Fugas - Viagens

Jose Cabeza/AFP

El Salvador: Quem tem medo de um país ainda à margem dos roteiros turísticos?

Por Sousa Ribeiro

Com uma história conturbada por força da guerra civil que devastou o país e, mais recentemente, pela má reputação dos maras, gangs repatriados dos Estados Unidos no início da década de 1990, El Salvador abre-se lentamente ao mundo. Durante duas semanas, Sousa Ribeiro sentiu o pulsar da capital, vibrou com a alegria do povo e ouviu os sons do mar nas praias do Pacífico, algumas delas entre as melhores do mundo para a prática do surf

O brilho intenso do sol derrama ouro sobre a água e os corpos brancos de alguns americanos, na sua maioria jovens, contrastam com a areia preta. Um homem pedala na sua bicicleta mesmo onde as ondas beijam docilmente a praia e uma criança, desprovida de roupa e de preconceitos, corre para os braços do pai, que sorri como provavelmente nunca o fizera. Um casal carrega as pranchas debaixo dos braços e projecta a sua silhueta até a imagem quase se diluir no outro extremo da praia. Ao largo, as ondas quebram o silêncio, exacerbando a felicidade dos surfistas.

Não mais de 35 quilómetros separam San Salvador, a capital do país mais pequeno mas com maior densidade populacional da América Central, de La Libertad, a cidade mais próxima de El Tunco, ainda um segredo mais ou menos bem guardado na costa do Pacífico. A distância é curta e o trajecto percorre-se em menos de uma hora de autocarro mas a diferença entre as duas cidades, sedes de departamento, é abismal. De repente, depois da poluição nas ruas de San Salvador, a vida parece voltar ao normal, como se o céu e a terra tivessem mudado de lugar para nos oferecer a serenidade que buscamos. Uma modesta guest house, onde jovens se deitam em redes, ora lendo, ora bebendo cerveja, contrariando a máxima de quem tanto aprecia matar o tempo, como se o tempo não fosse tão precioso, serve de base para os dias que se seguem, uma saudável combinação de praia e de boa comida, necessariamente peixe e marisco que se compra, a preços convidativos, no mercado que se debruça sobre o mar, em La Libertad.

A luz escoa-se e não tardará muito até que a escuridão desça sobre as areias de El Tunco. Mas para já o sol ainda rebrilha sobre a esplanada do primeiro andar do restaurante, local privilegiado para se perscrutarem as ondas agora mais enfurecidas que se projectam contra o rochedo que funciona como postal da praia, enquanto apuramos o nosso ouvido crítico para captar os sons que nos chegam do mar, praticamente os únicos naquele entardecer que quase nos obriga a suster a respiração. O brusco crepúsculo dará lugar, dentro de momentos, à boa música, ao humor, ao prazer da conversa, às histórias das viagens que fazem as viagens, essa verdadeira escola da vida, fonte inesgotável de encontros e desencontros. 
 
Surf

Passa um autocarro no sentido contrário a La Libertad, na direcção de Los Cobanos, no exacto momento em que, vindo de uma aldeia do interior, um senhor de cabelos grisalhos, cara sulcada pelas rugas, pára a carrinha de caixa aberta, correspondendo ao nosso sinal. Está macio o ar naquela manhã de sol e no Rio Chilama, a dois passos de La Libertad, onde Salvador Martinez me deixou, os meninos brincam na água, perante a cumplicidade do pai, enquanto a mãe lava as roupas e as estende a secar sobre os rochedos. A pé, percorremos o caminho até La Roca. As águas vestem-se de prateado e não há surfistas a cavalgar as ondas mas apenas um jovem sentado na areia, ao lado de um grande coração desenhado por um casal para quem a vida se enche de esperança. No mercado, a menos de um quilómetro, um constante vaivém de pessoas que olham o peixe fresco acabado de pescar e, no exterior, as enguias, já lavadas e cortadas, secam ao sol em cima de barcos de madeira.

