Fugas - Viagens

António Carrapato

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Mergulhar os pés na tradição do vinho

Como a natureza tem os seus tempos e exigências, este ano os enólogos da Casa de Santa Vitória deram luz verde às vindimas mais cedo do que o habitual. O sol brilhou mais do que nunca e, por isso, o arranque foi feito ainda em Agosto. O programa Um dia na Vindima custa 45 euros e também está aberto para quem não está hospedado no Clube de Campo. Contudo, vai terminar já no dia 26 de Setembro, uma vez que começam a surgir os primeiros bagos secos e as folhas com uma cor já de Outono.

Não percamos mais tempo. É hora de vestir uns calções e uma t-shirt que se possa sujar e pôr mãos à obra. O dia na vindima dá direito a participar em todo o processo. Em geral, começa de manhã e, mesmo assim, o calor seco já faz colar a roupa ao corpo. O passeio até às vinhas permite inalar a natureza e preparar os pulmões para as horas que se seguem. À nossa espera já estão as tesouras e os caixotes azuis onde vamos depositar os cachos de uvas. As indicações são curtas e é lançado o desafio ao grupo para ver quem enche mais depressa o recipiente. Mas a pressa não pode ser inimiga da perfeição: o corte preciso deve ser feito bem junto dos ramos.

A imagem é de verdadeiros corcundas de Notre Dame vergados e a cortar os cachos sem amachucar as uvas ou assassinar um dedo. No grupo houve um lesionado. Mas a solidariedade dos trabalhadores de campo obriga a manter o nome em segredo. Entre umas uvas e as seguintes, cria-se um espírito de diversão e vai-se ganhando alguma rosácea no rosto. Há quem tente roubar algumas uvas dos cestos alheios a ver se podem ir mais cedo para a adega. E, como sempre, há quem se entretenha a experimentá-las. Um conselho: não se precipite a encher demasiado a caixa. No final terá de carregá-la e pode crer que mais de 20 quilos a vincar os dedos são a parte mais difícil. A quinta já usa tractores, mas os estreantes não podem escapar a esta praxe.

Terminado o primeiro desafio, é preciso ir até à adega para passar ao momento alto do dia. Pisar uvas com os pés. Se não é adepto de grandes esforços físicos, acredite que depois do lagar de pedra será recompensado com uma surpresa. Mas não nos antecipemos. À chegada à adega, é impossível não pedir um copo de água. Habituados a caloiros, está tudo preparado para recarregar baterias antes de entrar na missão. Começa-se com uma visita que inclui um pequeno filme que nos mostra como é que a tecnologia e a tradição se aliam neste espaço de três andares e de 5000 metros quadrados. Em todo o percurso, o cheiro alcoólico que está impregnado no edifício tenta entrar-nos pelo nariz e pela boca, mas com o hábito vai parecendo mais suave.

Ao entrar no lagar, é preciso ter cuidado para não mergulhar. A primeira sensação é semelhante a um mar com muitas algas ou ao lodo das barragens. Só apetece saltitar e não se evitam algumas caretas. Mas rapidamente as uvas parecem começar a borbulhar nas pernas e o cheiro a sumo ajuda a descontrair. Os responsáveis vão dando indicações de como pisar. É preciso levantarmos bem a perna esquerda e depois a direita de forma coordenada com todos os elementos do grupo. É quase uma aula de step em versão lenta e ao som de cantares alentejanos que todos trauteamos. Quanto mais se pisa, mais baixa o volume das uvas que vão tingindo a pele de grená, e à medida que andamos pelo lagar percebemos como é mágico este processo de fermentação: há zonas que parecem ter sido aquecidas e outras que estão frias. Quanto ao sabor, superado o nojo inicial, lá se coloca um dedo na boca. Sabe mesmo a um sumo muito doce que deixa antever um bom vinho.

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