moca e Terreiro Velho ficam a caminho do centro montanhoso de São Tomé, onde se mantém a floresta original, um santuário natural intocado.

É manhã cedo, mas o sol já vai alto e o calor abafa. Quando o provamos, no terreno, entre plantas e frutos maduros, o sabor do cacau fresco surge quase tão inesperado como o de um chocolate 100%, mas ao contrário. Lá ao fundo, como último sabor, está qualquer coisa como o sabor do cacau em pó, mas primeiro está a surpreendente frescura da polpa branca raiada a rosa pálido do fruto. O sumo escorre mal a grossa e dura casca amarela é partida, depois aparece uma pirâmide de favos. O mais parecido será, talvez, a anona - o sabor e a textura também são parecidos: uma polpa doce e suave, perfumadíssima, mas delicada, quase floral e, no caso do cacau, também extraordinariamente sumarenta e fresca.


A flor de sal

Lembramo-nos disso quando, há duas semanas, em Lisboa, visitamos a loja Corallo, no Príncipe Real, e Bettina nos oferece um copo de cacau quente, um fluído viscoso e brilhante, quase negro, que escorrega rapidamente pela língua.

Passaram-se quase quatro meses desde a visita à fábrica, em São Tomé. Por coincidência, Niccolò está agora de visita a Portugal e está na loja com a mãe. Mostra-nos, nas embalagens expostas na prateleira, alguns dos chocolates que provámos também em São Tomé, incluindo o extraordinário flor de sal e pimenta - talvez o mais surpreendente dos Corallo com vários ingredientes.

Neste chocolate, a Corallo usa a flor de sal como noutros usa o açúcar. Quando usa açúcar, em vez de trabalhar com açúcar moído, como outras marcas, a Corallo usa açúcar em cristal. O que acontece é que em vez de sentirmos os dois sabores misturados num só, nos Corallo o açúcar surge apenas quando trincamos os cristais - primeiro temos o cacau, de seguida a explosão do açúcar e apenas no fim os dois sabores juntos. A lógica do flor de sal e pimenta é a mesma: primeiro o cacau e só depois o sal e a pimenta a temperá-lo de forma absolutamente inesperada.

Na fábrica, em São Tomé, vimos serem escolhidos à mão, um a um, outros ingredientes, como pequenos pedaços de gengibre e casca de laranja. Agora, na loja do Princípe Real, NIccolò tem em cima do balcão uma caixa de Três Loucuras de Café - um desafio ao paladar dos clientes.

Desde sempre se ouve falar no Arábica como uma espécie única de café, entre as 72 existentes no mundo. As Três Loucuras de Cafés em Chocolate pretendem demonstrar a variedade de perfumes dentro de uma mesma espécie de Arábica, variedades cultivadas no mesmo terreno, pelas mesmas pessoas, secas e torradas com a mesma técnica.

Ao provar do primeiro saco com pepitas de chocolate com cerejas de café dentro - o 1º Cat - o sabor do café expande-se rapidamente na boca e acaba também rápido, deixando prevalecer, no fim, o sabor do chocolate. O segundo saco - o 2º BBB - tem cerejas de café com um perfume mais suave e as prioridades invertem-se: primeiro impera o sabor a chocolate e só no fim surge o do café, que prevalece. O terceiro e ultimo saco - o 3º NM - é uma espécie de compromisso entre os dois anteriores: do principio ao fim sente-se o sabor tanto do chocolate como do café; esta variedade de arábica não tem um perfume tão intenso que em momento algum se sobreponha ao chocolate.

Niccolò sorri quando voltamos a falar do 100% e diz que o produto base dos chocolates da sua família é "praticamente perfeito". Provavelmente tem razão.

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