As casas, humildes, erguem-se ao longo da colina, como querendo tocar os céus, e aos poucos a manhã começa a despertar em La Libertad. A cidade, com pouco mais de 20 mil habitantes, não é um exemplo de estética, não tem monumentos e goza mesmo de má reputação, geralmente por força de pequenos crimes associados ao tráfico de droga. Mas a sua proximidade em relação às praias salvadorenhas faz com que receba, de ano para ano, cada vez mais turistas. La Roca, considerada uma das dez melhores do mundo para a prática do surf, com a realização de importantes torneios, representa a excelência para os surfistas, felizes por não terem, pelo menos por agora, as multidões que acorrem a outros lugares do mundo já devorados pelo turismo. Depois de abandonar, definitivamente, o colón, em 2004, El Salvador adoptou o dólar americano e o facto de estar relativamente perto dos Estados Unidos, com ligações aéreas directas a algumas cidades, provocou um forte acréscimo no número de visitantes. Há uns anos, durante o período mais conturbado da história do país, mesmo na fase que se seguiu à Guerra Civil (1980-1992), um estrangeiro em La Libertad era olhado como algo de exótico. Hoje, já se tornou vulgar ver um turista carregando a sua prancha na rua ou nos autocarros que servem as melhores praias da zona, batendo o pé ao som da música que por vezes ameaça furar os tímpanos ou simplesmente ouvindo os gritos dos vendedores de corta-unhas, canetas, lanternas e até da palavra de Deus.

Fobia

Ao fim de três dias de sol, descanso, peixe e marisco, de tantas histórias para contar, sinto que estou preparado para enfrentar San Salvador, a capital, que olhara sem ver quando cheguei. O autocarro, depois de 40 minutos de gemidos, queixas próprias de um velhinho da sua idade, deixa-me na Calle El Progresso, não muito distante do Parque Cuscatlán, onde os meninos jogam à bola e um homem vende café num carrinho de bebé adaptado. Sente-se o calor e a forte humidade mas é a poluição, em determinadas áreas da cidade, que se torna mais opressiva. Os autocarros misturam-se com os poucos carros, o fumo com as constantes buzinadelas, como se fosse uma orquestra desafinada. As lojas são engolidas pelas bancas dos vendedores ambulantes, forma-se uma fila ao longo da rua, e logo outra, à frente, geralmente com frutas e legumes. O almoço é frugal e sigo para o Parque Liberdad, com a sua estátua no meio da praça, com os seus bancos onde os guanacos, como são conhecidos os salvadorenhos, se sentam para conversar e ver passar o mundo. Casas coloniais, com as suas cores garridas, e uma igreja que, vista de fora, se assemelha a um hangar de aeroporto, toda em cimento, como se estivesse despida, despertam as atenções do único turista que ali se encontra àquela hora da tarde: eu.

- Cuidado com a câmara!

Respeito o apelo da senhora de meia idade mas não fico angustiado, apenas me limito a ter os cuidados que se devem ter numa grande cidade, a despeito de San Salvador não ser uma cidade como outra qualquer. Com o fim da guerra civil e a deportação de alguns milhares de salvadorenhos que viviam nos Estados Unidos, o país assistiu a um considerável aumento dos índices de criminalidade, com o surgimento dos maras (Mara Salvatrucha e outros), gangs que, de acordo com números recentes, têm uma ligação directa a 60 por cento dos homicídios. O Governo de El Salvador levou a cabo um programa (Super Mano Dura) de combate ao crime organizado e à delinquência juvenil mas a mão dura não produziu os efeitos necessários nos primeiros anos. Apesar de El Salvador continuar a ser um dos países da América Central com a mais elevada taxa de homicídios, num campeonato em que as Honduras também marcam pontos, a verdade é que, de forma gradual, as acções do Governo têm vindo a produzir resultados. Desde que tome as precauções necessárias, as probabilidades de o viajante experimentar uma situação de perigo são tantas ou mesmo menores do que na Costa Rica ou no Panamá, países que normalmente fazem parte dos roteiros turísticos, ao contrário do que sucede, pelo menos para já, com El Salvador.

Contraste

Um rapaz com um microfone na mão, disfarçado de palhaço, tenta despertar as atenções do povo que passa para tudo o que se vende no Mega Bodegon. À volta, na rua, o ambiente é mais frenético do que nunca, as cebolas vendem-se c

ao lado do papel higiénico e as cuecas de senhora, a bom preço, rivalizam com os alhos. Olho a Catedral Metropolitana, fechada àquela hora, na Plaza Barrios, e sigo, rua acima, até à Basílica do Sagrado Coração de Jesus, toda em madeira, onde se celebra missa, enquanto numa zona contígua se vendem pastéis de carne saborosos, dois por 25 céntimos, e com um molho não menos delicioso que me é servido por uma menina com uns olhos escuros e meigos que projectam tanta timidez.

Quando a noite cai, ao fim de um par de horas, muitos salvadorenhos convergem para o Metro Centro, o maior centro comercial da América Central, mas outros começam a chegar aos elegantes restaurantes que funcionam como antecâmara para um copo num dos bares da capital. Na Boulevard de Los Héroes ou na Zona Rosa, seja no La Luna Casa y Arte ou no Rinconcitos, lugares de boémia, rapidamente se encontra a explicação para o facto de San Salvador ser uma das capitais mais procuradas da América Central quando o divertimento é a prioridade. Até altas horas da madrugada, a música não pára, o álcool parece não ter fim, há mesmo quem mostre vocação para viver e morrer numa destilaria, e os sorrisos e a alegria ganham contornos eternos.

Azul

É ainda de noite mas não tardará até o céu adquirir tons rosáceos a anunciar o nascer de mais um dia. O autocarro, vindo do centro, deixa-me no Terminal do Ocidente por 25 céntimos, uma cora, como lhe chamam, carinhosamente, os indígenas. Tomo um café que me ajuda a despertar e, com mais 85 céntimos, compro o bilhete para El Congo, com a promessa de que o autocarro sairá dentro de oito minutos. E sai mesmo, perante o testemunho e o ar sério do controlador do tráfego do terminal. De El Congo até Coatepeque são mais 35 céntimos e uma estrada que logo começa a serpentear pela vertente oriental do Vulcão Santa Ana. Aqui e acolá, ao fundo, o azul do lago espreita mas o riso persistente de dois casais que devem ter passado a noite na destilaria, agora sentados no interior do já cansado Silver Bird, que faz mais quilómetros num dia em El Salvador do que terá feito num mês nos Estados Unidos, o riso, dizíamos, obriga-nos a desviar o olhar. Mas não por muito tempo. O autocarro detém-se depois de passar uma curva e por ali fica parado, já numa zona plana, à espera da hora do regresso.

A manhã ainda se espreguiça e não há sinais de comida preparada no pequeno restaurante do outro lado da estrada de terra batida. Caminho até abraçar o lago com os olhos, o azul do céu e das águas, recortado pelas ladeiras dos três vulcões que o vigiam - Cerro Verde, Izalco e Santa Ana. Com 120 metros de profundidade, o Lago Coatepeque estende-se ao longo de seis quilómetros e é, aos fins-de-semana, um dos locais de eleição da classe alta de San Salvador, que chega mesmo a ter uma segunda residência nas suas margens, onde agora os barcos se movem ao sabor das ondas estranhamente agitadas. É um dia de semana e há apenas duas jovens que olham o horizonte a partir de um embarcadouro, conferindo ao lugar uma serenidade e um bucolismo que nem a inquietude das águas consegue perturbar. Depois subo ao Hotel Torremolinos e, através de uma ponte em madeira, chego a uma esplanada também em madeira, suportada por estacas com 20 metros de altura, e deixo que o tempo corra e o meu olhar se perca.

Flores

Santa Ana é uma cidade acolhedora, com casas térreas pintadas de cores fortes, tão características da América Central. Numa praça, ao lado da igreja, um grupo ensaia cânticos e a caminho da catedral, vizinha do teatro e do edifício da câmara, orgulhosos da sua idade e estado de conservação, encontro alguns mendigos e, mais à frente, a paragem do autocarro que me irá levar a Tazumal, ruínas maias que, embora não tendo a importância de outras que encontramos na Guatemala, no México ou nas Honduras, justificam uma visita, de preferência acompanhada com uma incursão ao museu e um olhar sobre o colorido cemitério que se perscruta por detrás do muro.

No mesmo dia, chego a Ataco, uma pequena cidade colonial que ainda não foi invadida pelos turistas, como acontece com Antigua, na Guatelama, ou Cópan, nas Honduras. Um deficiente pede-me uma fotografia antes de adormecer e um velhinho puxa um carrinho de gelados quase tão velho como ele pelas ruas empedradas. Na praça, há barraquinhas de comidas e bebidas e no ar a música dos Pink Floyd que não retira concentração à senhora que reza, em pé, em frente à igreja onde em Maio se celebra a Festa das Cruzes. Ataco, onde pontificam as plantações de café, faz parte da Rota das Flores, tal como Apaneca, ponto de partida para as lagoas Verde e das Ninfas, a curta distância daquela que é a segunda cidade mais alta de El Salvador, depois de Los Naranjos.

Mas o melhor está para chegar, uns dias depois, em Juayúa, ainda na Rota das Flores, com uma feira gastronómica cujos cheiros, de tão intensos, podem levar ao desmaio quem sentir uma pequena fraqueza no estômago. Pequenas cebolas a grelhar, carnes suculentas, sumos deliciosos, pessoas a sorrir, um autocarro de dois pisos em festa, a música por todo o lado, esplanadas cheias de gente, em grande parte representativa da diáspora (El Salvador tem a sexta maior comunidade estrangeira dos Estados Unidos), o despertar de todos os sentidos. Por entre as mesas dos restaurantes, alguns deles improvisados, ao ar livre, um cantor, com camisa às riscas e calças castanhas, não esconde os seus trejeitos femininos enquanto segura o microfone e canta as músicas que enchem o coração dos salvadorenhos de visita ao país com uma história tão conturbada e para muitos de nós conhecido apenas através da câmara de Oliver Stone.

- Obrigado pai por este corpo que me deste.

E ri, ri com gosto, perante as gargalhadas, mais ou menos estridentes, do povo que o compensa com notas verdes.

- E gente que me deve dinheiro!

Passado

Há muito mais para ver e agora, ao fim de 15 dias, estou certo de que El Salvador é um país onde irei regressar. Mas não parto sem visitar Suchitoto, a cerca de 50 quilómetros da capital, onde acabo sempre por regressar. A gastronomia típica também está bem presente mas a cidade destaca-se pela forte componente cultural e pela proximidade do lago Suchitlán, uma zona de migração de pássaros (mais de 200 espécies) que a minha vista alcança enquanto tomo o pequeno-almoço numa casa transformada em pequeno hotel, o inevitável gallo pinto, feijão com arroz, acompanhado de ovos e um café cujo fumo e cheiro se elevam naquele ar tão puro. O tempo corre devagar em Suchitoto, naquela manhã de segunda-feira adormecida, e vai ao encontro de um passado, cada vez mais distante, quando tentamos arranjar uma boleia até à cascata Los Tercios, depois de descer e subir a Calle Francisco Morazán. Pelo caminho, naquela estrada de terra batida, com o sol a queimar, homens com chapéus de abas largas andam a cavalo e saúdam-nos, enquanto mulheres carregam bilhas de água e também nos saúdam.

De volta a San Salvador, é tempo de preparar a mochila e iniciar a viagem que me irá levar até às Honduras e, mais à frente, à Nicarágua. Agora que o intenso tráfego da capital já foi esquecido, para trás vão ficando cidades como Zacate, Usutulán e San Miguel, até chegar a Santa Rosa de Lima, última localidade antes de El Amatillo, a fronteira hondurenha. No modesto hotel há uma juke-box e, à frente dela, um homem provido de tanto álcool como aquele que foi capaz de beber dança a um ritmo alucinante. Temo mesmo que possa desarticular-se a qualquer momento. À noite, no restaurante, entrego-me aos prazeres da carne e, por instantes, sinto o olhar de Jessica, uma das empregadas, ainda menor, sem direito a voto, mas com uma pulseira vermelha da FMLN (Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional), antigo grupo guerrilheiro de extrema-esquerda hoje transformado em partido político, no braço esquerdo. Por momentos, Jessica senta-se ao meu lado:

- És parecido com o Steve!

- Qual Steve?, pergunto.

- O Steve, da televisão, que morreu picado por uma raia.

Pensei mas não tive coragem de dizer, até porque a Jessica não iria compreender aquele humor: a raia que o parta! Estava feliz com as minhas recordações, queria recuar um pouco no tempo, até aos dias que vivi até aqui chegar, a memória daquele sol que derramava ouro sobre as ondas de El Tunco. Estou mais ausente do que nunca mas sinto aquele olhar de novo sobre mim. Jessica, amiga do gerente de um motel a poucos quilómetros de Santa Rosa de Lima, está apaixonada pelo falecido Steve, o que morreu picado por uma raia. Quando ir

El Salvador tem um clima tropical, com duas estações distintas: uma, entre Maio e Outubro, das chuvas; a outra, entre Novembro e Abril, quando raramente se regista precipitação e que corresponde à melhor altura para visitar aquele país da América Central. É também nesta época, especialmente durante a Semana Santa, que os preços sobem ligeiramente, reflexo do número de turistas que acorrem a El Salvador, com destaque para as praias nos arredores de La Libertad. Ainda assim, continua a ser um país acessível e, desde que abdique de alguns luxos, como hotéis de quatro ou cinco estrelas, torna-se relativamente fácil viver com 30 ou 40 euros por dia.

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